Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco I

Capítulo 6: O Refúgio

Juntos, fomos a um lugar bem iluminado, repleto de livros, papiros e todo tipo de documento organizados em incontáveis estantes. No centro, havia um pilar com um relógio planetário, movendo miniaturas por mecanismos autômatos.

Um paraíso. Foi a primeira coisa que me veio à mente.

Recebemos crachás de um fantoche vestido de preto, e nossa entrada foi autorizada.

— Esta é a Bibliotheca Alexandrina, ou apenas Biblioteca. Ela fica um pouco isolada do restante do Anfiteatro, mas veja todos esses livros e maquinários. Aqui, você encontra tudo o que pode imaginar: poesias, épicos, escritos sagrados, artigos científicos. Tem também um pequeno laboratório lá atrás.
— Um laboratório?! É sério?
— Sim! Uma das pessoas com quem eu ia me encontrar passa boa parte do tempo lá. Oh, aí está ela.
— Isso seria um... Litoria caerulea? — indagou uma voz curiosa ao meu lado. — Que incomum. Um espécime que só ocorre em Juno.

Espantei-me ao ver uma garota se aproximando e examinando minha rã minuciosamente.

Pele acastanhada, cabelos cacheados e negros. Ela usava brincos grandes e uma coroa de louros. O que mais me chamava atenção, no entanto, era o tom amarelo-esverdeado de seus olhos.

— Mil perdões — pediu, cordialmente. — Essa rã é rara e endêmica. Em outros lugares, costumam ser criadas em cativeiro. Mas, quando isso acontece, elas se reproduzem muito rapidamente, o que me leva a crer que existam mais delas por aqui. Oh, e é um prazer conhecê-lo, Filho de Trismegistus.
— Essa é Circe de Apollodorus! Ela é a mais velha entre nós. A "paixão" dela por animais às vezes toma proporções perigosas. Tome cuidado com sua rã. — Theseus nos fez trocar um aperto de mãos amigável, o que ajudou a acalmar meus ânimos. — E, Circe, o nome dele não é "Filho de Trismegistus". É Terumichi! Terumichi Kin... Kinchou?
— Kinjō. O prazer é meu, senhorita Circe. Vejo que sabia o nome científico da rã-arborícola-de-white. Se interessa por biologia?
— ... Não é bem um interesse. Pertenço ao Ministério das Ciências de Apollodorus, o maior de Arcadia. Química e biologia são apenas algumas das minhas especialidades.
— Woah.
— Porém, saber o nome científico de todas as espécies conhecidas em Arcadia até o momento não é uma obrigatoriedade. Isso, sim, deve se encaixar como um interesse particular.

Theseus, então, a desafiou.

— Então diga o do Cavalo-Touro de Siracusa!
— Equus tauri siracusi.
— E o Sapo Cavalo-Marinho?
— Bufo hippocampi.
— Ótimo! E as Borboletas Siamesas de Carmenta? Essa você precisa saber, hein!
— Fácil. Papilio atalanta kushpadmeni. Página quatrocentos e trinta e seis do Compêndio Oficial das Espécies.
Bravo! Bravo! — Ele bateu palmas, e eu o acompanhei.

Até onde me lembrava, essas espécies não existiam no ecossistema terrestre. Soavam como misturas. Mas, para chegar ao ponto de decorar páginas inteiras, a senhorita Circe só podia ser um gênio de verdade… ou uma completa obcecada. Ou ambos.

Não era à toa que fazia parte de algo tão importante. Eu havia acabado de conhecê-la, mas já a adorava.

Seu vestido preto descia até os tornozelos e possuía uma fenda do lado esquerdo. Também trajava duas peças de armadura, uma no pescoço e outra semelhante a um peitoral, que a faziam parecer uma donzela guerreira.

— Vocês estão fazendo muito barulho — disse uma voz grave, vinda do alto.
— Ah! Kosmo, aí está você!

Acomodado no assento no topo de uma escada personalizada, havia outro rapaz, lendo um pergaminho com um monóculo.

Quando vi seu rosto, dei um sobressalto. Ele era uma réplica perfeita de Hector, mas seus cabelos eram mais volumosos e completamente brancos. Sua voz e seu jeito de falar também eram diferentes.

