Volume I – Arco II
Capítulo 13: O Cálice
Mais tarde, entrei no quarto, e Hector já tinha acordado. Ele não conseguia se levantar por causa da dor nas costas, então tratei-o novamente com o analgésico e alguns emplastros.
Ele permaneceu em silêncio e com as sobrancelhas franzidas, parecendo chateado, e eu perguntei:
— Lutar sem as asas é difícil pra você, não é?
— Não.
— Olha, eu entendo que essa coisa de “honra” e “orgulho” é algo que vocês heróis tentam preservar, mas você pode compartilhar suas dificuldades e dores comigo. Eu não sou seu oponente, e me importo com você.
— Isso não é algo que precise se importar. Com ou sem minhas asas, eu continuarei vencendo quem quer que me desafie.
— Ninguém mais virá desafiá-lo.
Atônito, ele tentou se virar, mas o segurei.
— Não se mexa. Me escute. Na audiência de hoje, nós chegamos num consenso. Você alcançará o Messias, okay? Ninguém mais precisa se machucar.
— A-Audiência? Do que está falando? Eu perdi uma audiência?!
— Agradeça ao Theseus. Foi ele quem tomou a iniciativa.
— O baixinho?!
— Se não fosse por ele, eu não teria coragem para me opor ao restante.
— Como vocês conseguiram uma coisa dessas?
— Com a suprema técnica do diálogo! — Fiz uma pose épica. — Digo, é brincadeira, mas foi quase isso. Circe e o seu irmão nos ajudaram. Só tentamos ser razoáveis e mostrar o caminho mais racional.
— Eu perdi uma audiência...
— Hector, olhe pra mim. — Eu segurei suas bochechas, fixando nossos olhares. — Vai ficar tudo bem agora, mas você precisa ouvir o irmãozão Terumichi aqui.
Num misto do que eu imaginava ser ansiedade e alívio, ele apertava os lençóis.
Para alguém como Hector, era difícil entender que não mais teria de se arriscar para cumprir um objetivo grandioso, ou salvar alguém. Ele passou a vida acreditando que se não oferecesse as feridas em troca, não obteria Messias.
Saísse tudo conforme o planejado, suas costas não mais precisariam se abrir e sangrar. Sei que cicatrizes como essas não sumiriam facilmente, mas ao menos ele estaria seguro, e seu mundo livre da maldição do ouro.
A proliferação da doença seria controlada, e as pessoas teriam fartura.
— Pronto. Pode se deitar, mas não deixe as costas encostarem na cama.
— Minha barriga tá roncando.
— Vou trazer sua comida.
— Eu posso ir até lá sozinho.
— Não!
— ... E eu também preciso de um banho.
— Eu já te banhei ontem.
— Você me banhou?!
— Sua memória fica confusa mesmo, hein. Pelo menos espere até o remédio fazer efeito, senão ele vai escorrer todo — eu disse, guardando as coisas na gaveta. — E você deve estar urrando de fome, sem comer desde ontem. Quem sabe eu deva pedir o “café da manhã”.
Em vez de continuar insistindo, Hector cedeu e se acomodou na cama.
— Como eu posso retribuir?
— Retribuir?
— Tem algo que eu possa fazer por você em agradecimento? Eu faço qualquer coisa.
— Hmmm, vejamos. Você pode ir à biblioteca comigo. Faremos uma confraternização depois de amanhã. Castor, Pollux e Ganymede também estarão lá!
Ele rapidamente mudou com os ânimos.
— Ah, não. Vai ter o meu irmão lá, e ele é um pé no saco. A cientista chata tem uma cara assustadora, e o baixinho fala sem parar!
— Para quem está reclamando, até que você também fala demais! Por que você é assim?
— Assim como?
— Você é hostil e se isola de todo mundo, mesmo sem terem feito nada pra você.
— Eu não me isolo de todo mundo.
— Claro que se isola.
— Urgh... Eu vou tentar, tá? Mas se eu me cansar, tenho coisas mais interessantes para fazer, como polir a minha espada.
— Polir? Mas...
