Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco I

Capítulo 4: O Combate

Muros se ergueram de aberturas no chão.

Vimo-nos cercados por uma fortaleza. No centro do cenário, uma estátua de uns vinte metros de altura, vestindo o mesmo que o guerreiro silencioso. No mármore, lia-se “Achilles de Angerona”.

De um voo rasante, o anjo desferiu uma investida, por pouco bloqueada.

— Hah, então você é Achilles, o herói dos heróis — provocava. — Eu esperei pelo momento em que nos encontraríamos. Vamos, me mostre do que você é capaz!

Eles correram por escadas e plataformas suspensas, trocando golpes e mais golpes, e causando um estrago com suas armas encantadas.

Uma briga sem sentido dessas só acabaria com os dois feridos. Com um nó na garganta, eu tentei gritar e pedir para que parassem, mas minha voz não os alcançava.

— Por que estão lutando? O Amaranto está aqui! Eu não preciso dele! Se essa é a chave para salvar a humanidade, usem dela de uma vez...!
— Sem uma porta para ser aberta, uma chave não passa de um item sem propósito — recitou o monarca de seu púlpito.
— Uma porta?

Um corte enfuriado decepou a cabeça da estrutura gigante, fazendo-a despencar. Os dois saltaram para fora da fumaça, e suas lâminas se chocaram.

A mão de Hector, por sua vez, pesava mais do que a dele.

— Esse não é o seu verdadeiro poder. Você o está escondendo. Onde ele está, Achilles de Angerona? Responda!
— ...
— Nós, heróis, lutamos com o orgulho em jogo e oferecemos corpo e sangue ao campo de batalha. Mas você... você não tem orgulho. Sua desgraça! Se não pretende levar isso a sério, então saia! Saia desta arena!! Você não merece estar aqui! Você não merece vestir essa máscara...!!

O propeliu ferozmente, fazendo-o perder a posição, mas este não recuou.

Muito pelo contrário, revidou tão certeiro que, mesmo com o desvio, deixou um risco profundo na medalha que Hector carregava no peito. Por um triz, não atingiu máscara.

Isso bastou para alarmar o anjo e fazê-lo recuar para um terreno mais alto. Segurando o objeto trincado, ele riu, convencido:

— Hehe.

Quanto mais violentos se tornavam os afrontes, mais entretido parecia. Tendo lido os padrões dos movimentos do adversário, passou a só os esquivar, brincando e tirando sarro à adrenalina da disputa.

— Está perdendo a graça. — Secou o suor com a luva. — Espero que o próximo seja melhor do que você.

A construção onde pisavam se elevou, formando o que se assemelhava a uma ponte ligando duas torres.

Sobre ela, os guerreiros dispararam para o ataque de misericórdia. A máscara de Achilles foi lançada longe, partida em dois pedaços, e caiu próxima ao nariz do cabeção de pedra espatifado.

Seus castelos e fortalezas retornavam ao subtérreo, e o que sobrou em campo foi um perdedor amedrontado, escondendo o rosto. Sua competência não se equiparava à do oponente.

— O comprometido é o vencedor do combate de abertura! Patroclus de Angerona está oficialmente desclassificado da Corte dos Heróis!

Tanto eu quanto Hector ficamos espantados. Aquele não era Achilles?!

Cristais de topázio imperial brilharam dos olhos do Imperador, emitindo clarões amarelos piscantes incômodos à vista. E Patroclus, trêmulo e gemendo de dor, desabou no chão.

Larguei o cetro e corri para ajudá-lo, mas já era tarde demais. Sua pele acastanhada havia se transformado em... ouro. Agora, não passava de uma peça inanimada, como a plateia e a orquestra.

Naquele momento, tive a impressão de estar em outro lugar, em outro tempo. Era o velório do vovô.

Adiante, um caixão se ouro, sobre o qual muitos parentes pranteavam e discutiam por causa de dinheiro. Fiquei à sombra com o Teruki no colo, observando o que falavam e faziam.

