Volume I – Arco I
Capítulo 5: A Chave
Nos princípios de Arcadia, o homem vivia em comunhão com a natureza; a Era Dourada, quando as florestas eram verdejantes e os jardins abundantes em flores e frutos.
Em um dia já esquecido pelo tempo, desceu dos céus o Pai de Todos os Milagres, Hermes Trismegistus. Ele concedeu a chama sagrada aos povos que o seguiam e os ensinou a arte da transformação de metais básicos em ouro.
A essa arte chamavam de alquimia.
Através dela, aprendeu-se o que eram as riquezas materiais, e isso os levou a querer mais e mais.
Suas criações começaram humildes, tendo a primeira sido um elixir que curaria todas as mazelas do corpo e os tornaria belos desde o nascer. Em seguida, construíram uma fórmula que os permitiria criar asas emplumadas.
Trismegistus, decepcionado com a ganância humana, concebeu um filho para que servisse como modelo a ser seguido por todos, marcando-o com um brasão. Este foi admirado por ser virtuoso e obediente, e o amor a ele concedido era como o amor aos castelos de ouro.
No entanto, fora condicionado a não libertar as asas. Caso contrário, o brasão seria desfeito e sua essência de perfeição desapareceria.
Foi quando uma catástrofe caiu sobre as terras, e o que uma vez foi Arcadia mudou para sempre.
Enquanto os conterrâneos do Filho de Trismegistus voaram para se salvar do caos e do desastre, ele permaneceu fiel a seu pai e foi lançado a um abismo, sozinho.
Seus lamentos ecoaram pelas colinas que se mantinham firmes. Sobre os escombros do velho mundo grandes fortalezas foram construídas. Muralhas cercaram-nas, e os humanos passaram a viver limitados à proteção que elas ofereciam.
Fora a catástrofe um castigo, ou uma consequência da húbris? Ninguém sabe. Afinal, Hermes Trismegistus desapareceu sem prestar quaisquer explicações. Mas os avisos à humanidade persistiram:
Os pássaros caíram dos céus.
As árvores murcharam uma atrás da outra.
Os animais desapareceram das florestas.
E os humanos, tendo se aproximado demais do patamar dos seres perfeitos, tiveram suas peles manchadas por um ouro que se propagava e consumia vida.
Isso marcou a origem do Declínio, em outras palavras, os prelúdios do dia da Correnteza Eterna. Era a tempestade, o percuciente e a destruição dos homens. O fim definitivo do reino, que certamente se daria caso nada fosse feito para evitá-lo.
O mal trazido pelo uso indevido da alquimia era um erro que precisava ser corrigido, antes que fosse tarde demais.
Como medida preventiva, a prática da alquimia foi proibida pelo ministério. Aqueles que fizessem uso dela sem supervisão seriam presos ou mortos. É claro, não era possível se livrar da beleza, mas nunca mais se usaria das asas para voar.
Os que nasciam eram ensinados a nunca as abrir, porque tanto o processo de abri-las quanto o de recolhê-las era extremamente doloroso e punha riscos à vida. As décadas se passaram, e para além de um temor, isso se tornou um tabu passível de punição.
O aproveitamento indevido dos conhecimentos antigos era um erro que deveria ser corrigido, em honra e glória ao santíssimo e glorioso profeta Hermes Trismegistus.
Oito eram as grandes cidades que sucederam em conter o avanço o Declínio: Vertumnus, Salacia, Apollodorus, Angerona, Carmenta, Quirinus, Fortuna, e a capital imperial, Juno.
Mas, com a grande fome e sede, nenhuma se sustentaria ante o menor dos colapsos. Sem uma salvação por ser concedida a esta era decadente, não haveria um amanhã.
Alguns se desesperaram a esse fato e desobedeceram aos preceitos. Numa tentativa de fugir para Agartha, onde se acreditava não haver maldição, eles voaram até caírem de cansaço.
O único caminho seguro era a Torre dos Filósofos. Uma estrutura magnífica que ligava os dois mundos cindidos. Contudo, não houve um que tenha conseguido adentrá-la senão o próprio criador, Hermes Trismegistus.
Os reis e os sábios iniciaram uma jornada em busca da resposta, deparando-se com incontáveis fracassos, até que lhes surgiu um abutre — um pássaro preto, branco, amarelo e vermelho, cujas palavras não vinham de falsa sabedoria.
Nas garras ele carregava um pergaminho contendo uma promessa de salvação. Uma nova doutrina que instruía cada passo a ser seguido para se atingir o milagre da expurgação do Declínio e a restituição da dignidade humana.
Conforme as escrituras, existia uma ferramenta que, escorrida das asas derretidas do filho sacrificado, fora imbuída com os resquícios da chama sagrada, tornando-se a chave para destrancar os portões do Jardim de Rosas da Sabedoria.
Essa chave era o Amaranto. Mas... o que é uma chave sem alguém para girá-la?
