Volume I – Arco II
Capítulo 12: A Aliança
Acomodei em um vaso a rosa que me foi dada. Ela não respirava, nem precisava de água. Mesmo não tendo vida, se destacava entre as outras flores.
Quando possuímos algo que consideramos precioso, de certa forma, também somos feitos preciosos. No momento em que perdemos algo para sempre ou deixamos ir, sentimos que não somos nada.
O mundo deixa de ser o mesmo. O passado se torna só uma memória, ainda que continuemos a desejar por ele. É por isso que gostaríamos que certas coisas durassem para sempre.
Mas elas não duram, não é?
No dia em que Messias fosse alcançado, eu veria a forma que essa rosa uma vez teve. Descobriria suas verdadeiras cores e a assistiria envelhecer e morrer, muito mais rapidamente do que eu.
No fim das contas, teríamos que jogá-la fora por se tornar lixo. Ela não teria mais o mesmo valor de um bem eterno.
— Com licença, Filho de Trismegistus. — Uma voz vinda da porta me chamou.
Me virei, e avistei uma mulher de cabelos negros e cacheados. Era a senhorita Circe. Ela veio me buscar para irmos à audiência. No mesmo instante, me arrumei e tornei a acompanhá-la.
— Sente-se melhor?
— Sim.
— Kosmo fofocou sobre você. Escute, eu sei que não sou a melhor pessoa pra consolar, mas se quiser alguém pra te ouvir... talvez possamos nos entender.
— Senhorita Circe, seu avô era uma pessoa muito especial para você, certo?
— Hm? Ah, sim. É claro.
— Você guarda alguma lembrança dele? Algo que te faça se sentir melhor quando bate a saudade.
— Guardo, sim. Embora não seja algo que costumo carregar o tempo todo. Por quê?
— Eu também tenho. Um presente que o meu avô me deu quando era vivo — disse, tirando o medalhão de dentro da camisa. — Mas, quando eu cheguei aqui, comecei a duvidar se o que eu acreditava era a verdade, ou se esse presente tinha outro significado.
— Agora que essa pessoa não está mais aqui para te dar a resposta, tudo o que você pode fazer é continuar procurando. Há coisas que precisamos descobrir o significado sozinhos. ... Ou não tão sozinhos. Quero dizer, nós estamos aqui para te apoiar. Mas no momento em que a resposta aparecer, você terá que decidir por si mesmo o sentido que dará a ela.
— Sim. Obrigado, senhorita Circe.
— Agradeça a esta temível bruxa sendo um bom assistente de laboratório.
— Deixa comigo.
Embora a senhorita Circe tenha dito que temia ser fria, ela demonstrava o cuidado de formas diferentes, e isso não mudava que ela era uma pessoa atenciosa e uma ótima amiga.
— Theseus e Kosmo estão esperando por nós. Vamos indo?
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Muitas vozes recitaram um trecho misterioso:
— Esmagai a forma refletida no espelho, para que se dê à luz o cálice ungido em ouro. Em nome da Correnteza Eterna; a tempestade, o percuciente e a destruição dos homens!
— O Anfiteatro dá as boas novas! Que comece a audiência da Corte dos Heróis!
Estávamos nós reunidos mais uma vez: eu, os três que se abstiveram de lutar e os outros três que nunca nos deixaram claras as verdadeiras intenções.
Com a derrota de Achilles, dois dos nove desafiantes foram desclassificados. Mas um terceiro púlpito se encontrava vazio, à minha direita.
— Ora, ora. Parece que o comprometido está atrasado — farpeou Ganymede, com os braços cruzados.
— Hector se ausentou, pois ainda está se recuperando. Sua saúde está debilitada. Creio que seja algum tipo de anemia. Ele precisa de descanso.
Nisso, Kosmo tomou a vez, ajustando o microfone.
— Essa anemia vem com o uso prolongado e repetitivo das asas. Para transmutá-las a partir de nossos ossos e músculos, há uma queima em excesso de nutrientes, e uma pessoa que passa por esse processo repetidas vezes vai naturalmente carecer deles. A perda de sangue só piora a situação.
— Faz sentido.
— Tá. E foi para isso que convocaram a audiência?
— Não foram eles. Fui eu.
O holofote se direcionou a Theseus, à minha esquerda.
— Eu os reuni aqui para fazer um pedido: que paremos as lutas e deixemos Messias nas mãos do atual comprometido.
— Como é que é?!
— É deveras ousado. Entende o peso disso? — Castor questionou, em um tom pacato.
