Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 17: A Gaiola

Em uma lembrança longínqua, eu me deitava no interior de uma canastra de ouro, repleta de velas e mantos púrpura. Minha cabeça girava com o movimento. Eu perdi a conta de quanto tempo fiquei lá.

Do lado de fora, mulheres cantavam em uma língua que eu não conhecia, como pássaros entonando um coro. E assim que me destamparam, fui banhado por um milhão de luzes.

Deram-me moedas, oferendas e pedras preciosas. Eles não se importavam com minha pele cheia de arranhões e ralados, nem com os farrapos sujos que eu vestia. Adoravam-me como a um deus.

Só podia ser um engano. Toda essa gente deve ter sido enfeitiçada por uma ilusão, por isso viam a imagem de outro alguém em meu lugar. Mas quem seria o autor por trás disso? Quem era o ilusionista?

Fui assentado sobre o colo de um homem que vestia todas as cores do mundo inteiro em sua túnica.

Um rei de turba branca e coroa dourada, cuja capa percorria a vastidão dos corredores e salões de seu palácio como rastros de nuvens trovejantes. Em seu rosto, uma máscara de ouro maciço.

— Ganymede — disse. — A partir de hoje, teu nome será Ganymede, o brilho celestial.

 Fugiens II, “MATERIAE GANYMEDE” 

Nessas terras, acredita-se que todas as coisas giram em torno de polos opostos. Nós somos ouro ou prata. Sol ou Luna. Cima ou baixo. Luz ou escuridão. Homem ou mulher.

No entanto, quando eu nasci, eu não tinha um corpo que se considerassem masculino ou feminino em totalidade. Para uns eu era uma aberração, e para outros uma dádiva dos céus.

Por essa condição, fui vendido a diferentes mestres em troca de quantias de dinheiro.

Antes, eu não tinha um nome. Eu era um mito oculto: a chamada “joia áurea” que trazia delícias terrenas a seus contempladores, e a transformação da carne em ouro aos que a tocassem.

À vista disso, não importa quanto meses eu passasse na cama de um mestre, o Declínio sempre o tomava  no fim. Uma vez retornado ao comércio, eu partia para um novo dono.

Mas todos eles tinham algo em comum: a fixação com a ideia de deleitar-se com o proibido e sucumbir.

Em tempo comecei a pensar em mim mesmo como um utensílio da morte. Eu achava que eu podia ser violentado e abusado até os meus limites, pois no fim esses desejos humanos padeceriam.

No dia de minha ascensão a um consorte daquele deus supremo, o ciclo que eu acreditava ser interminável terminou, e deu origem a outro. As carreatas festejavam. O mundo se encheu de cor.

Os cidadãos de Carmenta foram ordenados a reconhecer a minha existência como descendente da entidade conhecida como o “brilho celestial”, devendo-me respeito e servitude.

EMBLEMA XXXVIII
Rebis, como Hermafrodito, foi concebido entre as duas montanhas de Mercúrio e Vênus.

“Rebis era pelos antigos chamado de Gemini,
pois continha o masculino e o feminino; Andrógino.
Dizia-se que no espaço entre duas montanhas,
Hermes e Afrodite conceberam Hermafrodito.
Portanto, não o despreze de forma alguma,
eis que do mesmo homem e da mesma mulher nasce um rei.”

Me foi dado um quarto luxuoso e uma cama, e eu tinha com o que me alimentar todos os dias. Eu era o único consorte a receber tantos privilégios, até mais do que a maioria de suas oito esposas.

Em troca, o que eu teria de oferecer em troca era o corpo, o canto, a dança e o vinho por mim vertido.

Em sincronia com a música, eu dava sequências de piruetas sem deixar o arco cair. As fitas coloridas balançavam ao vento, e o barulho dos guizos em meus trajes seguia o ritmo em perfeita harmonia.

Nada me fazia mais satisfeito do que ver um sorriso no canto de sua boca enquanto eu dava o melhor de mim. Aos seus olhos, eu era um pássaro que vivia lindamente em uma gaiola dourada.

A mim não era permitido deixar a gaiola, jamais. Enquanto permanecesse lá, eu seria apreciado e bem tratado. E como nunca tive essas coisas, eu não as jogaria fora sem mais nem menos.

Esse deveria ser o lugar onde eu morreria.

