Volume I – Arco II
Capítulo 14: A Preciosidade
— Se essa data está localizada nessa parte aqui do calendário, então corresponde ao mês de julho. Deixe-me certificar. — Eu rabiscava cálculos atrás de cálculos em uns papéis sobre a mesa.
— Ohhh! Olha como o Teru escreve rápido! — Theseus apreciava, com brilhinhos nos olhos. — O que são todos esses símbolos, Teru?
— São fórmulas matemáticas.
— Fórmulas mate-o-quê?
— Pronto. Aqui, Thes. No calendário de Agartha, você faria aniversário entre o dia dez e quinze de julho. Não temos como saber o dia exato, mas você nasceria sob o signo astrológico de câncer.
— Câncer? Tipo o caranguejo?
— Isso. É esse símbolo aqui. Hector e Kosmo seriam do signo de peixes. A senhorita Circe seria de escorpião. — Com cuidado, virei a outra página. — O senhor Castor e a senhorita Pollux seriam de gêmeos.
— Interessante — disse o primeiro.
— De fato. — Sua irmã, logo em seguida. — Esses desenhos soam como aqueles gravados nas paredes do Arcabouço das Profecias de Carmenta.
À luz dos candelabros da biblioteca, conversávamos sobre as diferença entre os principais calendários e as datas comemorativas de acordo com a cultura.
Eu tinha facilidade em trabalhar com comparação de dados, então construí uma tabela para relacionar períodos correspondentes e descobrir as datas de aniversário de cada um.
Foi muito divertido. Tinha comida gostosa e um montão de atrativos trazidos pelas máquinas.
— Diga, aaahhh! — Kosmo fazia um aviãozinho com um pedaço de torta até a boca de Thes.
— Aaaahh!
Ele mordeu, feliz da vida, enquanto Circe os observava.
— Até quando vão continuar com isso? — indagou, atônita.
— Theseus precisa se alimentar apropriadamente.
— Theseus se alimenta melhor do que você.
— E eu não posso mimá-lo?
— Eu amo ser mimado pelo Kosmo! — Ele deu um abraço no outro, que posou com ares de vitória.
— Uh. Não íamos deixar “isso” em segredo dos outros?
— Vai, Circe. Diga, aaaahh. — Os dois ofereceram garfadas simultâneas.
— N-Não! Eu prefiro comer por mim mesma, obrigada. Mas vocês, hein?
Dei uma risadinha.
Aqueles dois, Kosmo e Thes, pareciam bem apegados. Eu já tive suspeitas de que havia algo mais do que uma amizade entre eles, mas devia ser só impressão. O menor também era agarrado comigo.
A senhorita Circe já era mais independente e evitava meiguices. Até quando nos cumprimentávamos, era curvando-nos, com acenos ou um simples aperto de mãos. Toque físico não era sua linguagem favorita.
O senhor Castor e a senhorita Pollux se entrosavam bem conosco. Eles contavam umas piadas obscuras que só os dois entendiam e achavam graça, mas eu acreditava ser algo entre gêmeos.
Apenas os heróis mais reclusos não se entretinham.
Hector se retirou, ou melhor dizendo, foi retirado para a sala de espera depois de apartarmos sua briga com o irmão. Eu prefiro não dizer o motivo.
Se os deixássemos juntos por dez minutos, eles começavam a se bicar e xingar.
Thes contou que a razão pela qual os separavam era por implicarem igual duas crianças. Achei que fosse exagero, até os ver se mordendo e prestes a arrancar os cabelos um do outro.
O honroso comprometido da Corte dos Heróis ficou na companhia de Ganymede, outro desafiante que não demonstrava interesse no que fazíamos.
Ambos tinham dificuldade para interagir e confiar nos outros, e se encaravam como quem não queria conversa. Eu os via papeando vez ou outra. Sobre o quê, não sei.
— Os dióscuros são seus senhores, não? Como eles fazem para a maquiagem aparecer e desaparecer quando mudam de um para o outro?
— Quer mesmo saber?
— Não quero mais.
Entusiasmados, eu e Thes fomos chamar quem faltava.
— Gany-... digo, senhor Ganymede!
— Céus. O que querem de mim?
— Estamos fazendo algo interessante, e me perguntei se você não gostaria de participar!
— E como eu participo disso?
— Só precisamos da data do seu nascimento!
