Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco II

Capítulo 15: O Banquete, ato I (Interlúdio)

— Vovô, o que é essa pintura? — perguntou um garotinho de seis anos de idade, puxando pela manga de um senhor idoso. Com a pontinha do dedo, apontava para um quadro largo com uma mulher despida em uma concha.
— Oh, Terumichi. É o Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli.
— Vênus? Mas eu não vejo o planeta Vênus em lugar nenhum.
— Hahaha! Essa é outra Vênus. — Ele me pegou no colo. — É a deusa do amor e da beleza na mitologia romana. Você aprenderá sobre ela na escola!
— Ahhhh! Eu conheço uma deusa do amor e da beleza! Afrodite!
— A mitologia grega e a romana têm muitas correspondências entre si.
— Correspon... o quê?
— Significa que Afrodite da mitologia grega é Vênus na mitologia romana.
— Então quer dizer que a deusa Vênus também é malvada!
— Ora, mas por quê?
— Porque ela fez mal ao Eros e a Psiquê só porque eles se amavam! Pobrezinhos, pobrezinhos.

A deusa Afrodite, também conhecida como Vênus, era a mãe de Eros.

Devido a Psiquê, uma mera mortal, ter sido abençoada com inigualável beleza, Afrodite ordenou que seus oráculos aconselhassem os pais da jovem a vestirem-na com trajes nupciais e abandoná-la para um monstro no alto de um rochedo.

Foi aí que Zéfiro a levou consigo até um castelo de mármore e ouro, onde conheceria seu esposo predestinado: Eros.

A condição para estarem juntos era que Psiquê nunca visse sua real aparência, permanecendo junto a ele no escuro do castelo. Mas Eros, o responsável por executar a vingança da mãe, apaixonou-se verdadeiramente pela donzela.

Os dias se passaram e Psiquê visitou sua família. Todos a encheram de perguntas sobre o gentil e carinhoso amado, e após dizer que nunca vira seu rosto, foi convencida de que deveria fazê-lo, apenas por curiosidade.

Retornando ao castelo, ela acendeu uma vela e, deslumbrada com a beleza de Eros, deixou uma gota de óleo quente cair em sua pele.

A promessa de não o ver era para que ela não se apaixonasse apenas por sua aparência. A tendo descumprido, o ferido Eros não tinha escolha a não ser abandoná-la, eis que o amor não sobrevive sem confiança.

Vagando sozinha, a jovem perpassou inúmeros desafios e provações impostos pela deusa do amor, uma vez que essa era a única chance de reconquistar o que foi perdido. Porém, um dia ela desistiu, entregando-se à morte e caindo em um sono profundo.

Eros, após ser curado e ver o sofrimento pelo qual Psiquê precisou passar, parte para salvar a amada. Ao pedir pela intercessão do rei dos deuses e usar de sua flecha para revivê-la, “amor” e “alma” são reunidos e nunca mais separados.

O espírito humano, após ser provado pelas tribulações, recebe como prêmio o verdadeiro e eterno amor.

Interlúdio, “A Cornucópia de Vênus” 

Gostar de alguém romanticamente já foi um tópico sensível para mim.

Na minha pré-adolescência, eu me apaixonei por uma menina. Ela era adorável, parecia até uma princesa de um reino encantado. Eu acreditava que, para protegê-la, eu precisaria me tornar um príncipe ou um cavaleiro de armadura brilhante.

Mas quando eu falei para a mamãe, ela me repreendeu muito. Nunca achei que ela, de todas as pessoas, faria isso comigo. “Está vendo, Terumasa? Agora veja se ensina esse menino a ter um pingo de noção!” gritava no telefone, contando tudo para o papai.

Eu já estava decidido de que nunca mais consultaria ninguém sobre amor, até que...

— Você gosta mesmo dessa mocinha, Terumichi? — indagou o vovô.
— Isso é errado?
— Está tudo bem em gostar de qualquer pessoa, desde que não esteja machucando ninguém.
— Eu não quero machucar ninguém!
— Eu não disse que você quer. Sua mãe ficou preocupada porque você ainda é muito jovem. Acabou de fazer doze anos. Ela acha que é um pouco cedo para se preocupar com essas coisas, e tem medo de que você dê menos importância aos estudos. Ou, que mal-intencionados se aproveitem da sua inocência para fazer coisas ruins. Mas você é um menino inteligente. Sabe do que estou falando, não é?
— Não aceitar nada de desconhecidos. Avisar um responsável se vir algo estranho. Não deixar ninguém me tocar onde não gosto. São as três regras douradas!
— Isso mesmo. As três regras douradas.