Lembro-me bem, muito bem. Eu não podia fazer nada a respeito, nem chorar, ou isso os deixaria ainda mais estressados. Se eu não fosse forte e resiliente, acabaria quebrando sob pressão.

As circunstâncias atuais eram contrárias. Não era barulhento, mas a quietude me fazia sentir do mesmo jeito: sufocado.

O combate deveria ter como finalidade derrubar a máscara do oponente, mas terminou com alguém vitimado pela mesma maldição do ouro da qual buscavam salvar-se.

— Pelas leis da Corte dos Heróis, o perdedor do duelo é julgado indigno de alcançar Messias e se torna uma peça de ouro, para sempre — disse Hector, frio em tom. — Ele sabia disso, e aceitou os termos por conta própria. Até o dia da Correnteza Eterna-...
— Até o dia da Correnteza Eterna, o quê?! — interrompi. — A salvação da humanidade precisa ser ao custo da morte de alguém? Isso é horrível! Que tipo de Messias é esse?!
— Uma existência sublime, amada e contemplada por todos — declarou o Imperador. — É preciso que haja um herói que transcende eras. Um vencedor digno de estar comprometido a ti e de abrir os portões do Jardim de Rosas da Sabedoria.

Vi um jardim extenso, cuja terra manava leite e mel.

Um caminho iluminado que levava a um castelo de ouro — o santuário de deus —, onde cestos fartos em maçãs e rosas douradas brilhavam sob um Sol deslumbrante.

Para além do céu onde ecoava o canto de milhões de pássaros, pairava um rochedo com um homem alado acorrentado, e abaixo dele, um cálice com uma chama inextinguível.

— Lá, residem tesouros preciosos e inimagináveis. Riqueza. Felicidade. Reconhecimento. O poder para operar milagres, inclusive reverter a morte pelo ouro. Alcançar Messias é tornar isso possível.
— Reverter a morte pelo ouro? Ressuscitar os mortos?!
— No entanto, tornar-se uma peça de ouro ante à derrota é um dos termos do pacto desta Corte. Logo, nem mesmo um milagre pode violá-lo.
— ... Então mesmo que todos os outros voltem, essa pessoa, Patroclus, não voltará?
— Quando o Filho de Trismegistus caiu no abismo, seu corpo foi condenado a expor as asas ocultas à luz do Sol Sagrado. Do fluido derretido surgiu o Amaranto, uma chave para adentrar o paraíso de salvação. Tendo essa existência preciosa servido como sacrifício, o reino humano perdurou ao domínio da Correnteza Eterna.

Com aqueles heróis não era diferente.

Moldados em poder e graça — assim como Davi foi esculpido a partir de um bloco de mármore —, eles não tinham outro propósito senão a sede pelas alturas. Falhar em tal destino significava morrer para si mesmo.

E nessa morte, sacrifica-se o que restou de si pela glória vindoura, afirmou o Imperador.

— É desumano sujeitar alguém a isso.
— Tu, que foste marcado com o brasão de ouro, deverias ser capaz de entender o desespero por ser precioso.

Aquelas palavras me acertaram como uma flechada certeira, fazendo-me voltar aos sentidos e abrir os olhos para o vazio do Anfiteatro.

— A Correnteza Eterna pode ser a tempestade, o percuciente e a destruição dos homens, mas é clemente por natureza. — O vencedor desvestiu a máscara, chamando-me a atenção. — Como o Imperador disse, só é preciso um comprometido digno até a data limite. Não é obrigatório que um desafiante lute.

Sendo assim, ainda havia uma maneira de lidar com a situação pacificamente. Uma possibilidade, ao menos.

As placas do teto do Anfiteatro se abriram, mostrando-nos o céu estrelado. ... Não. Prestando mais atenção, não eram estrelas, mas a superfície noturna da Terra, com luzes das cidades formando constelações.