— Achilles e Patroclus foram derrotados, e tenho certeza de que isso será uma perda inimaginável para Angerona. Essa missão se tornou uma jornada suicida. Muitos já se sacrificaram para chegarmos aqui. Se seguirmos assim, a humanidade pode até ser salva, mas não teremos como providenciar nada às nossas cidades.
— Eu concordo com Theseus — pronunciei-me. — Hector está comprometido a mim. Se pudermos chegar a um consenso, eu garanto que o farei atender aos desejos de todos, sem distinção.
— Mesmo que o desejo em si seja se tornar alguém digno de Messias?
Ao questionamento do dióscuro, frio me subiu a espinha. Permaneci em silêncio, acuado, até que Ganymede rebateu:
— Eu acho que o baixinho está confundo as coisas. Fale disso e daquilo, mas assim como eu e o coitado do Patroclus de Angerona, você não tem sangue azul. É um servo que veio representar sua terra sem o campeão prometido, que pelo visto morreu. Essa já é a maior perda para Salacia. Você, por si só, não faz tanta falta assim.
Diante das ofensas deliberadas, o clima se tornou pesado, e a direção que tomávamos começou a se perder.
— Escolha bem suas próximas palavras, Ganymede de Carmenta — impôs a senhorita Circe, pressionando a mão sobre o púlpito.
— É apenas a verdade — ele prosseguiu. — O dever dos heróis sem sangue azul é guiar o campeão à vitória, mesmo que isso signifique doar a vida e o lugar na Corte. Retornar ao lar e admitir que não cumprimos com isso só porque não quisemos é uma traição às esperanças dos nossos povos. O mínimo que você devia fazer para honrar o príncipe Pirithous é lutar e morrer. É menos humilhante para alguém na sua posição.
— O que você sabe de Pirithous?! Se o conhecesse, entenderia o que quero dizer!!
— Permitam-me.
Uma voz suave e delicada ressoou. Era a voz de Pollux, que vinha dos mesmos lábios do irmão gêmeo.
— Irmã?
— M-Minha senhora Pollux.
— Muitos sonhariam em garantir a salvação ao mundo sem o derramamento de sangue e ouro — disse ela. — O que trazes, guerreiro de Salacia, é uma oportunidade rara.
— Muito obrigado...
— Mas você não chegou sozinho a essa conclusão. Os três amigos temem a inefabilidade das leis do Anfiteatro?
Eles se entreolharam, como se soubessem exatamente o que fazer.
Da bolsa que carregava na cintura, Circe retirou um pergaminho e o desenrolou, revelando-o tão longo que chegava no centro do salão.
Aqueles símbolos e diagramas... eram fórmulas alquímicas.
— O que seria isso?
— São estudos que elaboro há anos em segredo do estado. É sobre a alquimia; seus fundamentos, riscos, e, em especial, sua inferência no que conhecemos como Declínio.
— Foi a isso que se referia quando se opôs ao príncipe de Angerona com tanta propriedade.
— Estou longe de terminar, mas tenho como comprovar que alguns aspectos do Declínio não funcionam como nos foi ensinado.
Como, por exemplo, a forma pela qual se propagava, disse-nos. Tinha-se que a maldição do ouro produzia um “miasma” e quem o inalasse, ou demonstrasse os primeiros sintomas, teria de ser isolado em câmaras especiais para não transmiti-lo.
Porém, a tecnologia atual nunca encontrou um agente patogênico ou substância causadora, seja no ar, na água, na terra ou na carne, e tampouco se sabia se a doença era de fato transmissível de pessoa para pessoa.
Se pensarmos na relação entre o ouro e o corpo humano, talvez fique mais claro.
Cada ser humano possui quantidades microscópicas de ouro no organismo, mas nada que, cientificamente, tire proveito do material. Apesar de ele ser comestível em determinadas instâncias, seu valor nutricional é zero.
Isso contrariava um detalhe muito importante. Na alquimia como era conhecida em Arcadia, há sempre uma troca pela lei do sacrifício equivalente. “Da carne à carne, do ouro ao ouro.”
E como o ouro é o último estágio do processo alquímico, é teoricamente impossível que uma matéria transformada em ouro produza miasmas ou substâncias que afetem outros seres vivos de maneira direta.
— A reação que se dá na morte dourada é diferente da que transmuta as asas orgânicas — explicou. — Não se trata de um processo natural. Então, não seria impossível que a alquimia estivesse sendo utilizada arbitrariamente para causar o Declínio.
— Está querendo dizer que alguém tem controle sobre quem vai morrer pelo Declínio ou não? Como fariam isso funcionar?
— Eu tenho uma hipótese. Suponhamos que eu e você tenhamos uma predisposição genética a algo. Em um dado momento, nós lidamos com uma influência ambiental que acabou por “ativar” a reação, mas isso surgiu de algo previamente programado para acontecer.