“Está tudo bem gostar de qualquer pessoa, desde que não esteja machucando ninguém.”

Nunca me esqueci dessas palavras. Tenho certeza de que se eu tivesse dito ao vovô que eu gostava de um outro garoto, ele me aceitaria. Ele tinha a mente bem aberta. Mas a mamãe e o papai, sendo mais tradicionalistas, ficariam loucos.

Enquanto eu crescia, percebi que eu sentia algo... diferente por alguns amigos da escola, ainda no fundamental. Esses sentimentos eram para lá de platônicos. Eu me convencia de que era só amizade, já que sempre ouvi que meninos não podiam ficar juntos.

Alguns dos meus colegas de classe também se referiam a isso como uma coisa nojenta. Eles até implicavam com meninas que liam mangás “Boys Love” — aqueles de amor entre garotos — dizendo que gays eram promíscuos e sujos.

Quando saí de lá, eu me transferi para a Kinran Academy e conheci Tsubasa.

Se tivéssemos namorado de fato, eu sei que sofreríamos com o preconceito. Pela união estável entre duas pessoas do mesmo gênero não ser legalizada, não poderíamos nos casar, ao menos não no Japão. Mas isso não seria o fim.

Embora boa parte das minhas ideias de amor e relacionamento fossem parecidas com as que eram “socialmente aceitáveis” pela sociedade japonesa, eu sabia que havia muitos outros tipos de pessoas, relações e famílias.

Mesmo com dificuldades, elas lutavam por seus direitos e tomavam coragem para seguir com suas vidas cotidianas.

Eu me sentia um hipócrita. No Anfiteatro, onde eu já não precisava me preocupar com o “socialmente aceitável”, foi tudo muito diferente. Eu tive a chance de repensar tanta coisa, sem que ninguém me julgasse por isso e aquilo.

... Mas o Tsubasa nunca teve essa chance. Ele não “saiu do armário”. Foi chutado para fora dele. E tudo por causa daquele bando de idiotas que o perturbaram por tanto tempo. Ele não teve os mesmos privilégios que eu.

E ainda assim, ele sorria para mim e fazia dos meus dias mais coloridos.

O que aconteceria comigo depois que eu me graduasse da Academia Kinran? Eu seria oficializado como um adulto, certo? Por acaso eu arrumaria coragem pra me assumir?

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Fazia duas semanas e alguns dias desde que chegamos no acordo de não lutarmos. Por causa disso, o senhor Ganymede teve uma briga feia com seus mestres.

Ele não ter concordado com a trégua por livre e espontânea vontade me deixava receoso. Eu não sabia se devia ir chamá-lo para ter uma conversa. O que ouvi ele falar deixou bem claro o que ele achava de mim.

Apesar de que... isso não era só sobre mim. Era sobre todos nós. Então, talvez eu devesse tomar vergonha na cara e ir direto ao assunto, ao invés de ficar parado sem tomar uma atitude.

Brevemente, os murmúrios daquele que se deitava ao meu lado me tiraram a atenção dos meus pensamentos.

— Te-ru-mi-chi... Te-ru-mi-chi...
— É tão difícil assim pronunciar o meu nome, Hector?
— Tem uma sonoridade estranha. Mas pelo menos eu estou tentando.
— Bem, quem sou eu para te culpar. Nós falamos línguas diferentes. Só parecemos falar a mesma por causa do Amaranto.
— Então é por isso que você pronuncia os nossos nomes todos errados.
— Eu pronuncio errado?! E por que não me avisaram disso?
— Ficamos com pena de te corrigir, já que você é tão autoconfiante.
— O-Ora, sua besta! — exclamei, bravo. — E o que é que você tá fazendo aqui? A frente fria já passou! Se esqueceu de que tem o seu próprio quarto?
— A sua cama é mais confortável. — Emburrado, ele se virou para o outro lado, cobrindo-se nos lençóis. — Se está tão incomodado comigo, pode ir dormir na minha.
— Uhh, não é que eu esteja incomodado, é só que... Esqueça. Fique onde está. — Num suspiro, deitei-me. Após alguns segundos o observando, acariciei seus cabelos. — Ei. Você não me incomoda, tá? É que eu nunca dormi na mesma cama de alguém que não fossem meus pais e meu avô, isso quando eu era uma criancinha. É um pouco difícil de se acostumar.
— Eu posso te abraçar?
— ... Assim, do nada? Pode, eu acho. Perdeu o sono?