Além de que, se eu era uma criatura tão bela, então mesmo nas profundezas do meu coração, esta aparência — sem a qual eu não teria sido agraciado com amor e ódio — poderia ser querida para mim!

Custava-me apenas a liberdade de voar. Não era tão ruim assim. Afinal, que lugar há para voar senão as terras distantes no outro lado do céu? Agartha, da qual sempre me contava com entusiasmo.

Acreditava-se que, no passado, uma catástrofe atingiu o reino dos homens. A terra onde pisamos foi arrancada do solo firme, erguida ao topo dos céus e virada na direção contrária à luz do Sol.

Para que não fosse chamuscada ao rubro ardor da ira divina, o mundo que era uno se dividiu. O céu se tornou abismo, e o abismo se tornou céu.

Sendo assim, o Filho de Trismegistus, emblema de perfeição e pureza, não necessariamente “caiu” como diziam as lendas. Ele escolheu permanecer em sua gruta até o fim, como um sacrifício ao pai.

Não é hilário? Mesmo se sacrificando, o castigo divino perpassou nossas raízes e a maldição do ouro surgiu. E no dia prometido, seria arrebatado o rico e o pobre pelos incontáveis pecados cometidos.

Então pelo que ele morreu? Que valor ele tinha para ser venerado como um santo?

Certa noite, segui por um caminho escuro e fugi para os jardins reais. Um lugar iluminado pela Lua que subia somente por algumas horas e depois se punha para além das montanhas.

Lá eu conheci os filhos de deus, um casal de jovenzinhos que compartilhavam de um corpo só. Enquanto um tinha a sede pelas alturas, a outra queria manter os pés no chão.

Castor, o mais velho dos dois, escondia rancores por trás de seu olhar. Ainda que não admitisse, eu sabia o quanto ele odiava o pai, e havia motivos o suficiente para isso.

Um homem que abduzia crianças como consortes, acumulando pilhas de dinheiro enquanto o povo de Carmenta decaía de fome, adorando-o como se ele fosse um deus.

Qualquer um em sã consciência iria querê-lo morto. Todavia, sem ele eu não teria sobrevivido. Em circunstâncias diferentes, não restaria nada de mim além de um cadáver aos vermes.

Eu devia a ele o meu nome, minha vida e tudo o que eu era.

— O que mais tem valor para você, Gany? Um cálice de água, ou vinho? — perguntou o gêmeo mais velho.
— Um cálice de vinho.
— Por quê? É porque o vinho é mais caro do que a água?

Até esse momento, eu nunca me dei conta do motivo pelo qual eu dava mais valor ao vinho do que à água. Não era por ser um símbolo de nobreza. Não era por ele ter um gosto bom.

Era o meu dever vertê-lo no cálice.

Para eles, ter o vinho vertido em um ato de servitude era algo corriqueiro. Mas, para mim, a mera possibilidade de beber água limpa era como um milagre.

Entre os humanos, há uma distinção clara entre o útil e o inútil. Quero dizer, se no passado eu tivesse morrido atropelado ou apedrejado, seria como uma gota de chuva ao oceano.

Eu era um copo d'água. Ninguém choraria se eu me derramasse, pois eu não tinha importância e eu era substituível. Eu não tinha uma família ou um lugar para voltar.

Em contrapartida, se algo acontecesse com os gêmeos, o mundo estremeceria. Eles eram o cálice do vinho da marca mais cara que se conhecia em Carmenta: o “Sangue Azul da Babilônia”.

Era um frasco escuro com um cheiro agridoce. Um aspecto encantador ao paladar, que derretia na língua. O favorito do mestre. Se despejado por alguém, seria como um atentado ao bem comum.

Assim eu descreveria os filhos herdeiros. Eles eram o “Dióscuro”. Um único receptáculo que, incorporando o híbrido da figura do homem e da mulher, alcançaria a magnificência de Messias.

Levando goles do vinho à boca de deus, eu os assistia treinando e disputando contra gente grande. A cada vitória, eles pareciam brilhar mais e mais. Ninguém, absolutamente ninguém os superava.

A perfeição desses bem-nascidos transcendia até a que me foi dada. Ou assim pensei, até que a poderosa voz me sussurrou:

— Ganymede, minha pequena luz. Algum dia, tu me trarás daquele cálice para beber. Tu me assegurarás disso.