Ele se espreguiçou e apertou um botão para descer. Balançando a capa que sobrepunha o ombro direito de seu robe, enrolou manuscritos e nos recebeu com um olhar que me paralisava dos pés à cabeça.

Era tão, tão característico que eu o reconheceria em qualquer lugar.

— É inapropriado falar alto num lugar como este, sabiam?
— Não há ninguém aqui além de nós, e o bibliotecário é uma máquina — comentou Circe. O bibliotecário reagiu, oferecendo um crachá para o nada. — Viu? Quem é que vai se incomodar?
Eu vou me incomodar. É um prazer, garoto de Agartha.
— Igualmente.
— Terumichi, esse altão aqui é Kosmo de Vertumnus! — disse Theseus, apoiando-se no largo ombro do rapaz. — Ele é meio sério, mas tem um coração enorme. Deve ter notado que ele e o seu comprometido são parecidos, né? Eles são irmãos gêmeos, mas acabaram se separando enquanto subiam a torre. Foi aí que ele se encontrou comigo e com a Circe.

— Vocês subiram a torre juntos?
— Sim. A subida até o Anfiteatro é repleta de masmorras e labirintos perigosos, e... muitos dos nossos antigos companheiros ficaram para trás, se é que me entende. Só conseguimos chegar aqui porque trabalhamos em conjunto. Sem Kosmo e Circe, acho que eu nem...
— Sem você, também não estaríamos aqui, Theseus — o mais alto o interrompeu.
— É, acho que sim, hehe! Desde que chegamos, a Biblioteca se tornou um ponto de encontro para nós. Acho que já fazem umas...
— Duas semanas — responderam os outros dois, ao mesmo tempo.
— Isso aí. Bem, eu não sou muito de ler, pois, em Salacia, temos uma cultura mais oral. O Kosmo e a Circe são muito inteligentes e me contam várias histórias que leem. Por isso, este é o meu lugar preferido! E olha só, agora temos um novo integrante na equipe!
— Você ao menos perguntou se ele queria ser um integrante ou não?


A ilustração contém colagens com as pinturas “A Torre de Vigia de Mármore na Ilha de Pharus” de Emmanuel Bowen e “Biblioteca de Thorvald Boeck” de Harriet Backer.

Talvez não fosse difícil perceber o quanto eu estava chocado.

Após toda a tensão, ver pessoas da minha idade conversando normalmente, como amigos de escola, me impactou. Até então, eu não conseguia parar de pensar na forma como Patroclus morreu e nas ameaças de Achilles contra Hector.

— ... Ei, vocês não se sentem estranhos com tudo o que está acontecendo? Sobre os duelos, e sobre terem subido a torre para matarem uns aos outros?

Eles se entreolharam, silentes.

— Nós tomamos uma decisão — afirmou Theseus. — É claro que o objetivo inicial de todos nós era alcançar Messias. Seria um orgulho para nossos povos e para aqueles que esperam grandes feitos de nós, mas não queremos morrer por essa causa.
— O consenso foi deixar você e o Amaranto nas mãos do atual comprometido.
— S-Sério?! Então vocês não vão duelar?
— É a opção mais racional.
— Entre os heróis, há líderes e figuras importantes de cidades que agora passam por dificuldades. Para eles, nós representamos uma esperança.
— O que queremos é conter o Declínio. Não importa quem alcance Messias, isso se tornará realidade. Sendo assim, não precisamos jogar nossas vidas fora.

Que alívio.

Enquanto eu tentava encontrar uma forma de evitar que os eventos daquela noite se repetissem, esses três me mostraram que eu não estava totalmente sozinho nisso. Eu não lhes disse, mas a diferença que isso fez para mim foi descomunal.

Vamos lá, Terumichi. Levanta essa cabeça. Para começar a ajudá-los, eu precisava conhecer mais sobre o mundo deles. Então, passei a fuçar de estante em estante em busca de algo que me chamasse atenção, mas os títulos não soavam... esclarecedores?

“O Símbolo da Abstinência Arcadiana: Diana”. “Coletâneas para Panarmônico e a Penitência de Adão”. “Atem, Tese II: Uma Expressão da Sexualidade de Davi". “A Constelação de Carne na Nebulosa αψζ”. “Certidão de Ressurreição do Ovo da Rosa - Sofia”.