Um herói que transcendia eras se fazia necessário para enfrentar os desafios da torre e obtê-la. O homem absoluto, dotado de grande beleza e poder. Um receptáculo contemplado em completude: o resplandecente Ícaro Messiânico, ou só Messias.
Ele mergulharia no abismo onde caiu o Filho de Trismegistus, libertando-o do tormento e operando milagres eternos. E assim, uma nova era de fartura e prosperidade se abriria.
Ah, há muito tempo a história é contada. Há muito, muito tempo.
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Em uma seção do Museu Nacional de Tóquio há um portal para outra dimensão. Lá descobri a existência de um continente assolado por uma maldição que transforma seres vivos em ouro.
Eu, o Filho de Trismegistus, era o portador da chave necessária para a salvação da humanidade e o prêmio a ser disputado ante o duelo entre heróis.
No dia da Correnteza Eterna, também conhecido como “dia do fim”, aquele comprometido a mim alcançaria Messias, uma existência ideal e perfeita que permearia o Jardim de Rosas da Sabedoria.
Ele tornaria o impossível, como trazer de volta os que se foram, possível.
Mas, aconteceu de o tal Amaranto ser só um medalhão dado pelo meu avô quando eu tinha oito anos, e de as duas pessoas a quem vi lutar terem sido criadas com o propósito de obtê-lo.
Eles tinham sede disso. Era a razão singular de existirem, o que queria dizer que...
... caso perdessem, perderiam também a dignidade como heróis.
Pela lei regida e exercida pelo Imperador das Rosas, o derrotado sofre a penalidade de ser transformado em uma estátua dourada, perecendo no processo.
Embora indivíduos diferentes dos heróis míticos, os destinos atrelados a seus nomes foram decididos antes mesmo de nascerem. E suas histórias, ainda por serem contadas, eram tragédias.
Quando achei que poderíamos resolver as coisas através do diálogo, fomos levados a um impasse com Achilles de Angerona, parceiro do primeiro desafiante eliminado.
— Se o que quer é me matar, desafie-me à Corte — opôs-se o meu comprometido, arrogantemente. — É o mínimo que pode fazer para reaver o orgulho de Angerona. Estarei esperando para arrancar a sua máscara, como fiz com esse fracasso.
Esses insultos carrascos vinham da mesma pessoa cujas feridas curei.
De tantas coisas absurdas e inacreditáveis para se presenciar em um único dia, talvez essa fosse a que mais me assustasse. Eu tinha noção da dor que era perder alguém querido.
O porquê de o senhor Patroclus de Angerona ter escolhido lutar se não era obrigado a isso, eu ainda não sabia. A salvação da extinção, até então, me parecia um objetivo comum a todos.
Se mais conflitos escalassem, o garoto que caminhava à minha frente carregando cicatrizes em suas costas — Hector — poderia acabar igual ele.
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Nos entornos coliseu, deparamo-nos com salões e câmaras que se assemelhavam a cidadelas da antiguidade. Plantas exóticas por todos os cantos, candelabros e a fonte de um homem alado que derramava a água de um cálice.
Padrões circulares, pinturas e esculturas detalhadas. Modelos arquitetônicos clássicos. Era como visitar atrações turísticas de Roma.
Passando por um arco do triunfo, chegava-se a uma espécie de cenáculo com uma grande sacada aberta. Indo ao guarda-corpo, vi a Lua no estreito céu que separava os dois mundos. Acima, a superfície terrestre. Abaixo, um mar de nuvens.
O vento frio batia em meu rosto. Eu mal conseguia conter o deslumbramento. A mera possibilidade de respirarmos tão puramente me era surreal.
Realmente estávamos no intermédio entre os dois lados da torre, mas a direção à qual a gravidade nos puxava era a oposta à da Terra. O que para mim era cima, ali era baixo e vice-versa.
— Não conseguirá ver nada com as nuvens cobrindo a superfície — disse Hector, cruzando os braços. — Por curiosidade, vocês de Agartha sabem o que são “nuvens” ou “noite”?
Hesitei em respondê-lo, pois ainda estava magoado com seu desrespeito pela morte do outro.
— Sim, é claro.
— Oh? Vocês não vivem debaixo da terra? Como podem saber o que são nuvens, ou o que é o dia e a noite?
— Debaixo da terra? Do que está falando?
— Deixa pra lá. De qualquer forma, até em céu limpo não há nada agradável para se ver.
— Por causa do Declínio?
— Sim. Tudo foi corrompido, seja o mar, as montanhas, florestas e desertos. Não há um lugar seguro para além das muralhas das cidades — explicou. — Venha, por aqui.
Ele me levou a um aposento largo e chique, com uma majestosa cama no centro. Símbolos nas paredes, como mandalas, e luzes amarelas. Era lindo. Parecia até o leito de um deus. E então...
Ribbit. Eu ouvi um... coaxo?