Por semanas, meses, senti ter perdido de vista o significado dessas palavras. Mas elas ecoavam em minha mente a cada minuto que se passava dentro da gaiola na qual eu era guardado.

Certo dia, minha porta não foi aberta. Fora meu mestre visitar a cidade de Fortuna, a mais próxima de Carmenta, onde ele costumava comprar jovens para passar noites.

Um tempo depois, recebi a notícia de sua morte em ouro.

Eu não chorei, nem tremi. Com calma, tomei uma carta escrita por ele e endereçada a mim. Nela, pedia para que eu cuidasse de seus filhos como o aio da família.

O mundo ao meu redor empalideceu. Um... aio? Isso era eu?

Minha maldição como joia áurea se concretizou. Ela se concretizou, de novo. Frente milhares de pessoas cercando o tabernáculo da sepultura, vi o pai supremo descendo ao mundo inferior.

Após um dia inteiro, os meus pés continuaram aterrados na mesma posição. Talvez eu estivesse esperando que ele cavasse para fora da terra e voltasse à vida, mas... isso nunca aconteceria.

No fim, eu só pude fingir ser um humano. Nunca houve uma salvação para mim. O meu corpo era um utensílio considerado belo, mas atendia aos serviços da morte e da doença.

O que viam de tão precioso em uma coisa tão terrível? Por que continuavam a buscar-me, quando tudo o que eu trazia era praga?

Quebre um vaso de ouro, e te prenderão porque o dano a certos objetos de ouro espalharia a praga. O miasma se dispersaria no ar e quem o respirasse correria risco de contaminação.

No entanto, eu quebrei inúmeros vasos de ouro, e continuei intocado. Eu mastiguei e engoli folhas infectadas, e nada me afligiu. Por quê? O que diabos estava acontecendo comigo?

Não existia outra explicação para nunca ter sido acometido senão a de eu ser uma espécie de portador da doença. Ou, a de eu ser a doença em si.

Isso significava que quando todos morressem, eu restaria como o único vivo. E depois? E depois...?! Viria o meu mestre do além, apenas para me raptar e me levar embora para o paraíso?

Não, isso impossível...! Ele morreu como um qualquer, e um ser humano como ele jamais seria permitido entrar no paraíso. Eu fui deixado para trás, para sempre. O que ganhei por servi-lo acabou.

A qualquer momento, eu voltaria a ser a aberração que não era considerada nem homem e nem mulher. Eu era apenas uma... mercadoria.

As pessoas são punidas e castigadas porque cometem pecados. Se viver com um destino desses era para ser o meu castigo, me peguei me perguntando que tipo de pecado cometi para merecê-lo.

Eu não fiz nada por querer. Eu juro. Nada que eu fiz de ruim nessa vida foi porque eu quis, nem mesmo depositar meu amor e devoção a alguém como ele. Eu não tive escolha nenhuma nisso.

Talvez o erro estivesse no meu próprio nascimento, já que em qualquer outro cenário eu estaria morto. Mas eu também não pedi para nascer, nem para ter um corpo assim.

Me peguei pensando em formas de dar cabo de mim mesmo, com ou sem maldição, mas minhas tentativas fracassaram. Sempre que diante da morte, eu me lembrava de sua face.

Ouvi passos caminhando até mim, e deixei a taça onde pus veneno e vinho virar e se derramar no chão.

— Gany — chamou uma voz que vinha de trás —, minha pequena luz, por que fazes isto?
— M-Me desculpe. Me desculp-...

Aquela pessoa me puxou para um beijo no rosto, no pescoço e no ombro. Conforme suas mãos me serpenteavam, envolvendo-me como a um pássaro ferido, eu era petrificado.

Eu reconhecia esse toque. Só uma pessoa era capaz de fazê-lo. Embriagado e deitado sobre um leito, abri os olhos com dificuldade e avistei duas estrelas de citrino — as estrelas de Castor.

Antes de eu sequer sobressaltar, ele pôs as mãos ao redor do meu pescoço e pressionou.

— Gany, diga-me. O que mais tem valor para você? Um cálice de água, ou vinho?
— Cas... tor...?!
— Responda-me, Gany. Meu brilho celestial.

Eu tentava, mas a voz não me saía e eu não tinha como respirar. Por que eu relutava e me debatia tanto, se o fim dessa vida miserável era o que eu desejava?