Era assustador. Fazia meus gostos em livros parecerem coisa de criança.

— Quer ajuda? — A voz de Kosmo me tirou dos devaneios. Ele se aproximou, ajudando-me a realocar um exemplar na prateleira alta.
— Eu agradeceria, senhor Kosmo.
— Não use honoríficos. Me chame só de Kosmo.
— Oh, certo.

Mais habituado à biblioteca, Kosmo sabia exatamente onde achar cada coisa.

Ele era excessivamente belo, tal qual o irmão, mas sua aura era mais serena e modesta, quase como a de um sacerdote. Talvez a cor de seus cabelos realçasse essa imagem que transmitia.

Isso me lembrou que minha mãe já havia tingido o cabelo de platinado, mas os fios nunca ficaram tão naturais e sedosos quanto os dele. As tintas de Arcadia deviam ser de ótima qualidade.

— Por que me olha assim? — indagou.
— Ah, nada não! É só que... seu cabelo é incrível. Bonito.
— É mesmo? Em Agartha, as coisas devem ser bem diferentes.
— Em que sentido?
— Em Arcadia, crianças com cabelos grisalhos são mortas logo após o parto, pois, segundo superstições, essas características são herdadas de espíritos malignos. Não é algo “incrível” nem “bonito”. Se forem vistas andando livremente, correm o risco de serem apedrejadas ou até assassinadas.
— Só por terem cabelos brancos?!
— Imagino que, onde você vive, isso tenha um significado diferente, então entendo sua reação.

Antes de me surpreender por sua cor de cabelo ser, de fato, natural, me bateu uma angústia ao imaginar que até uma criança poderia ser vitimada por uma discriminação dessas.

— ... Que bom que te permitiram viver. Vertumnus é menos rígida quanto a isso?
— Não. Eu só era útil.
— Útil?
— Quem dera outros como eu tivessem a sorte de nascer como irmão gêmeo de alguém destinado a alcançar Messias.

Ele se virou ligeiramente, seus olhos fugindo dos meus e focando em um ponto adiante.

Ainda que tão, tão semelhantes em aparência, Kosmo e Hector não eram gêmeos idênticos. Ambos tinham uma expressão de aborrecimento, mas as diferenças entre eles iam muito além do que eu imaginava.

Reunimos uns quatro ou cinco livros cada e retornamos ao ponto de encontro. A senhorita Circe e Theseus brincavam com a minha rã e se assustaram com o impacto do peso sobre a mesa.

— Se quiser aprender o básico do básico, isso é um começo. Ah, e este aqui está em formato de poesia. Tem uma versão em prosa, mas não me lembro onde está. Em poesia é mais fácil.
— Sem problemas. Muito obrigado, Kosmo. Isso vai me ajudar bastante. — Folheei os volumes, em busca de ilustrações. — Ohh... É tão estranho enxergar sem meus óculos...
— Não está surpreso com a quantidade de livros? Ou com a grossura deles?
— De forma alguma.
— Alguns já ficam cansados só de pensar em ler um desses.
— Ah, na verdade, sou quase um rato de biblioteca. Leio bem rápido.
— Bom saber.
— Livros históricos, é? — Circe espiava. — O vocabulário deste aqui é bem prolixo. Não vai ficar entediado?
— Podemos pegar algum que fale de algo que ele goste! Por quais assuntos você se interessa mais, Terumichi?

Um assunto que me interessa...?

Na Terra, eu nunca teria respondido com sinceridade, para não acabar deslocado da conversa. Eu falaria de algo mais conhecido, tipo algum anime ou mangá famoso, mesmo sendo mentira, porque era fácil convencer.

Dessa vez, quis acreditar que eles reagiriam da mesma forma que Tsubasa e que realmente ouviriam o que eu tinha a dizer.

 Alquimia. Vocês sabem o que é?

O ar ao redor mudou, assim como as expressões deles.

Eu imediatamente congelei na cadeira. Era como se tivesse acabado de dizer algo muito errado.

— Preciso ir. Me desculpem. — A senhorita Circe se levantou da mesa, visivelmente abatida.
— Circe!
— Theseus, deixe-a.