Deu um sobressalto.
— Senhor Ganymede...?
— Pra quê? Qual a utilidade disso?
— É para descobrirmos quando você teria nascido no calendário de Agartha, e o seu signo astrológico.
— Francamente. Vocês perdem tempo com coisas tão pífias e incultas. Datas de nascimento, signos astrológicos; que coisas inúteis. Quem precisa saber disso, enquanto tudo lá fora morre?
... Huh? Por que reagir assim...?
As nossas datas de nascimento eram datas preciosas, dias que as pessoas gostavam de celebrar porque apreciavam umas às outras. Não havia nada de errado nisso.
Thes, ao sinal da hostilidade, não delongou em me defender.
— Pare, senhor Ganymede. Teru só queria que a gente tivesse um momento bom juntos. Você está descontando suas frustrações nele!
— Há, você de novo. Não cansa de tentar ser mais relevante do que de fato é.
— Me ofenda o quanto quiser! Eu não me importo! Mas se continuar a machucar os sentimentos dele, vai ter que me enfrentar, seja pela Corte ou não! Estou falando sério, Ganymede!! — estrondeou, bem mais ríspido do que o garoto doce e amigável que eu conhecia.
— Não temo desistentes, e não pretendo participar do faz de conta ridículo que vocês criaram! Façam-me o favor e me deixem de fora dessa!
— Gany, isso é desnecessário — asseverou Castor, vindo logo atrás. Com poucas palavras, o belo jovem já recuou.
O clima se fez pesado. Estávamos indo tão bem até ainda agora. Tornei a Hector, mas ele desviou a atenção para não se envolver.
— Companheiros, perdoem a indelicadeza do aio de minha família. Ele não tinha o intento de desrespeitá-los. Além do mais, os conflitos já acabaram. Foi o que todos concordamos na audiência, ou estou enganado?
— O que “todos” concordamos, você diz? — questionou o outro. — O que deu em você para se tornar um covarde, Castor?!
— E quanto a você? O que te fez se tornar uma criança?
Com a voz soluçante, Ganymede se levantou às pressas e saiu.
— Deixem-no ir. É melhor não interferir além da conta. — Em pouco, o maior se virou na direção de Hector, vagamente. — Comprometido, se importaria se eu tivesse um momento a sós com o Filho de Trismegistus?
— Eu não dou a mínima — desbocou, muito para o choque de Theseus. — Mas se fizer ruindade a ele, eu te mato na mesma hora.
— Perfeito! Se não for tomar muito de seu tempo, por favor, acompanhe-me, senhor Terumichi Kinjō.
Antes de irmos, o menor me segurou pela mão, cochichando no meu ouvido:
— Não precisa ir se não quiser, Teru.
— Fique tranquilo. Daqui a pouco estarei de volta.
Deixados para trás, o salaciense e o vertumnita se entreolharam. O semblante bravo deles me deixou apreensivo.
ᛜᛜᛜ
O senhor Castor da cidade de Carmenta era um homem de postura imponente e que nunca afrouxava, mesmo nas horas descontraídas. Elegância e cortesia o descreviam bem.
Sua presença, tal qual a de sua irmã, era solene. Ela fazia qualquer um se sentir diante de uma deidade real. E não à toa, já que na mitologia os dióscuros eram filhos do rei dos deuses.
À beira de um tanque interno, semelhante a uma piscina, brilhavam lanternas alaranjadas.
Com trepadeiras e estátuas em todos os lados, eu tinha a impressão de estarmos de passagem em um recanto sagrado por onde humanos comuns, como eu, não deveriam pisar.
— Algo que eu disse ofendeu o senhor Ganymede?
— Não se culpe por isso. És um rapaz gentil. É só que gentileza desmedida pode ferir as pessoas.
Das mãos da escultura de uma mulher alada, Castor tomou uma taça de ouro cheia d’água — água de verdade descida de uma fonte transbordante — e ofereceu a mim.
— O que mais tem valor para você, um cálice de água ou vinho? — perguntou.
— Um cálice de água ou vinho...? Um cálice de vinho.
— Ora, mas por quê? É porque vinho é mais caro do que água?
— As pessoas atribuem mais valor a beber vinho do que água. Acho que é por status.
