Volume I – Arco II
Capítulo 17: A Gaiola
Em uma lembrança longínqua, eu me deitava no interior de uma canastra de ouro, repleta de velas e mantos púrpura. Minha cabeça girava com o movimento. Perdi a conta de quanto tempo fiquei ali.
Do lado de fora, mulheres cantavam em uma língua que eu não conhecia, como pássaros entoando um coro. E, assim que me destamparam, fui banhado por um milhão de luzes.
Deram-me moedas, oferendas e pedras preciosas. Eles não se importavam com minha pele cheia de arranhões e ralados, nem com os farrapos sujos que eu vestia. Adoravam-me como a um deus.
Só podia ser um engano. Toda aquela gente devia estar enfeitiçada por uma ilusão, e por isso viam, em meu lugar, a imagem de outro alguém. Mas quem seria o autor disso? Quem era o ilusionista?
Fui assentado sobre o colo de um homem que vestia todas as cores do mundo inteiro em sua túnica.
Um rei, trajando uma coroa adornada com oito joias, cuja capa percorria a vastidão dos corredores e salões de seu palácio como rastros de nuvens trovejantes. Em seu rosto, havia uma máscara de ouro maciço.
— Ganymede — disse. — A partir de hoje, teu nome será Ganymede, o brilho celestial.
✤ Fugiens II, “MATERIAE GANYMEDE” ✤
Nessas terras, acredita-se que todas as coisas giram em torno de polos opostos. Nós somos ouro ou prata. Sol ou Luna. Cima ou baixo. Luz ou escuridão. Homem ou mulher.
No entanto, quando nasci, eu não tinha um corpo que se considerasse totalmente masculino ou feminino. Para uns, eu era uma aberração; para outros, uma dádiva dos céus.
Por essa condição, fui vendido a diferentes mestres em troca de somas em dinheiro.
Antes, eu não tinha um nome. Era um mito oculto: a chamada “joia áurea”, que trazia delícias terrenas a seus contempladores, e a transformação da carne em ouro aos que a tocassem.
À vista disso, não importava quantos meses eu passasse na cama de um mestre — o Declínio sempre o tomava ao fim. Uma vez retornado ao comércio, eu partia para um novo dono.
Mas todos eles tinham algo em comum: a fixação com a ideia de deleitar-se com o proibido e sucumbir.
Com o tempo, comecei a pensar em mim mesmo como um utensílio da morte. Achava que podia ser violentado e abusado até os meus limites, pois, no fim, esses desejos humanos também padeceriam.
No dia de minha ascensão a consorte daquele deus supremo, o ciclo que eu acreditava interminável chegou ao fim — e deu origem a outro. As carreatas festejavam. O mundo se encheu de cor.
Os cidadãos de Carmenta foram ordenados a reconhecer minha existência como descendente da entidade conhecida como o “brilho celestial”, devendo-me respeito e servitude.
EMBLEMA XXXVIII
Rebis, como Hermafrodito, foi concebido entre as duas montanhas de Mercúrio e Vênus.
“Rebis era pelos antigos chamado de Gemini,
pois continha o masculino e o feminino; Andrógino.
Dizia-se que no espaço entre duas montanhas,
Hermes e Afrodite conceberam Hermafrodito.
Portanto, não o despreze de forma alguma,
eis que do mesmo homem e da mesma mulher nasce um rei.”
Foi-me dado um quarto luxuoso e uma cama, e eu tinha com o que me alimentar todos os dias. Era o único consorte a receber tantos privilégios — até mais do que a maioria de suas oito esposas.
Em troca, o que eu deveria oferecer era o corpo, o canto, a dança e o vinho vertido por minhas próprias mãos.
Em sincronia com a música, eu executava sequências de piruetas sem deixar o arco cair. As fitas coloridas balançavam ao vento, e o barulho dos guizos em meus trajes seguia o ritmo em perfeita harmonia.
Nada me deixava mais satisfeito do que ver um sorriso no canto de sua boca enquanto eu dava o melhor de mim. Aos seus olhos, eu era um pássaro que vivia lindamente em uma gaiola dourada.
Não me era permitido deixar a gaiola. Jamais. Enquanto permanecesse ali, seria apreciado e bem tratado. E como nunca tive essas coisas antes, eu não as jogaria fora sem mais nem menos.
