Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco I

Capítulo 8: A Cura

Parando para pensar, o que me tirou do sono foi o quanto eu me preocupava com Hector. Eu não queria que ele se machucasse e arriscasse a vida novamente, não depois de segurá-lo sangrando.

O problema é que, àquela altura, era inevitável que Achilles fosse desafiá-lo.

Em meu mundo, o mito de Aquiles e Pátroclo era bem conhecido. O filho de Peleu cresceu como um homem arrogante, inclusive com os seus, mas amava profundamente a seu amigo de infância.

Durante a Guerra de Troia, Pátroclo vestiu a armadura de Aquiles e foi morto pelo líder do exército troiano, Heitor. Isso motivou Aquiles a vingar-se no campo de batalha, e sua ira ardeu, incontrolável.

Diz-se que só caiu quando uma flecha disparada por Paris atingiu seu calcanhar.

Eu não era nenhum especialista em mitologia grega, então posso ter me enganado sobre um detalhe ou outro, mas o fato é que, assim como sua contraparte mitológica, Achilles de Angerona estava determinado a lutar.

Hector menosprezou sua pessoa mais querida, e zombou de sua cidade natal. Isso não era uma brincadeira. Muito em breve, o destino poderia acabar se cumprindo como no mito, onde Aquiles mata Heitor.

Eu não tinha como ficar só olhando. Eu era o Filho de Trismegistus, o detentor de um artefato que operava milagres, então algo deveria estar ao meu alcance. O que exatamente eu precisava fazê-los acontecerem?

Descendo a um depósito escondido do Anfiteatro — um mortuário —, segurei o medalhão sobre a estátua de Patroclus e mentalizei a forma que tinha antes de tornar-se ouro. A cor de sua pele, e de seus cabelos.

A pedra escarlate brilhou e reagiu à minha vontade, e segui tentando. O Amaranto era a chave. Uma chave sem um homem para girá-la não é nada, mas eu era um homem. Eu estava ali! Então vamos, realize esse milagre!

... E nada. Nada mudou.

Descontando minha frustração, arremessei o objeto para longe.

Eu detestava esse sentimento de não poder ajudar. De ser um inútil. E veja só, só pra aliviar a minha frustração, eu joguei a coisa mais preciosa que o vovô me deu como se fosse lixo.

Se ele olhava por mim do céu, com certeza estaria entristecido, pois o fez única e especialmente para mim. Sim, eu o vi moldá-lo desde um bloco de metal bruto ao refinado.

Não fazia sentido seu presente se tornar prêmio em um jogo cruel desses, a não ser que... algo tenha sido mantido em segredo de mim, até depois de seu falecimento.

Desabei com os joelhos no chão.

Não adiantava perder a cabeça com isso. O cadáver à minha frente continuaria sendo ouro. Tinha alguém precisando dessa pessoa, nesse momento, mas ela não voltaria.

— No passado, muitos tentaram achar a cura. — Das sombras, ecoou uma voz grave.

Um diamante verde cintilou no gorget do herói dos heróis. Um jovem adulto tão alto que até eu, relativamente maior do que outros garotos japoneses da minha idade, chegava a seu nariz.

Parando no meu medalhão, ele o juntou do chão e me deu.

— Você queria trazê-lo de volta à vida? É por isso que está aqui?

Tomando minha cara pálida como resposta, ajoelhou-se e prendeu um pequeno objeto a uma das orelhas do morto. Um aparelho auricular, daqueles bem arcaicos, enfeitado com joias alaranjadas.

O senhor Patroclus tinha uma deficiência auditiva.

— As pessoas confundem a “cura” com o milagre de trazermos quem perdemos de volta — continuou. — Porém, quando um se torna ouro pela doença, sua vida se esvai. É impossível criar vida a partir do que não tem. Não há volta após a morte. E eu não aceito que haja, se ele não for incluso isso.
— Eu sinto muito, senhor Achilles.
— Você não faz ideia do quanto eu temia você.
— Eu?
— O Filho de Trimegistus deveria ser a entidade solene que guarda o Amaranto e espelha o pecado da alma. E você... você é só um ser humano de bom coração, como ele era — disse. — Sou grato por sua tentativa. Agora, se possível, deixe-nos a sós por um instante.