Os conhecimentos antigos, que o Imperador das Rosas se referia como a origem de todo o mal no mundo, eram chamados pelo povo arcadiano de “alquimia”.

Foi o que Kosmo me explicou depois, revisitando a história de seu mundo, a trajetória da humanidade sob a intercessão de Trismegistus e o encontro com o abutre.

Foi um choque de realidade. O que para mim era um mero interesse intelectual, para eles era a própria causa da pestilência.

De repente, a luz tomou a tonalidade vermelha, reduzindo-nos a silhuetas sombrias. Não mais parecíamos estar ali, ao menos não em carne e osso.

Escutei as vozes daquelas duas máscaras gregas — Tragédia e Comédia — que sempre tratavam de me preparar uma história diferente a cada dia. Tão sarcásticas, deram início a um show.

— Ahhh, e agora? E agora?! Meus colegas de classe descobriram meus gostos hiper-obscuros-que-ninguém-mais-pode-saber! Estou acabado! Ó, destino cruel! Ó, vida injusta! Ó, castigo dos céus! — lamentava Tragédia. — Agora eles vão espalhar para todo mundo que sou esquisito, como um sapo!

Comédia, segurando os fantoches de outras duas máscaras, um em cada mão, indagou:

— Hein? Do que está falando? Não tem como nenhum de nós pensar isso de você, senhor Kaeru! Certo, senhoras Kouri e Kaori?
— Certíssimo, senhor Kaoru! — respondeu a mão esquerda.
— Ah, eu não sei não! — retrucou a mão direita. — Pensando bem, essas marquinhas na cara dele parecem a pele porosa de um sapo! É isso aí! Ele é um sapo disfarçado de ser humano!
— Senhora Kouri!! Não seja inconveniente!

Mas, quando os outros dois a repreenderam, o estrago já estava feito.

— Eu sabia! Agora vou ter que me isolar de tudo e de todos e voltar a viver com os monges budistas do Tibete. Adeus!
— Ah, para, vai. Todo esse drama só porque você guarda fotos de rapazes vestindo cuecas apertadinhas no celular? E espera aí... “voltar”? Você já morou no Tibete?
— Sim, é que meu avô era um mong-... E-Ei! Espera aí digo eu! Eu nunca falei dessas fotos para ninguém! Como descobr-... Ribbit. Ribbit! ... Ribbit?!
— Oops.

No fim, ele realmente não era um sapo, mas uma rã disfarçada. E nunca mais se ouviu falar de um ser humano chamado “Kaeru”.

— Ribbit.

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EMBLEMA V
Coloca um sapo no seio da mulher para que o sugue e ela morra, e que o sapo engorde com o leite.

“Ponha um sapo frio no seio de uma mulher,
para que deste beba feito uma criança.
Deixe-o inchar, até que muito cresça em tamanho,
e que a mulher adoeça e morra.
Então, faça a partir dele um nobre remédio,
que expulsa o veneno do coração e afasta a destruição.”

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✤ Museu dos Mistérios da Natureza ✤
Musaeum Mysterium Naturae

Este é um mapa da Arcadia habitada, reunindo dados superficiais sobre o relevo, localidades importantes, cidades que resistiram ao Declínio e as rotas que levam à Torre dos Filósofos. Trata-se de um modelo simplificado, para fins de reconhecimento.

A superfície é composta majoritariamente por solo, enquanto a água percorre o subterrâneo em ciclos intermitentes. Em termos de proporção, estima-se que a área total seja semelhante à da Austrália terrestre.

Enquanto o oeste e o centro apresentam um clima tropical, o leste é predominantemente desértico, com temperaturas extremas, tanto para mais quanto para menos. Fortuna e Carmenta estão entre as cidades mais quentes, enquanto Juno é a mais fria.

Embora Juno seja a capital, Carmenta é três vezes maior, tornando-se a mais populosa das oito cidades. O que é irônico, considerando que está localizada próxima à “Garganta”, o limiar da possibilidade de assentamento humano e manutenção do ecossistema.

Acredita-se que além do Túmulo do Mundo — um vasto deserto que ocupa quase um terço do continente — não restem vestígios de sociedade e que até mesmo a vegetação tenha se transformado em ouro.

A chance de sobrevivência em uma expedição exploratória até lá é, sem dúvida alguma, zero.

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