Aquele deveria ser o lugar onde eu morreria.
Além disso, se eu era uma criatura tão bela, então, mesmo nas profundezas do meu coração, essa aparência — sem a qual eu não teria sido agraciado com amor ou ódio — poderia me ser querida.
Custava-me apenas a liberdade de voar. Não era tão ruim assim. Afinal, que lugar haveria para voar senão as terras distantes do outro lado do céu? Agartha, sobre a qual ele sempre me falava com entusiasmo.
Acreditava-se que, no passado, uma catástrofe atingira o reino dos homens. A terra onde pisamos foi arrancada do solo firme, erguida ao topo dos céus e virada na direção oposta à luz do Sol.
Para que não fosse chamuscada pelo rubro ardor da ira divina, o mundo que era uno se dividiu. O céu se tornou abismo, e o abismo se tornou céu.
Sendo assim, o Filho de Trismegistus, emblema de perfeição e pureza, não necessariamente “caiu”, como diziam as lendas. Ele escolheu permanecer em sua gruta até o fim, como um sacrifício ao pai.
Não é hilário? Mesmo se sacrificando, o castigo divino perpassou nossas raízes, e a maldição do ouro surgiu. E, no dia prometido, seriam arrebatados o rico e o pobre pelos incontáveis pecados cometidos.
Então, pelo que ele morreu? Que valor tinha para ser venerado como um santo?
Certa noite, segui por um caminho escuro e fugi para os jardins reais — um lugar iluminado pela Lua, que surgia apenas por algumas horas antes de se pôr para além das montanhas.
Lá, conheci os filhos de deus: um casal de jovenzinhos que compartilhava um único corpo. Enquanto um desejava as alturas, a outra queria manter os pés no chão.
Castor, o mais velho dos dois, escondia rancores por trás do olhar. Ainda que não admitisse, eu sabia o quanto ele odiava o pai, e havia motivos mais do que suficientes para isso.
Um homem que abduzia crianças como consortes, acumulando pilhas de dinheiro enquanto o povo de Carmenta definhava de fome, adorando-o como se fosse um deus.
Qualquer um em sã consciência o quereria morto. Todavia, sem ele, eu não teria sobrevivido. Em outras circunstâncias, nada restaria de mim além de um cadáver entregue aos vermes.
Eu lhe devia o meu nome, a minha vida, tudo o que eu era.
— O que mais tem valor para você, Gany? Um cálice de água, ou vinho? — perguntou o gêmeo mais velho.
— Um cálice de vinho.
— Por quê? É porque o vinho é mais caro do que a água?
Até então, eu nunca havia me dado conta do porquê de atribuir mais valor ao vinho do que à água. Não era por ser símbolo de nobreza. Não era pelo gosto.
Era meu dever vertê-lo no cálice.
Para eles, ter o vinho servido em um ato de servitude era algo corriqueiro. Mas, para mim, a simples possibilidade de beber água limpa era um milagre.
Entre os humanos, há uma distinção clara entre o útil e o inútil. Quero dizer, se no passado eu tivesse morrido atropelado ou apedrejado, teria sido como uma gota de chuva no oceano.
Eu era um copo d’água. Ninguém choraria se eu me derramasse, pois eu não tinha importância. Era substituível. Não tinha uma família. Não tinha um lar para onde voltar.
Em contrapartida, se algo acontecesse aos gêmeos, o mundo estremeceria. Eles eram o cálice do vinho mais caro conhecido em Carmenta: o “Sangue Azul da Babilônia”.
Um frasco escuro com aroma agridoce. Um aspecto encantador ao paladar, que derretia na língua. O favorito do mestre. Se alguém o derramasse, seria como um atentado ao bem comum.
Assim eu descreveria os filhos herdeiros: o “Dióscuro”. Um único receptáculo que, ao incorporar o híbrido das figuras do homem e da mulher, alcançaria a magnificência de um Messias.
Enquanto levava goles do vinho à boca de deus, eu os assistia treinando e disputando com gente grande. A cada vitória, pareciam brilhar mais e mais. Ninguém, absolutamente ninguém, os superava.
A perfeição desses bem-nascidos transcendia até mesmo a que me fora dada. Ou assim pensei, até que a poderosa voz me sussurrou:
— Ganymede, minha pequena luz. Algum dia, tu me trarás daquele cálice para beber. Tu me assegurarás disso.