Voltando-se na minha direção, ele me envolveu com seus braços e aconchegou o rosto no meu peito.

Eu fiquei tão envergonhado que meu coração acelerou e eu fiquei vermelho igual uma pimenta. Calma. Fique calmo, Terumichi Kinjō. Hector só queria dormir abraçado comigo, só isso!

Conforme fui me tranquilizando, voltei a afagar sua cabeça. Apesar de ser um marrento e estar sempre com cara de quem comeu e odiou, tinha momentos em que ele era carinhoso e meio dengoso.

Que coisa. Nós nos conhecíamos só há um mês, mas...

Era tão bom sentir o seu perfume e alisar seus cabelos fofinhos. Eu ficava feliz em ouvir sobre seus interesses e ir descobrindo peculiaridades suas. Em tê-lo próximo de mim.

Desde que conversamos sobre nossos sentimentos mais sinceros no hammam e tivemos aquela experiência, eu me dei conta de que eu estava me apaixonando de novo.

Eu o amo. Eu o amo mesmo.

Mas a pessoa que eu amava costumava ser Tsubasa. E eu ainda o amava demais, apesar de tudo. Em outros termos, eu gostava de mais de uma pessoa. ... Será que isso me fazia um pervertido?

Ao acordar, o deixei babando no travesseiro. Tomei um banho e fui procurar meus amigos na biblioteca, mas os crachás deles, tirando um, ainda estavam na prateleira.

— Terumichi.
— P-Pois não? — respondi, num impulso.

Kosmo, usando um monóculo, chamava-me lá do guarda-corpo do observatório.

— Poderia vir aqui por um instante?
— É claro!

O irmão gêmeo mais novo de Hector, além de um ávido leitor, tinha o suposto hobby de mexer com construtos mecânicos e autômatos. Relógios, brinquedos e coisas do tipo.

Estes eram um tanto incomuns em Arcadia, e quem os tinha era geralmente da classe nobre.

Ele ganhou alguns dos sacerdotes da abadia quando era pequeno. Tinha dos mais simples aos mais complexos. Montava e desmontava, e quando algo quebrava ele os consertava sozinho.

Desde então, começou a se interessar por mecânica, hidráulica e pneumática. Teve um tempo que ele até trabalhou como um relojoeiro mirim, logo, não era só um “hobby” como dizia.

Quando lhe dei meu celular, ele tentou abri-lo e entender seu funcionamento, mas como o aparelho necessitava de eletricidade, estava além de seu manejo.

Ele até solicitou às máquinas que mandassem para o conserto, não achou nada que pudesse recarregar a bateria ou substituí-la.

— Me desculpe. Eu tentarei procurar por mais. Esse Anfiteatro deve fazer um uso descomunal de eletricidade. Pode haver uma forma de eu conectá-lo a uma espécie de condutor, ou...
— Realmente não precisa se preocupar. Como aqui não tem internet, não tenho muito o que fazer com um celular.
— Internet?
— Como posso explicar...? É como um sistema de informações que várias pessoas do mundo podem acessar simultaneamente. Se o sinal pegasse aqui, eu poderia até falar com a minha família em Agartha. 
— Interessante. Como uma espécie de conexão interdimensional entre múltiplas consciências humanas, e à longa distância.
— É menos complicado do que isso — ri. — Ei, muito obrigado por tentar me ajudar, Kosmo.
— Ah, por favor, não me agradeça. Eu estou retribuindo o favor. Você faz meu irmão, Theseus e Circe muito felizes, e eu-... bem... — Na tentativa de disfarçar o constrangimento, retirou o monóculo e subiu para o assento do telescópio, onde jazia um pedaço de pão em um prato. — Suba aí. Tem algo que eu quero que você examine comigo.