— Castor! Pare!! — exclamou uma segunda voz, à qual ele parou. O vazio em seu semblante foi abruptamente sobreposto, e o da irmã mais nova tomou seu lugar.
— M-Minha senhora Pollux — arfei, recobrando o fôlego. Então, ela se deitou sobre mim, abraçando-me.
— Me desculpe, Gany. Me desculpe. Não acontecerá de novo. Tudo bem?
— T-Tudo bem — eu disse, com a voz chorosa. — ... Tudo bem.

Eu era subserviente a eles por serem os filhos legítimos de deus, mas minha estima estava direcionada apenas à minha senhora Pollux. O apreço que eu tinha por ela era quase fraternal.

Quanto a Castor, algo nele sempre me trouxe desconforto, como o fato de seu sorriso ser uma máscara por trás da qual escondia intentos perversos. Eu o evitava, e ele retribuía o tratamento.

A próxima vez que se dirigiu a mim foi durante minha admissão na abadia.

Fui revestido por uniformes brancos. Meu arco de dança ganhou uma lâmina pesada que tinha o formato de uma Lua crescente, e um brinco com uma pedra de ametista foi posto em minha orelha.

Dali em diante, eu serviria aos meus campeões tendo como único propósito levá-los à vitória. Tornar-me um herói era o único jeito de eu estar ligado à família real e de cumprir com o comando que me foi dado.

Essa era a taça que eu daria de beber ao meu deus supremo. Suas expectativas não morreriam em mim.

Para ser respeitado por meus instrutores e companheiros durante a iniciação de combate, enchi-me de apetrechos admirados em guerreiros: pronomes másculos e linguajar nobre.

Eu os ordenava a me chamar de “Senhor Ganymede”, e bem, eles não me deviam menos, já que só chegaram ali graças ao orçamento depositado pela família real de Carmenta para a jornada ao Messias.

Sem isso eles não valiam nada. O que os cabia, portanto, era servir como um sacrifício no lugar dos jovens mestres, e a este papel cumpriram bem. Eles eventualmente morreram durante a subida da Torre.

Ao fim da brigada ao Anfiteatro, restamos nós três.

Desde então, minha senhora Pollux, uma mulher piedosa, mas fria quando colocada uma espada em sua mão, começou a amolecer. E como se não bastasse, até Castor mudou de uma hora para outra.

Logo eles, que tanto almejavam a vitória, renunciaram a desafiar o comprometido e aceitaram a trégua sem mais nem menos. Mesmo tendo nos aproximado dos milagres e da eternidade, eles desistiram.

... Sem o Messias deles, a vontade de deus não se realizaria. Os ferrolhos dos portões do Jardim de Rosas da Sabedoria se destrancariam para o coração de outro alguém.

Isso não estava certo. Eu lutei e me dediquei para ser um herói digno de estar ao lado deles. Eu usei dessa nova força para me fazer um pajem diligente e capaz de protegê-los, para que jogassem tudo para o alto?

Minha voz foi ignorada para haver o tal consenso. Eu era um servo. O meu sangue não era azul. Eu era inferior aos que tinham agência para tomar decisões.

Não importa o quanto eu procurasse por uma brecha, eles se fariam de surdos para mim. E mesmo tentando me conformar com o fato de que falhei, eu não conseguia me esquecer.

Como eu me esqueceria? Como eu me daria o luxo de brincar de casinha, quando eu só tinha ao fantasma daquele homem para preencher o espaço deixado em mim?

— Às vezes acontece de sentirmos que não temos outro propósito, e que se trairmos o que temos agora, nada mais faz sentido. Até porque essa foi a nossa vida até agora, certo? — O momento com o garoto de Agartha era revivido em minha memória. — ... Mas, ainda assim, dá pra viver e ter experiências diferentes! Isso serve pra você também!

De início, acreditei que esse Filho de Trismegistus não passava de um impostor. Um santo não poderia se reduzir a um humano com tantos defeitos e ignorâncias aparentes.

Mas... quem sabe fosse isso o que fazia dele o “Filho de Trismegistus”. A tolice de permanecer inerte e fiel à ordem do pai enquanto tudo ao seu redor vira de cabeça para baixo.

Éramos parecidos nisso.

De todo modo, ele seria incapaz de entender. Esse mundo nunca foi gentil, e nunca houve uma escolha para fazermos senão a de apodrecermos dentro de nossas próprias gaiolas.

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