Por semanas, meses, senti que havia perdido de vista o significado dessas palavras. Mas elas ecoavam em minha mente a cada minuto passado dentro da gaiola na qual eu era guardado.
Certo dia, minha porta não foi aberta. Meu mestre havia partido para visitar a cidade de Fortuna, a mais próxima de Carmenta, onde costumava comprar jovens para passar a noite.
Algum tempo depois, recebi a notícia de sua morte em ouro.
Eu não chorei, nem tremi. Com calma, tomei uma carta escrita por ele e endereçada a mim. Nela, pedia que eu cuidasse de seus filhos como o aio da família.
O mundo ao meu redor empalideceu. Um... aio? Isso era o que eu era?
Minha maldição como joia áurea se concretizou. Concretizou-se de novo. Diante de milhares de pessoas cercando o tabernáculo da sepultura, vi o pai supremo descer ao mundo inferior.
Após um dia inteiro, meus pés continuaram cravados no mesmo lugar. Talvez eu esperasse que ele cavasse para fora da terra e voltasse à vida, mas... isso nunca aconteceria.
No fim, eu só pude fingir ser um humano. Nunca houve salvação para mim. Meu corpo era um utensílio considerado belo, mas servia aos desígnios da morte e da doença.
O que viam de tão precioso em algo tão terrível? Por que continuavam a me buscar, se tudo o que eu trazia era praga?
Quebre um vaso de ouro, e te prenderão, pois o dano a certos objetos de ouro espalharia a praga. O miasma se dispersaria no ar, e quem o respirasse correria risco de contaminação.
No entanto, eu quebrei inúmeros vasos de ouro e continuei intocado. Mastiguei e engoli folhas infectadas, e nada me afligiu. Por quê? O que diabos estava acontecendo comigo?
Não havia outra explicação para eu nunca ter sido acometido senão a de que eu era uma espécie de portador da doença. Ou, pior, de que eu era a doença em si.
Isso significava que, quando todos morressem, eu restaria como o único vivo. E depois? E depois...? Viria meu mestre do além apenas para me raptar e me levar embora para o paraíso?
Não, isso era impossível...! Ele morreu como um qualquer, e um ser humano como ele jamais seria permitido no paraíso. Fui deixado para trás, para sempre. O que ganhei por servi-lo se perdeu.
A qualquer momento, eu voltaria a ser a aberração que não era considerada nem homem, nem mulher. Eu era apenas uma... mercadoria.
As pessoas são punidas porque cometem pecados. Se viver com um destino desses era o meu castigo, peguei-me perguntando: que tipo de pecado cometi para merecê-lo?
Eu não fiz nada por querer. Eu juro. Nada do que fiz de ruim nesta vida foi porque quis — nem mesmo depositar meu amor e devoção a alguém como ele. Eu não tive escolha.
Talvez o erro estivesse no meu próprio nascimento, já que em qualquer outro cenário, eu estaria morto. Mas eu também não pedi para nascer, nem para ter esse corpo.
Pensei em formas de dar cabo de mim mesmo, com ou sem maldição, mas todas as tentativas fracassaram. Sempre que me via diante da morte, lembrava-me de seu rosto.
Ouvi passos se aproximando e deixei a taça — onde pus veneno e vinho — virar e se derramar no chão.
— Gany — chamou uma voz que vinha de trás —, minha pequena luz, por que fazes isto?
— M-Me desculpe. Me desculpe...!
Aquela pessoa me puxou para os braços, suas mãos me serpenteando, envolvendo-me como a um pássaro ferido.
Eu reconhecia aquele toque. Só uma pessoa era capaz de fazê-lo. Embriagado e deitado sobre um leito, abri os olhos com dificuldade e avistei duas estrelas diferentes das dele — eram as estrelas de Castor.
Antes que eu sequer pudesse me sobressaltar, ele pôs as mãos ao redor do meu pescoço e pressionou.
— Gany, diga-me. O que mais tem valor para você? Um cálice de água, ou vinho?
— Cas... tor...?!
— Responda-me, Gany. Meu brilho celestial.
Eu tentava, mas a voz não saía e eu não conseguia respirar. Por que eu relutava e me debatia tanto, se o fim dessa vida miserável era justamente o que eu desejava?