— Certo. E o que seria essa influência ambiental?
— Preciso de mais tempo para estudar isso.
— Ou seja, sua teoria não anula a existência do miasma, mesmo que ele não seja um fator inerente ao Declínio — afirmou Pollux.
— Denunciar que o estado suprime a verdade é o mesmo que assumir que há uma conspiração contra a humanidade. Como filho da coroa de Carmenta, sua fala me é um tanto absurda.
— O Ministério das Ciências possui uma boa reputação, mas a verdade é que está manchado por trabalhos antiéticos, ameaças e subornos. E mesmo com tudo isso, ele nunca foi tão ameaçado quanto na vez em que se propôs a estudar a alquimia. Isto é, há mais de vinte anos, na época em que o meu avô o presidia. Tenho motivos o suficiente para acreditar que há coisas sendo omitidas de nós.
— Entendo. Isso é pelo seu avô.
— Errado. Minhas razões pessoais não são maiores do que a minha responsabilidade como herói e bruxa herdeira do trono de Apollodorus. Não há nada acima do meu compromisso para com a humanidade.
Circe, então, estendeu a mão na direção do monarca silencioso.
— Como todos aqui viram, a luz emitida pelo topázio imperial toma a vida de forma rápida e seletiva, ao contrário do Declínio que conhecemos. Isso me leva a crer que os princípios sejam diferentes. Violando a autoridade da Correnteza Eterna ou não, o milagre do Amaranto pode não trazer um herói derrotado pela Corte de volta, pois o princípio da fórmula se aplicará àqueles abaixo de nós, na superfície, e não aos que estão aqui.
— Procurou pela sabedoria do Imperador das Rosas a respeito disso?
— Sim, mas ele não foi claro. Como sempre.
— Ele não é um ser vivo e não possui uma consciência. É um fantoche feito para zelar pela Corte, assim como as outras máquinas.
— O ponto é que, com ou sem campeões, nada está acabado — retomou o grisalho, fixando seu olhar em Theseus. — Se jogarmos nossas vidas fota, os que precisam de nós lamentarão muito. Ainda há o que possamos fazer por nossos povos.
Em resposta, Theseus deu a ele um sorriso entristecido.
— Por favor, senhor Ganymede, senhorita Pollux, e senhor Castor também — disse eu. — Vamos fazer diferente. Não precisamos nos render ao sistema do Anfiteatro. Nós ainda temos escolha.
Todos parecíamos ansiosos. Ser ou não ser digno de Messias? Tomá-lo para si, ou deixá-lo nas mãos de outrem?
Dependendo da decisão deles, poderíamos reduzir os danos, e encontrar um futuro onde não houvesse mais perdedores para serem sacrificados. Só precisávamos que aceitassem a proposta.
— Imperador das Rosas, responda-nos. Tal conduta é permitida? — indagou Pollux.
— Só é preciso que haja um vitorioso comprometido até o dia da Correnteza Eterna. É de livre e espontânea vontade que um herói deve desafiá-lo.
— Está bem. Sendo assim, vocês venceram.
— Verdade?!
— O Messias não me interessa, em particular. Tudo o que me traz alegria é uma luta justa e nobre. Mas o meu irmão mais velho, que vive em mim, não pensa dessa forma. O que me diz, Castor?
— Isso é imprudência disfarçada de sensatez — respondeu.
— Não seja difícil. Por que não damos a eles uma chance?
— Senhor Castor — clamei, batendo com as mãos no púlpito —, eu definitivamente não irei decepcioná-lo.
Não deixei que a firmeza me fugisse. Sem mais delongas, ele deu um leve suspiro.
— ... Que situação. Vocês querem que arrumemos problemas. Mas se é por minha querida e sábia irmã, não tem jeito. Ahhh, inacreditável. Era você quem tinha a obsessão por lutas com espadas, Pollux.
Em nossa alegria incontida, eu e Thes já descemos do púlpito e pulamos para um abraço. Ele me carregou com sua força extraordinária, levantando-me no ar e girando comigo.
Nós conseguimos, conseguimos mesmo!
Eu não tinha nem palavras para agradecer. Para dizer a verdade, dialogar nem foi tão difícil quanto pensávamos que seria, O nervosismo era o que nos mantinha empacados no chão.
Ao término da audiência, um gostinho meio amargo ficou na minha língua. Se desde o início tivesse sido assim, quem sabe Patroclus e Achilles ainda estivessem entre nós.
Se o vovô estivesse aqui, ele diria que eu não tive escolha nisso e que essa responsabilidade não era só minha para carregar. Eu sozinho não tinha o poder para mudar tudo.