Quando abaixei a cabeça, ao redor dos meus pés havia dezenas de rãs verdes e gordinhas com olhares esbugalhados. Rápido começaram a pular em mim e se pendurar nas minhas roupas.
— Aqui é onde você vai dormir a partir de hoje. Boa noite.
— Hã?! Espera aí, Hector!
— O que foi?
— Como assim “o que foi”? O que são todos esses bichos?!
— Rãs.
— Não é isso que eu quis dizer! Eu tenho que dormir no mesmo quarto que um monte delas?!
— Elas são bem cuidadas e não transmitem doenças. Em Arcadia, rãs são o animal de estimação mais comum. Até mais.
Sem mais nem menos, ele me deixou sozinho com os sapos, quer dizer, rãs, e foi embora. Meu grito deve ter sido escutado longe.
Me doía dizer, mas esse rapaz de dezoito anos tentando desesperadamente se soltar das patas de anuros era eu, Terumichi Kinjō. Aluno de honra da Academia Kinran, não que isso importasse mais.
Me remexendo pra lá e pra cá, acabei percebendo que a fixação delas não era por mim e sim pelo medalhão. Quando o deixei sobre uma mesa de mármore — que alívio —, todas se acumularam sobre o objeto, exceto uma, acomodada na minha toga.
Ela era bem quietinha, e tinha uma carinha fofa. Até lambeu o meu dedo.
Depois de tudo o que se deu em tão pouco tempo, eu não conseguiria dormir. Para ver se eu processava as informações e esfriava um pouco a cabeça, dei uma volta pela cidadela com o meu novo bichinho.
Era uma rã-arborícola-de-white, com o ventre branquinho, olhos dourados e pupilas horizontais. Enquanto eu a observava comer vagalumes, à beira da fonte, o tempo ia passando e passando.
Arcadia. Esse era o nome do mundo de cá, enquanto ao de lá, o meu, chamavam de Agartha.
Eu lembrava de já ter lido ou escutado sobre essas nomenclaturas na Terra, conquanto possuíam significados um pouco diferentes dos daqui.
Infelizmente, no momento que me transformei, o meu uniforme escolar e a minha bolsa evaporaram. Se ao menos meu celular estivesse comigo, eu teria como pesquisar.
Uma mão de ouro me apareceu do nada, oferecendo o aparelho em um prato.
— Oh, muito obrigado. — O catei, e logo desbloqueei a tela.
... Espera. O que havia acabado de acontecer ali não fez o menor sentido, fez?
Averiguei a área, mas não achei nada nem ninguém que o pudesse ter trazido. Uhhh, acho que se eu pensasse demais, acabaria enlouquecendo. De qualquer forma, eu não sei como esperava usar a internet, se ali não tinha sinal!
— Posso devolvê-lo? — perguntei aos ventos, já imaginando que a única resposta que eu teria era o coaxo da minha companheira.
— Devolver o quê?
Num sobressalto, me virei.
Aproximava-se de mim um garoto ruivo numa roupa branca. Pele bronzeada e olhos azuis-esverdeados. Ele era baixinho, mas seus braços e pernas tinham músculos bem desenvolvidos e cicatrizes.
Aparentava ser mais jovem do que eu. Eu o daria uns quinze ou dezesseis anos.
— Que surpresa. Você é o Filho de Trismegistus, né?
— Provavelmente. E você é...?
— Theseus de Salacia. Mas você pode me chamar de Thes, ou do que preferir! Sou um dos desafiantes da Corte dos Heróis. É um prazer conhecê-lo! — Um cumprimento firme. Que mocinho simpático e educado. Quase que imediatamente, meu descontentamento se desmanchou num sorriso.
— O prazer é meu, Thes. Eu me chamo Terumichi Kinjō, mas só Terumichi está bom!
Ele me fitou, atônito.
— Então o Filho de Trismegistus tem um nome, e um bem diferenciado! Eu nunca imaginei que você realmente existisse, ou que fosse um ser humano. Pra mim o Filho de Trismegistus era uma metáfora, como as muitas que contam na minha terra natal.
— Uma metáfora?
— Deixe-me ver. Já ouviu falar de um monstro que vive no fundo do oceano, o Leviatã?
— Esse nome me é familiar.
— Sério?! Em Salacia, quando atingimos a maioridade, aprendemos que o sagrado Leviatã do qual falavam para assustar as crianças nunca existiu de fato. Na verdade, ele tinha todo um significado de controle e dominação por trás. Venha comigo, e eu te explico. Estou indo me encontrar com umas pessoas!
Nesse caso, ele já era maior de idade, mesmo parecendo tão novo.
De cara, busquei minha rã e o segui. Mesmo já tendo lido sobre um Leviatã similar nas aulas de filosofia, eu quis ouvir sua versão até o final. Ele falava muito bem, e tinha uma dicção super refinada para contar histórias.
Theseus diferia do que eu imaginava ser um desafiante. Ele era como um raio de sol aparecendo à meia-noite; improvável, caloroso.
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