— Ninguém mais vai me desafiar, eu sei. Ainda assim, não quero que ela fique toda arranhada. Essa espada é importante pra mim. Ela tem um nome e um significado.
Como não a embainhamos, pude ver de longe o dano deixado na lâmina e no copo. Com o Amaranto, eu poderia consertá-la ao mais perfeito estado, mas ele insistia em fazê-lo.
Eu gostaria de poder fazer algo por ele além de curar suas feridas, ou dar o beijo do duelo. Hector, no entanto, se escondia atrás de várias e várias cascas, como se fosse uma boneca russa.
Quando eu pensava que tinha aberto uma, aparecia outra, o que me dava a entender que ele ainda não se sentia confortável comigo.
Enquanto eu o observava comendo como um filhote de leão, pensei em parar para insistir. Eu cuidaria dele, mas não me intrometeria em suas intimidades, nem o pressionaria a nada.
Isso me deixaria um pouco triste, sim, porque eu queria conhecê-lo mais. Ser mais íntimo, talvez. Não é como se eu tivesse sido mais do que útil para a maioria das pessoas.
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A previsão do tempo no Anfiteatro alertou sobre a aproximação de uma massa polar. Hector era friento e pegou o hábito de dormir no meu quarto. Dizendo ele, minha cama era mais quente.
Ele só queria ficar enrolado no cobertor. E quando eu emprestava minhas camisas, elas ficavam um pouco apertadas nele e pinicavam. Sua pele devia ter gastura com certos tipos de tecido.
Para nos aquecer, ficamos de molho na banheira do hammam.
Já não era tão constrangedor tê-lo por perto. Ele não via malícia em ficar nu na minha frente, então eu nem me importava mais, muito embora eu continuasse a ser um intruso ali.
O povo de Arcadia era dotado de incrível beleza — uma das heranças mais cobiçadas da alquimia. Meu corpo, por outro lado, não era atraente como o dele, e eu não tinha músculos definidos para exibir.
Eu não me achava feio. Apesar da minha autoestima quanto à aparência não era a das melhores, até que o meu charminho convencia. Era só que a diferença entre mim e ele era super óbvia.
Bobagens da minha cabeça.
— O beijo do outro dia te magoou? — ele me perguntou de repente, abraçando os joelhos.
Após alguns segundos pensando em minha resposta, exprimi:
— Não foi você quem disse pra não ver como algo romântico e pronto?
— Eu estou demonstrando que me importo, ingrato! — As águas se agitaram com sua brusquidão.
— Hector, o beijo não me magoou. Você pediu o meu consentimento antes, lembra? E eu aceitei, mesmo que tenhamos sido tecnicamente obrigados a isso.
— Sim.
— Para mim, só de você ter me pedido pedir significa muito, porque... isso mostra que você se importou se eu queria ou não. E, bem, eu prefiro ter um beijo consensual com quem eu compartilhe sentimentos mútuos.
— Sentimentos “românticos”?
— Sim.
— Eu não sei bem o que é isso. Como só tive meu irmão, nunca vi ninguém assim antes.
— Você nunca teve, tipo, uma primeira paixão? Uma quedinha de infância, ou um amor não correspondido?
— De jeito nenhum. A mim foi concedido o nome do herói de Vertumnus. Meus únicos sentimentos devem ser pelo meu povo, e por Messias. Os sacerdotes me ensinaram a não me envolver com coisas mundanas, como paixões e romance, pois elas são passageiras e desviariam o meu foco do que é eterno.
Em Vertumnus, havia uma abadia no topo de uma montanha, onde ele foi criado com seu irmão pelo clero.
Eles foram encontrados ainda bebês em uma manjedoura, e o fato de terem sobrevivido à deriva do Rio Karämih levou os sacerdotes a acreditarem que os gêmeos eram as crianças prometidas de um antigo mito sobre um herói alado.
A existência de Hector como esse herói era um segredo guardado pelo regime teocrático da cidade, então ele não tinha permissão para deixar o lugar. Enquanto crescia, ele realizou tarefas para a igreja e se fazer valer por seu nome.