Cabisbaixo, fiz como pedido.

Em minha própria experiência, palavras de conforto não eram o suficiente para amenizar a dor.

— Por que fez isso, Patroclus? Por que arriscou tudo? Por quê?

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Muitas vozes recitaram um trecho misterioso:

— Esmagai a forma refletida no espelho, para que se dê à luz o cálice ungido em ouro. Em nome da Correnteza Eterna; a tempestade, o percuciente e a destruição dos homens!
— O Anfiteatro dá as boas novas! Que comece a audiência da Corte dos Heróis!

Puxadas por aparatos teatrais, cortinas se abriram uma atrás da outra.

Os holofotes se acenderam para um tribunal circular com dez púlpitos. No mais alto, jazia o Imperador das Rosas portando um malhete de ouro. No oposto estava eu, ao centro dos outros oito púlpitos desocupados.

— A tardia chegada de Achilles de Angerona encerra as vagas desta Corte. Consagrados heróis, na ordem em que aqui chegaram, compareçam diante do Filho de Trismegistus.
— Permita-me, Imperador das Rosas. — Meu anjo, em impecável postura, veio trajando sua armadura dourada. — Hector de Vertumnus, dezessete sóis. Em nome da Correnteza Eterna, estou aqui.
— Que a Estrela do Amanhecer caminhe contigo, comprometido.
— Guiar-me-ei por ela, senhor.
— Em virtude da desclassificação de Patroclus de Angerona, o segundo colocado, prossigamos.
— Castor de Carmenta, dezoito sóis.
— Pollux de Carmenta, dezoito sóis.

Estava certo de ter escutado as introduções de duas pessoas diferentes, mas veio apenas uma.

Pele marrom, cabelos negros, curtos e cacheados, coroados por folhas de louros. Seus olhos, da cor do citrino, eram como estrelas gêmeas brilhando no céu noturno.

Num uníssono que deveria ser impossível, concluíram:

— Em nome da Correnteza Eterna, estamos aqui.
— Dióscuros de Carmenta, irmãos que partilham do mesmo corpo. A partir de hoje, a colocação de vocês mudará para segundo e terceiro, respectivamente.
— Sim, senhor.

Todos os seus adereços eram perfeitamente simétricos, exceto as ombreiras, mais proeminentes à esquerda. Na testa, uma gota lapidada de água-marinha. Feito majestades, posicionaram os braços atrás.

Tratava-se de duas identidades distintas. Uma delas, a quem eu ainda não distinguia, lançou-me um sorriso afetuoso.

— Ganymede de Carmenta, dezenove sóis — disse o quarto colocado. — Em nome da Correnteza Eterna, estou aqui.

Um rosto delicado, como se esculpido por um artesão. Pele bronzeada e cabelos claros. Sedas leves balançavam de seus ombros. Pedras de ametista enfeitavam suas vestes, e seus lábios rosados eram tingidos com batom.

Um homem ou uma mulher? A única certeza que eu tinha era daquela pessoa ser uma das mais lindas que já vi na vida, o que fazia jus ao nome.

Ganymede na mitologia era o mortal mais belo e amável do mundo dos homens, causador de desejo e inveja até entre os imortais. Ele foi raptado por uma águia para viver no Monte Olimpo, onde passou a verter vinho para o rei dos deuses.

Por consequência, sua juventude foi imortalizada.

Seguido a ele, foi a vez dos três a quem eu já conhecia.

— Theseus de Salacia, dezenove sóis.
— Circe de Apollodorus, vinte e um sóis.
— Kosmo de Vertumnus, dezessete sóis.
— Em nome da Correnteza Eterna, estamos aqui.

Hector e Kosmo se encararam, e suas sobrancelhas franziam como se em uma conversação silenciosa. Por mais que não gostassem de se encontrar, um olhar bastava para se comunicarem.

Theseus acenava para mim, dando uma piscadinha. Enquanto isso, a senhorita Circe se mantinha impassível e resoluta, sem manter contato visual com nenhum de nós.

Desconsiderando o do desclassificado, restava um lugar para se ocupar. 