E o outro lado da torre, por onde vim, já não existia.

— Eu não posso mais voltar?
— Não. Até o dia da Correnteza Eterna, o Filho de Trismegistus permanecerá no Anfiteatro.
— ...
— Vamos embora. Não há mais nada a ser feito aqui.

Eu perdi o caminho de volta. Não sabia nem quanto tempo ficaria longe de casa.

Todos deviam estar preocupados, vasculhando cada canto do museu em minha procura. Conhecendo meus pais, eles certamente se desesperaram, especialmente minha mãe.

Me peguei imaginando como Tsubasa reagiu a isso, e entristeci-me. Como seria se eu tivesse abraçado seus sentimentos ao invés de negá-los? Eu teria me arrependido do mesmo jeito?

Agora que fiz a minha escolha, devanear sobre isso era inútil, eu acho.

— Ugh... Arrgh--...!

Escutei Hector grunhir.

Suas asas estavam ficando mais curtas e desplumando. Ou melhor, ele estava... guardando-as, transformando-se em um homem normal. Mas esse processo era tão doloroso que ele gritava e se contorcia, mal conseguindo permanecer de pé.

Assim que o segurei, minha mão ficou encharcada com a quantidade exorbitante de sangue que escorria de suas costas.

— Hector? Hector, fale comigo, o que está acontecendo?!
— O Amaranto, use-o!
— O Amaranto?
— Depressa!!

Eu juntei o cetro luminoso e o aproximei das brechas em carne viva, e de imediato, a dor aliviou. As cabeceiras adentraram completamente, e a pele começou a cicatrizar.

Permanecemos abraçados em meio às centenas de milhares de penas soltas. Com força nas mãos, ele apertava minha camisa.

— Está tudo bem. Já passou, já passou. — Como fazia com meu irmãozinho quando ele chorava, o afaguei em consolo.

Aquele em meus braços já não era o anjo ou herói sem remorso ao qual assisti lutar. Ele soluçava como se fosse só uma criança. ... Uma criança perdida e desamparada.

O destino que o levava a buscar esse Messias era cruel.

Lá dentro, algo me comovia a querer fazer alguma coisa, qualquer coisa, desde que fosse para ajudar esse menino. Era uma angústia, ou uma saudade inexplicável.

— Como está?
— Melhor.

Passos ecoaram da entrada. Hector se separou de mim abruptamente, enxugando as bochechas e retomando a faceta imponente.

Apareceu ao claro um homem jovem e alto, com trajes quase iguais aos do perdedor. Sua pele, contudo, era branca, e seus cabelos loiros e ondulados caíam sobre os ombros.

Com os olhos arregalados, ele se prostrou perante a figura de Patroclus, afagando seu rosto duro.

— P-Patroclus...

De cara, eu soube quem era: o homem representado na estátua da cenografia de combate, o legítimo Achilles de Angerona.

Sem lágrimas para derramar, seu semblante se incendiou em ira, ira esta que o fez sacar sua longa espada e apontá-la ao vitorioso.

— Hector de Vertumnus. Você... é um homem morto...!!

ᛜᛜᛜ

EMBLEMA XXVII
Aquele que se esforça para adentrar o Jardim de Rosas da Sabedoria sem a chave é como um homem que anda sem os pés.

“O Jardim de Rosas da Sabedoria é abundante em flores,
Mas os portões estão sempre trancados por ferrolhos fortes;
Sua única chave é mantida no mundo como uma coisa vil.
Sem ela, caminharás como se não tivesses pés.
Tentarás em vão escalar o topo íngreme do Monte Parnaso.
Tu, que mal tem força o suficiente para permanecer de pé em terra firme.”

ᛜᛜᛜ

Hey, aqui é o Rafa! Muito obrigado por ler Os Prelúdios de Ícaro até aqui. Considere deixar um favorito e um comentário, pois seu feedback me ajudará bastante!



Comentários