Ele sabia o quanto eu costumava me sobrecarregar — até com que não era da minha conta —, e tê-lo para me lembrar disso e puxar a minha orelha era reconfortante.
Sendo um irmão mais velho, eu me sentia responsável pelo bem-estar do Teruki. Desde que ele nasceu, eu me pegava idealizando o irmão que eu deveria ser para dá-lo muito amor.
No velório do vovô, no meio da discussão sobre a herança e o destino da fábrica, eu estava lá atrás com ele no meu colo. Eu queria chegar mais perto do caixão e chorar, mas não pude.
Quem cuidaria do Teruki por mim?
O vovô cuidaria. Ele o carregaria com o mesmo carinho que me deu e diria para eu ir. Não porque gostaria que eu chorasse por ele, mas porque não iria querer que eu engarrafasse essa tristeza.
Agora que podia ser mais sincero comigo mesmo, eu confesso que... eu queria que alguém prestasse mais atenção em mim e nos meus sentimentos. Que alguém me abraçasse em meu luto. Só isso.
— Teeeruuu! — No cenáculo, enquanto eu preparava a mesa para o nosso almoço, Theseus veio cheio de energia e eu o aparei.
— Thes! Vocês demoraram. Aconteceu alguma coisa?
— Eu e Kosmo passamos no hammam para tomar um banho, e aproveitei para cortar as unhas dele. Ele tem um mau hábito de roê-las.
— Não tenho não. Eu só as cutuco — replicou o grisalho, aparecendo logo depois, com uma notória cara de sono.
— E a senhorita Circe? Por que ela não está conosco?
— Ela está ocupada no laboratório — respondeu Thes.
— Eu levo comida para ela depois. Se a atrapalharmos, vai ficar de mau humor por uma semana inteira.
— Hmm... Tudo bem.
— E quanto ao meu irmão? Como ele está?
Balancei a cabeça em negação.
— Isso já é preguiça. Se ele continuar dormindo, me chame que eu vou lá acordá-lo com uns cascudos.
— Nem pense nisso!!
— Ah, o amor fraternal — o pequeno comentou.
— ... Ei, o cabelo de vocês ainda está molhado. Por que não usam a secadora do hammam, hein?
— Ela faz um barulho irritante. Machuca meus ouvidos.
— Se vocês não secarem direito, os fios vão ficar quebradiços. Deixe-me pedir uma toalha às máquinas.
— Teru, seca o meu cabelo pra mim? — indagou Thes.
— É claro. Venha aqui.
A companhia deles não falhava em me fazer sentir melhor.
Meus amigos genuinamente se importavam comigo. Eu tenho certeza que eles consolariam o Terumichi sozinho de dois meses atrás. ... “Não tão sozinho.” Nesse dia, guardei com carinho as palavras da senhorita Circe.
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✤ Museu dos Mistérios da Natureza ✤
Musaeum Mysterium Naturae
Os uniformes utilizados pelos desafiantes da Corte dos Heróis seguem um padrão de design estipulado pelo Anfiteatro.
Embora se baseiem nas roupas utilizadas pelos heróis ao chegarem, não são uma representação inteiramente verossímil do vestuário de Arcadia. E dadas a diferenças regionais e culturais, cada cidade tem sua moda própria.
De qualquer forma, todos são traçados no intuito de realçar a beleza e elegância individual e reúnem algumas características comuns a todos os exemplares, como tecidos brancos e pretos e peças de ouro pintadas com arabescos.
Há também funcionalidades práticas, favorecendo a mobilidade e flexibilidade conforme a necessidade do usuário. No caso de Hector, o intuito é beneficiá-lo em questão de aerodinâmica e agilidade, dando espaço para acomodar as asas.
Os manguitos e pernitos protegem do impacto e de possíveis lesões advindas do esforço físico. Além de firmarem os músculos, eles atenuam a temperatura e impedem o suor de atrapalhar na performance, seja em treino ou em combate.
Apesar de desnecessários no âmbito casual, digamos que são... esteticamente valorizados. Além do mais, as regras solicitam — mas não obrigam — o uso do conjunto completo ao transitar pelo Anfiteatro, como demonstração de nobreza.
Bem, eles são até que atraentes (especialmente para um certo alguém) e super confortáveis.
Tendo em vista a produção em larga escala, um uniforme danificado é descartado e trocado por um set novinho em folha. É possível personalizá-lo e alterá-lo à vontade, solicitando às máquinas do setor de confecção.
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Hey, aqui é o Rafa! Muito obrigado por ler Os Prelúdios de Ícaro até aqui. Considere deixar um favorito e um comentário, pois seu feedback me ajudará bastante!