— Pffft. Está sempre se preocupando com o que agrada aos outros, quando só quero saber de você. Me responda uma coisa: se este fosse um cálice de vinho, você ainda beberia?
— Sim. Os dois são bons.
Educadamente aceitei a taça e bebi.
— Hahaha! Você é do tipo de pessoa que rouba os amores daqueles ao seu redor. Quem sabe isso que me tenha convencido durante a audiência, mais até do que as palavras da minha irmã.
No puxar de um interruptor, a água corrente se fez vinho tinto. O cheiro forte impregnava minhas narinas, e a luminescência do ambiente era tingida com a cor da bebida.
As máquinas nos trouxeram cachos de uvas em bandejas, e nos prepararam assentos em uma pedra.
— Você sabe o quão gracioso e deleitável aos olhos é Gany — afirmou. — Há muitos anos, a beleza dele chamou a atenção de meu pai, um homem considerado deus. Porém, antes de ser levado como seu vertedor de vinho, ele não tinha valor, nem preciosidade. Como ninguém sabe quando ele nasceu, sua vinda ao mundo nunca foi celebrada.
Ganymede era possuidor de uma aparência que o equiparava a anjos, além da força e habilidade de grandes guerreiros.
Agraciado com estas qualidades especiais, ele pôde ascender ao Anfiteatro da Eterna Sabedoria como um dos nove desafiantes elegidos, dignos de alcançar o patamar do Messias.
Mas, ao contrário do que eu pensava, heróis sem “sangue azul” como ele, Theseus e o senhor Patroclus de Angerona não nasciam predestinados a serem heróis, e pertenciam a uma classe inferior.
Para que fossem considerados preciosos, alguém teve que vê-los de tal forma. A eles foi concedido um valor não inerente, no caso de Ganymede, quando foi colhido sob os domínios desse rei ou deus magnânimo.
— Obrigado por me explicar, senhor Castor. Tentarei me desculpar.
— E se ele não quiser suas desculpas?
— Ao menos mostrarei que me importo.
— Imaginei que diria isso. Você me cativa, Terumichi Kinjō. És encantador. Alheio a duelos de espadas, eu desejo um dia tê-lo para mim. — Foi inexplicavelmente franco.
Quando eu nasci, isso fez o vovô muito feliz.
Ele sempre quis ter um neto, e o meu pai foi o primeiro filho a realizar isso. Mesmo que ele amasse aos meus primos que vieram depois, eu sei que recebi um carinho e atenção maior.
Meus dezoito aniversários foram repletos de presentes e festas; os cata-ventos de oito pontas que eu adorava, castelos de montar, miniaturas e quebra-cabeças de pinturas conhecidas.
As coisas que ele me deu, físicas ou não, fizeram com que eu me sentisse querido e amado. Desde antes de nascer, eu era o desejo de alguém.
Que bom que eu nasci, pensava.
De certa forma, a preciosidade concedida é como a mágica. Ela é maravilhosa, brilhante e afável, mas se não houver alguém que a conceda e que acredite nela, ela deixa de existir.
Assim como a rosa dourada no meu quarto só era preciosa porque eu a agraciei com isso, ela sozinha não teria quem a desse sentido. Ela seria vazia, um objeto sem propósito.
A areia da ampulheta cai, de grão em grão.
Nada dura para sempre. Um dia, os tempos preciosos chegam ao fim. As separações vêm. E depois disso, o que nos resta? ... O que nos resta, a não ser resquícios de memórias douradas?
Enquanto eu vasculhava minha galeria em busca de fotos com o vovô, com o meu irmãozinho que eu tanto amava e com Tsubasa, não me atentei à bateria se esvaindo.
16%.
Sem ter como recarregá-la, o meu celular permaneceria desligado até o dia de voltar para casa, mas tinha algo que eu gostaria de fazer antes disso.
Num clique, o flash da câmera.
Como esperado, os gêmeos eram tão fotogênicos que nem fazia diferença se sorriam ou não. Lógico, aquela foto de nós cinco não precisava ser a única, então tirei muitas outras.
Quando mostrei para Hector as fotos e gravações de nós dois com efeitos engraçados, ele deu risadas, mostrando a proeminência das maçãs de seu rosto, e isso me fez feliz.
Apesar de tudo, que bom que eu estava ali.
— Ah...
— Ué, o que houve? Por que a tela ficou preta, Teru?