O fiz com um pouco de dificuldade, já que eu era sedentário. Daí ele me pediu para olhar pela lente e dizer se o pedaço de terra no foco era o tal “Japão” do qual eu falava.

— Sim. É ali mesmo — respondi.
— Entendo. É curioso. É possível vê-lo todos os dias, mas a outra metade da Torre não.
— Seria ela algum tipo de ilusão?
— É possível. E pelo que você me contou, também não dá pra vê-la de lá.
— Sim. Quando a encontrei, parecia até que eu tinha viajado para uma dimensão diferente, e só nela se via Arcadia no céu.
— Os dois lados da Torre, quando unidos, formam a única ponte entre Agartha e Arcadia. Me pergunto se elas voltarão a se conectar após o dia da Correnteza Eterna.

Ele ficou pensativo por alguns segundos, até que perguntou:

— Como é o céu que você via, Terumichi?
— Hmmm. É como o que vemos no horizonte entre os dois mundos, onde aparece o Sol e a Lua, só que cobrindo todo o céu. As luzes noturnas de Agartha ofuscam a atmosfera daqui, então infelizmente não vocês não veem as verdadeiras estrelas.
— Verdadeiras estrelas?
— Há uma infinidade de estrelas espalhadas pelo universo, umas tão grandes quanto ou até maiores do que o nosso Sol. Elas têm sistemas próprios de planetas que giram ao seu redor, assim como Arcadia e a Lua giram em torno de Agartha, que gira ao redor do Sol.
— Se é tudo tão vasto, devemos ser pequenos em relação ao universo.
— É verdade.
— Eu gostaria de vê-las um dia, as verdadeiras estrelas.
— Nós iremos! — exclamei, segurando-o pela mão. — Um dia, vamos para Agartha e você as verá. Eu vou te mostrar um monte de coisas que existem no cosmos, sejam visíveis a olho nu ou não!
— “Cosmos”?
— Ah, é. De onde eu venho, o seu nome deriva de um termo associado ao universo, a ordem total das coisas, algo assim. É uma palavra com um significado bem bonito.
— ... Por favor, leve-me com você. Isso me alegraria.
— Está combinado! Parando para pensar, você ficaria o máximo nas roupas de lá. Com certeza esse cabelo bonitão chamaria a atenção de muita gente. Acabariam te contratando para ser um modelo ou coisa assim. A gente poderia ir no cinema, ou tomar milk-shake. Tem um montão de coisas pra se fazer por lá!

Ele entendeu bem pouquinho do que expliquei sobre os lazeres terráqueos, mas ficou entusiasmado com a ideia de viajar.

Kosmo passava um semblante solitário, como de alguém que já viu muita coisa. Ele suportou tanta pressão quanto Hector para ser quem é hoje, então era bom vê-lo descontraído.

As promessas que fiz podem ter sido exageradas, mas eu não disse nada da boca pra fora. Eu adoraria levá-lo para conhecer coisas novas, se isso o fizesse se sentir bem.

Ele era uma pessoa séria e responsável, mas solícita e amável. Pensando bem, o tipo de pessoa que eu idealizava namorar em um futuro ideal e perfeito era alguém como ele.

... Espera aí. O que eu queria dizer com isso? Aliás, sair para ver as estrelas, tomar milk-shake e ir ao cinema juntos não era algo que casais faziam? Meu deus, o que deu em mim?!

De repente, me passou pela cabeça uma memória do dia em que nos conhecemos.

Para ser mais exato, de quando ele disse que minhas sardas pareciam estrelas, e que eram lindas. Mas essa cena na minha cabeça era enfeitada por rosas e brilhinhos dignos de um painel de mangá shoujo.

“Tem alguma coisa de errado comigo”, pensei.

Eu gostava do Tsubasa. Eu gostava do Hector. E ainda assim eu estava começando a gostar de uma terceira pessoa? Não, não, não, não. Estava mais para um crush ou algo bem platônico. Digo, nem chegava a isso.

— A-Ahh! Céus, eu me esqueci completamente de ir ajudar a senhorita Circe no laboratório! — exclamei.
— Ela te transformará em um porco por isso.
— Eu preciso ir, Kosmo. Depois eu venho dar uma passadinha aqui.
— Tudo bem. Bom trabalho pra vocês. — Ele tornou a olhar pelo telescópio.

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