Cedo aprendeu sobre a fome, a pobreza e as vidas acometidas pelo Declínio. No mundo exterior, o sofrimento não cessava. Era pelo nobre propósito de libertá-lo do mal que aprendeu a abrir suas asas e lutar.
Mas, devido a isso, ele nunca viveu sua infância e adolescência como eu vivi. Hector esteve à sombra das mais rigorosas responsabilidades de um adulto, e aos poucos eu compreendia o porquê de ele ser como é agora.
Enquanto me contava sobre si, não pedi detalhes específicos. Eu só queria ouvi-lo. Era uma parte de seu coração que ele compartilhava comigo, e não me custava nada aceitá-la.
Ele deu muito duro para se deixar confiar.
— Não se sente sobrecarregado com esse peso nas costas? — perguntei.
— Sobrecarregado? Dificilmente, já que não preciso carregar nada.
— Não no sentido literal, cabeçudo.
— Não sou cabeçudo. E não carrego nada em mãos além da máscara dourada e minha espada, Cálice .
— Cálice?
— Esta espada é um artefato criado na era da alquimia. Aquele que a empunha deve ser como o frasco vazio no qual é derramado o vinho de deus. Em outras palavras, um recipiente sem coração, alguém que serve a um propósito divino e transcende a alma humana.
Ele lançou um olhar distante, e continuou:
— As lendas dizem que ele foi forjado para ser entregue ao Filho de Trismegisto, também uma existência vazia. Mas, no dia em que te conheci, foi você quem me ofereceu de bom grado o seu maior tesouro.
— ... É mesmo. Eu te ofereci Amaranto, não foi?
— Você tem noção do que isso significa? Você... não é nem um pouco vazio. Seu coração é preenchido por compaixão. Alguém como eu não merece nada disso.
— Merece sim! — eu exclamei, assustando-o. Na verdade, até eu fiquei assustado comigo mesmo, mas isso não me impediu. — ... Você merece sim. Quem foi que te disse que não merece?
— Não sei.
— Seja lá quem foi, te contou uma grande mentira. Eu não estou fazendo nada por bondade, nem por eu ser o Filho de Trismegistus. É porque você é precioso para mim, Hector!
— Eu sou precioso para você?
— É claro!
Estendi a mão, e ele a tomou timidamente.
É claro que era. Porque esse garoto era tão precioso, eu não conseguia pensar em outra coisa. Eu apenas fingia não entender a razão pela qual eu me sentia tão atraído por ele.
Nós éramos muito diferentes, e muito parecidos. Antes de aspirar a ser um salvador, ele quis ser especial para alguém e atravessou mil e uma milhas para isso. Ele era, sim, precioso.
No que o trouxe para perto de mim, sua cabeça foi colocada em meu tronco. Um arrepio percorreu meu corpo, mas não foi um de desconforto.
Conforme a distância entre nossas peles diminuía, o calor dele se homogeneizava com o meu. Estarmos unidos assim era mais aconchegante do que qualquer água morna.
Eu me enganei em achar que deveria desistir. Tudo o que eu precisava fazer era prestar atenção à tênue preciosidade que nos conectava.
— Tudo bem se eu te tocar assim?
— Tudo bem, Hector.
— E assim?
— U-Uhm-...
— Doeu?
— Não. Não doeu — eu disse, com um sorriso sem jeito. — Eu posso te ensinar uma coisa, se você quiser.
— Por favor.
Foi bem diferente do que eu esperava, no sentido de que pensei que me eu me culparia por isso.
Tanto para ele quanto para mim, essa foi a primeira vez com outra pessoa, e eu não tinha outras referências além das noites em que fiz isso sozinho. Não foi nada mal. Ele pareceu satisfeito e confiante em mim, o que era mútuo.
Ao fim, nós dois nos abraçamos o mais forte que pudemos, e a angústia pesando em meu peito diminuiu.
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EMBLEMA VI
Semeia o teu ouro na terra foliada branca.
"O camponês confiou suas sementes à terra culta,
assim que esta foi tratada por sua enxada.
Os filósofos ensinaram que se deve dispersar
sementes douradas em terra foliada e branca como neve.
A este método, olhe com atenção e contemplarás:
como in vitro, do trigo brotará ouro."
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