— Castor! Pare!! — exclamou uma segunda voz, à qual ele obedeceu. O vazio em seu semblante foi abruptamente substituído, e o da irmã mais nova tomou seu lugar.
— M-Minha senhora Pollux — arfei, recobrando o fôlego. Então, ela se deitou sobre mim, abraçando-me.
— Me desculpe, Gany. Me desculpe. Não acontecerá de novo. Tudo bem?
— T-Tudo bem — eu disse, com a voz chorosa. — ... Tudo bem.
Eu era subserviente a eles por serem filhos legítimos de deus, mas minha estima era voltada apenas à minha senhora Pollux. O apreço que eu tinha por ela era quase fraternal.
Quanto a Castor, algo nele sempre me causou desconforto, como o fato de seu sorriso não passar de uma máscara, atrás da qual escondia intentos perversos. Eu o evitava, e ele retribuía.
A próxima vez que se dirigiu a mim foi durante minha admissão na abadia.
Fui revestido com uniformes brancos. Meu arco de dança ganhou uma lâmina pesada em forma de lua crescente, e um brinco com uma pedra de ametista foi posto em minha orelha.
Dali em diante, eu serviria aos meus campeões com o único propósito de levá-los à vitória. Tornar-me um herói era o único modo de permanecer ligado à família real e cumprir o comando que me foi dado.
Essa era a taça que eu daria de beber ao meu deus supremo. Suas expectativas não morreriam em mim.
Para ser respeitado por instrutores e companheiros durante a iniciação de combate, adotei apetrechos admirados nos guerreiros: pronomes másculos e linguagem nobre.
Ordenei que me chamassem de “Senhor Ganymede” — e, bem, eles não me deviam menos, já que só chegaram ali graças ao orçamento depositado pela família real de Carmenta para a jornada ao Messias.
Sem isso, eles não eram nada. O que lhes cabia, portanto, era servir de sacrifício no lugar dos jovens mestres — e a esse papel cumpriram bem. Eventualmente, morreram durante a subida da Torre.
Ao fim da brigada ao Anfiteatro, restamos nós três.
Desde então, minha senhora Pollux — uma mulher piedosa, mas fria quando empunhava uma espada — começou a amolecer. E como se não bastasse, até Castor mudou repentinamente.
Logo eles, que tanto almejavam a vitória, renunciaram ao desafio e aceitaram a trégua sem mais nem menos. Mesmo tendo nos aproximado dos milagres e da eternidade, desistiram.
... Sem o Messias deles, a vontade de deus não se realizaria. Os ferrolhos dos portões do Jardim de Rosas da Sabedoria se destrancariam para o coração de outro alguém.
Isso não estava certo. Eu lutei e me dediquei para ser um herói digno de estar ao lado deles. Usei essa nova força para me tornar um pajem diligente, capaz de protegê-los — e eles jogaram tudo para o alto?
Minha voz foi ignorada para que houvesse o tal consenso. Eu era um servo. Meu sangue não era azul. Eu era inferior àqueles com agência para tomar decisões.
Não importava o quanto eu procurasse por uma brecha, eles se fariam de surdos para mim. E, mesmo tentando me conformar com o fracasso, eu não conseguia esquecer.
Como eu esqueceria? Como poderia me dar ao luxo de brincar de casinha, se só me restava o fantasma daquele homem para preencher o espaço deixado em mim?
— Às vezes, acontece de sentirmos que não temos outro propósito, e que, se trairmos o que temos agora, nada mais faz sentido. Até porque essa foi a nossa vida até agora, certo? — O momento com o garoto de Agartha era revivido em minha memória. — ... Mas, ainda assim, dá pra viver e ter experiências diferentes! Isso serve pra você também!
De início, acreditei que esse Filho de Trismegistus não passava de um impostor. Um santo não poderia se reduzir a um humano com tantos defeitos e ignorâncias aparentes.
Mas... quem sabe fosse isso o que fazia dele o “Filho de Trismegistus”? A tolice de permanecer inerte e fiel à ordem do pai, enquanto tudo ao seu redor virava de cabeça para baixo.
Éramos parecidos nisso.
De todo modo, ele seria incapaz de entender. Este mundo nunca foi gentil, e nunca houve escolha a fazer senão a de apodrecermos dentro de nossas próprias gaiolas.
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