— Acabou a bateria. Aparelhos como esse precisam recarregar regularmente. Eu não imaginava que precisaria trazer o carregador de casa.
— É como eu digo, precisamos estar preparados para as intercorrências da vida.
— ... Eu não sei se eu tinha como me preparar para essa intercorrência.
— É! Não seja cínico, Kosmo!
— Talvez tenha algo que possamos fazer — disse Circe, percebendo o quão entristecido fiquei. — Existem vários tipos de maquinários espalhados pelo Anfiteatro. Kosmo, você entende dessas coisas, não?
— Eu?
— Ele entende. É um bitolado de longa data! — Hector provocou, gratuitamente.
— Quem é o bitolado?!
Um fez cara feia, e o outro mostrou a língua.
— Ei, ei! Já vão começar?
— Enfim. — Kosmo se recompôs, tentando se mostrar o mais maduro. — É só um hobby, tá? Mas eu posso dar uma olhada. Se é pelo Filho de Trismegistus, não me importo.
— Obrigado, pessoal, mas se não der certo, não tem problema. Não é como se um celular tivesse muita utilidade aqui. E só de ter os momentos especiais que passei com vocês salvos nele... já é mais do que eu poderia pedir.
Sorrimos.
— Ah, e por favor, parem de me chamar de “Filho de Trismegistus”, ou “garoto de Agartha”, tá? Eu tenho um nome — ressaltei, fingindo uma cara séria.
— Qual o problema com isso?!
— É respeito! — retrucou o mais novo. — É por uma questão de formalidade e respeito!
— O Thes já me chama pelo meu apelido, então não há razão para vocês não usarem o meu nome de verdade.
— Por mim tudo bem, Terumichi. — A senhorita Circe, diferentemente dos gêmeos, aceitou na hora.
— Ó, viram?
— Mas é tão difícil de pronunciar... — Hector resmungou.
Como assim era mais difícil falar o meu nome do que “Filho de Trismegistus”?!
— Eu não vou aceitar desculpinhas. Vamos lá, irmãos de Vertumnus. Repitam comigo: Te-ru-mi-chi!
— Te-ru-mi... Te-ru-mi-shi...
— É Te-ru-mi-CHI!
Os grilos cantavam, e os barulhos dos motores que mantinham o Anfiteatro ficaram mais altos. Já era tarde da noite, então nos despedimos. Meu comprometido permaneceu me seguindo, e eu já até imaginava o motivo.
— Terumishi.
— Sim?
— Obrigado por hoje.
Fui pego de surpresa. Achei que ele fosse pedir para dormir na minha cama de novo.
— Obrigado também, Hector — sorri. — Estou feliz que passou um tempo conosco. Você aproveitou?
— Sim. Mas, é que... h-hoje é-... Digo, está meio tarde para contar isso, mas, sabe, o hoje é o meu... meu ani... — gaguejava. — ... Deixa pra lá. Esqueça o que eu disse.
— Hãã? O que foi isso? Você não é de fazer esses mistérios. Agora eu estou curioso.
— Deixe-me dormir na sua cama hoje.
— ...
— O que foi?! — Hector se exaltou, passado o silêncio.
— Nada.
O disse para ir à frente, pois daria uma passadinha no cenáculo. Foi um dia bem longo e a minha bateria social se esvaiu. Eu queria beliscar algo, tomar um vento na sacada e tirar uns minutos sozinho.
Eu pensava no quanto o meu sumiço devia estar atormentando meus pais. No quanto o Teruki sentia saudades de mim, e no quanto ele deve ter chorado. Eu não podia nem imaginar como ficaram as coisas em casa.
Essa preocupação se tornou recorrente. Se ao menos eu pudesse dizê-los que estava bem, que não morri e que em breve nos veríamos de novo, isso me deixaria mais sossegado. Mas não dava. Eu perguntei até do Imperador.
... Dei um suspiro, enterrando o rosto nos meus braços apoiados ao parapeito. Como de costume, eu não tinha muita escolha.
Na volta para o quarto, me deparei com o senhor Kaeru, que se perdeu enquanto me procurava. Pobrezinho. O botei na minha toga com cuidado, mas no que dei um passo adiante, ouvi vozes nas proximidades.