— Poderiam me dizer a finalidade desta audiência? — indagou Ganymede, em tom inquisitivo. — Mal se deu o último combate, e já querem solicitar outro? Que impaciente.
— A audiência de hoje foi requerida por mim.

Empurrando a capa preta nobremente, o último desafiante fez sua entrada.

— Achilles de Angerona, dezenove sóis — apresentou-se. — Em nome da Correnteza Eterna, eu desafio o comprometido, Hector de Vertumnus, a um combate.

Um calafrio me subiu a espinha. O Imperador logo cortou o silêncio instaurado:

— Comecemos, então, o rito preparatório. Desafiante, responde do teu coração: jura seguir, defender e preservar as leis deste Anfiteatro, ainda que tua vida dependa disto?
— Eu juro.
— Jura lutar para alcançar Messias, tendo isto como singular propósito?

Manteve-se silente por alguns segundos.

— Não. Se isso desconsidera Patroclus, então eu recuso. Não quero saber de Messias. Heróis são responsáveis pelo que proferem enquanto empunham espadas. Eu lutarei por vingança, e minha vitória responderá às injúrias atrozes daquele homem!
— Ei, ei, ei! Que história é essa? Por acaso isso é permitido?!
— Desonrando os princípios da Corte, herói dos heróis? — questionou Hector. — Se pretende se prestar ao mesmo ridículo que o seu conterrâneo, eu não terei piedade de você.
— Cale-se, aberração. — Ditas estas palavras, os olhos de seu rival se arregalaram. — Você foi o primeiro a tirar proveito da vantagem das suas asas. Não me venha falar de honra quando não tem coragem de batalhar pisando no mesmo chão que seus oponentes. Todos os povos saberão que você é um transgressor, um usuário de alquimia e uma aberração. Sua queda pela minha lâmina será um ato de misericórdia, para te poupar de um bom apedrejamento.
— O-Ora, seu--...!
— Imperador das Rosas, peço humildemente a palavra.

Subitamente, as luzes se centraram no posto de Castor e Pollux.

— Castor?
— Cavalheiros, perdoem minha intromissão. Acredito que estejamos diante de um mal entendido. Já escutei sobre suas conquistas, príncipe de Angerona. Diga-me: o que te trouxe aqui hoje é o desejo de vingança ou a possibilidade de ressuscitar seu companheiro por meio do Jardim de Rosas da Sabedoria?

— As leis do pacto impossibilitam ressuscitar um herói caído na Corte.
— É mesmo? Então basta dissolver tais leis.
— E desobedecer à Correnteza Eterna inviolável? Por acaso bateu a cabeça, Castor?! — Ganymede, seu conterrâneo, se exaltou.
— Meus caros, não pensemos pequeno se falando de Messias. Da carne ao ouro, do ouro à carne. Carne torna-se ouro na morte alquímica, mas milagre são milagres, o que torna o inverso perfeitamente possível. A Correnteza Eterna é um mero empecilho. Ela pode, sim, ser violada.

A expressão de Achilles mudou. Ao mesmo tempo que não punha crédito nas palavras do dióscuro, era como se a mínima possibilidade de transgredir as limitações o tivesse movido.

— Embora todos aqui vivam como cálices — continuou Castor —, resguardamos desejos em nossos corações. São eles que nos levam às alturas, ao castelo de ouro além dos portões, e pelo bem de realizarmos o que queremos, estamos dispostos a desafiar a ordem divina. Assim sendo, eu e minha irmã não teríamos nada além de respeito por sua determinação, príncipe de Angerona.

Castor e Pólux eram os irmãos gêmeos da constelação de gêmeos. Nos mitos, nascidos do ventre da mesma mãe e de pais diferentes, sendo apenas um — Pollux — o filho possuidor do sangue imortal herdado do rei dos deuses.

Mas essa Pollux era uma mulher, e Castor um homem. Duas identidades de gêneros distintos.

— A nossa opinião é realmente necessária? Blá, blá, blá. Vocês falam demais. Vamos logo com isso.
— Gany, compostura, por favor. — Pollux se fez presente. Como naqueles cortes de edição de filmes e séries, maquiagens refinadas pintaram magicamente seus olhos e boca.
— Meh. Sim, minha senhora Pollux — suspirou, com a chateação notória em seu semblante.
— E quanto a você, comprometido. Mesmo em posse do Filho de Trismegistus, isso não lhe dá o direito de zombar de outro desafiante, e muito menos dos falecidos. Você pode ser o mais jovem entre nós, mas tamanha imaturidade é inadmissível.