Vinha da sala dos dióscuros. Não havia só eles lá, mas Ganymede também. E, pela tonalidade da conversa, aparentava ser uma intriga. Eu não era do tipo de bisbilhotar, mas, bem ao lado da porta, pus-me a escutar.
— Vocês têm noção do vexame que isso é para Carmenta? Só porque eles desistiram, não significa que com vocês deve ser igual! Esqueceram de quem vocês são filhos? Vocês são os heróis mais poderosos do mundo!
— Só porque somos os mais poderosos, não quer dizer que abandonamos o pensamento racional — respondeu a mais nova. — Eu já fui alguém com sede pelo ardor da batalha. Mesmo agora, a vitória me é a coisa mais bela e poderosa do mundo. Mas, após os horrores que passamos no caminho até aqui, sinto que algo precisa ser mudado.
Naquele instante, ela se levantou e veio à porta, lançando-me um olhar congelante. Era como se o meu corpo e a minha alma tivessem evaporado.
— O Filho de Trismegistus nos prometeu um desfecho diferente — prosseguiu, fingindo não saber da minha presença. — Eu e Castor queremos aceitá-lo. Acredite quando digo que também é difícil para nós, mas gostaríamos que respeitasse a nossa decisão, Gany.
Depois, ela soltou a armação do cabelo e encostou a porta, dando-me a oportunidade para passar despercebido.
— Minha senhora Pollux, perdoe-me, mas é um ultraje. Esse Filho de Trismegistus não entende nada sobre os nossos valores. Sobre a coroa! Os companheiros que perdemos, e o pai de vocês... eles estariam envergonhados da sua fala!!
— Pare já, Ganymede!! — A voz de Castor pesou como trovão. — Não vou tolerar que desrespeite minha irmã. Se o consenso não é o suficiente, então obedeça à minha ordem: Carmenta não lutará! Esse jogo acabou!
— ... É por vingança? — disparou. — Pretende abandonar tudo para se vingar de seu pai, Castor?
— Dê-me uma boa razão para me vingar de um homem morto.
Uma calada sufocante e demorada.
— Eu não entendo. Se era para ser assim, então os nossos nomes não servem de nada. Como pretendem se responsabilizar por isso? Digam alguma coisa, Castor e Pollux! Vocês, que provocaram a morte desse campo de batalha...!!
De repente, a luz tomou tonalidade vermelha, me reduzindo a uma silhueta sombria. Eu não mais parecia estar ali, ao menos não em carne e osso.
Escutei as vozes daquelas duas máscaras gregas — Tragédia e Comédia — que sempre tratavam de me preparar uma história diferente a cada dia. Tão sarcásticas, deram início a um show.
— Quatro mil quatrocentros e quarenta e quatro, quatro mil quatrocentos e quarenta e cinco, quatro mil quatrocentos e quarenta e seis... — O rei Tragédia contava suas moedas de ouro.
— Papai, papai! — Carregando uma rosa, veio a princesa Comédia. — As pessoas estão se tornando rãs! O senhor precisa salvá-las!
— Ah, problemas, mais problemas! Quem tem medo de rãs hoje em dia? Deixe-me resolver isso.
O rei se levantou. Com o toque, transformou as rãs em ouro, e usou delas para enfeitar seu castelo.
— Papai, papai! Tem muita gente lá fora dizendo que não têm pão para comer! O senhor precisa salvá-las!
— Mas que inferno! Por acaso elas não têm brioches? Deixe-me resolver isso.
O rei se levantou. Com o toque, transformou cada manifestante em ouro, e usou deles para enfeitar seu castelo.
— Papai, papai! A cidade inteira se transformou em ouro e não temos mais quem produza comida para nós! O que nós vamos fazer?! O mundo vai acabar!
— Arrgh! Cale-se, cale-se, criança! Você só sabe reclamar, e eu ainda nem cheguei nas cem mil moedas! Vou resolver isso tudo de uma vez por todas!
Pela última vez, o rei se levantou. Com o toque, transformou a filha em ouro para que ficasse quieta. E por um longo, longo tempo, permaneceu contando moedas.
— Cento e noventa e nove mil, novecentos e noventa e oito! Cento e noventa e nove mil, novecentos e noventa e nove! Duzentas mil! Certo, está na hora do café da manhã!
Pães de ouro. Carnes de ouro. Vinhos de ouro. A primeira refeição do dia é a mais deliciosa e deslumbrante de todas.
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