Por baixo da quietude, Hector borbulhava de raiva. Rentes ao corpo, suas mãos se cerravam, trêmulas.

Eu hesitava em defendê-lo, embora reprovasse as palavras de Achilles. Suas atitudes perante o restante, até então, expressavam não mais que desprezo gratuito. A única a de certa forma advogá-lo foi quem eu menos esperava fazê-lo.

— Tenho uma constatação quanto à fala de Achilles de Angerona! — exclamou ela.
— Bruxa herdeira do trono de Apollodorus e vice-presidente do Ministério das Ciências, Circe. Seu nome é bem conhecido em Carmenta. Vá em frente.
— Obrigada. Primeiramente, peço que olhem ao redor. Este Anfiteatro funciona através da alquimia. Ela está em nossas armaduras e nossas armas encantadas. Não me coloco em favor de uma luta desigual, tampouco apoio as provocações por parte do comprometido, mas se o simples fato de ele abrir das asas o leva a ser uma aberração, então somos todos aberrações.
— Isso é um afronte, bruxa? — o loiro questionou.
— Entenda como quiser. Estamos em constante contato com o que mana alquimia residual, então corremos todos o mesmo risco. Se é que ela é a causa direta do Declínio, você é tão transgressor quanto ele.
— “Se é que ela é a causa direta do Declínio”...? O que está insinuando?
— Já que as regras da Corte não proíbem o debate sobre o assunto, vamos lá. Não acha contraditório nossa civilização já ter feito uso dela em abundância, e após condená-la, nos mandar a um lugar repleto do que abomina para encontrar salvação?
— ...?!
— Por acaso tem medo da alquimia, herói dos heróis? Pois bem, saiba que até o seu rostinho bonito é fruto da alquimia! — exclamava. — E quanto ao Filho de Trismegistus, a Criança Alquímica em si? Dirá que ele é uma aberração? Daria uma bela hipocrisia, já que é por ele que está lutando!
— Sequer percebe o que está falando?! Você será sentenciada por heresia contra as leis do estado!
— Hahahahaha! Desça até lá e me denuncie! Quer mesmo saber o que é uma heresia? Os apedrejamentos aos quais você se refere tão repugnantemente. Eles são cometidos contra minorias sociais, e a prática é caracterizada pela lei do Conselho Estatal de Justiça como “heresia”! Não saia por aí falando asneiras, seu covarde!
— Seja condenada, vadia! Bruxa louca!! — Ele bateu o punho no púlpito.
— Morra na droga do seu combate! E quando eu achar uma cura para essa doença, você não estará aqui para ver, imbecil!!

Circe parecia ter se tornado outra pessoa, e suas alfinetadas deixavam Achilles ainda mais transtornado. Porém, eu via no retraimento de Kosmo e Hector o que poderia tê-la enfuriado tão repentinamente.

Ao inflamar do debate, as três marteladas do juiz ressoaram.

— Ordem no tribunal! O requerimento de Achilles de Angerona acaba de ser deferido. Em oito dias, encontremo-nos na arena de duelos. Está encerrada esta audiência da Corte dos Heróis!
— Oito dias?!
— O quê? Espere, Imperador das Rosas! Eu ainda não terminei!!

E apagaram-se as lâmpadas. Feito muralhas, as cortinas se fecharam para nós. E eu, eu continuei ali, no espaço vago do velório, sem saber o que fazer pelo caixão de ouro sobre o qual todos discutiam.

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EMBLEMA XIV
Eis o dragão que devora a própria cauda.

“A fome atroz ensinou os polvos a mastigarem as próprias pernas,
e aos humanos a se alimentarem de outros humanos.
À medida que o dragão devora a própria cauda,
torna-se comida para si mesmo.
Ele será domado pela espada, pela fome e pela prisão;
Ele devora e regurgita a si mesmo.
Ele mata e dá à luz a si mesmo.”

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