Volume I – Arco I
Capítulo 4: O Combate
Muros se ergueram de aberturas no chão.
Vimo-nos cercados por uma fortaleza. No centro do cenário, erguia-se uma estátua de uns vinte metros de altura, vestida como o guerreiro silencioso. No mármore, lia-se: "Achilles de Angerona".
Num voo rasante, o anjo desferiu uma investida, bloqueada por pouco.
— Hah, então você é Achilles, o herói dos heróis — provocava. — Eu esperei por esse momento. Vamos, me mostre do que você é capaz!
Eles correram por escadas e plataformas suspensas, trocando golpes ferozes, suas armas encantadas causando um estrago nos arredores.
Derrubaram pilares, arrombaram portões e despedaçaram os muros da fortaleza, que pareciam frágeis demais para serem reais — o que explicava sua destruição com tamanha facilidade.
M-Mas... uma luta sem sentido como essa só acabaria com os dois feridos. Com um nó na garganta, tentei gritar, implorar que parassem, mas minha voz não os alcançava.
— Por que eles estão lutando? O Amaranto está aqui! Eu não preciso dele! Se essa é a chave para salvar a humanidade, usem-na de uma vez...!
— Sem uma porta a ser aberta, uma chave não passa de um item sem propósito — recitou o monarca, de seu púlpito.
— Uma porta?
De repente, um corte enfuriado decepou a cabeça da escultura gigante, fazendo-a despencar e levantar uma cortina de fumaça. No curto instante em que desviei a atenção, eles... já haviam descido do alto?!
Rasgando a névoa de poeira, eles retornaram à superfície da arena, suas lâminas se chocando em um barulho estridente. A mão de Hector, por sua vez, pesava mais do que a do oponente.
— Esse não é o seu verdadeiro poder. Você o está escondendo. Onde ele está, Achilles de Angerona? Responda!
— ...
— Nós, heróis, lutamos com o orgulho em jogo e oferecemos corpo e sangue ao campo de batalha. Mas você... você não tem orgulho. Sua desgraça! Se não pretende levar isso a sério, então saia! Saia desta arena!! Você não merece estar aqui! Não merece vestir essa máscara...!!
Com um golpe feroz, tentou desestabilizá-lo, mas Achilles não hesitou.
Muito pelo contrário, revidou tão certeiro que, mesmo com o desvio, deixou um risco profundo na medalha que Hector carregava no peito. Por um triz, não atingiu sua máscara.
O anjo recuou, buscando um terreno mais alto. Era um mastro onde tremulava uma bandeira que eu não reconhecia. Segurando a medalha trincada, ele riu, convencido.
— Hehe...!
Trocou a espada de mão e retomou sua posição.
Quanto mais violentos se tornavam os afrontes, mais entretido ele parecia. Depois de ler os padrões dos movimentos do adversário, passou a apenas se esquivar, brincando, saboreando a adrenalina da disputa.
— Está perdendo a graça. — Secou o suor com a luva. — Isso é tudo o que a cidade de Angerona tem a oferecer?
— ...
— O seu silêncio já me tirou do sério. É isso, cansei de você. Vou te dar o fim que merece. Espero que o próximo me divirta mais.
A estrutura onde pisavam se elevou, formando uma ponte que ligava duas torres. Separados por uma longa distância, os guerreiros avançaram ao mesmo tempo, prontos para o golpe final.
A poeira se ergueu com cada passada. No instante em que se encontraram, houve um estalo. A máscara de Achilles voou longe, partindo-se em dois pedaços, até cair junto ao nariz da estátua destroçada.
Os castelos e fortalezas se retraíram para o subsolo, deixando para trás apenas um perdedor amedrontado, escondendo o rosto.
— O comprometido é o vencedor do combate de abertura! Patroclus de Angerona está oficialmente desclassificado da Corte dos Heróis!
Tanto eu quanto Hector ficamos atônitos. Aquele não era Achilles?!
Cristais de topázio imperial brilharam nos olhos do Imperador, emitindo clarões amarelos piscantes que feriam a vista. Patroclus, trêmulo e gemendo de dor, desabou no chão.
Soltei o cetro e corri para ajudá-lo, mas já era tarde demais. Sua pele acastanhada havia se transformado em... ouro. Agora, ele não passava de uma peça inanimada, como a plateia e a orquestra.
... Por quê?
Naquele momento, tive a impressão de estar em outro lugar, em outro tempo. Pessoas vestidas de preto, e um cheiro que eu não conseguia descrever. Era o dia do velório do vovô, há dois meses atrás.
Adiante, um caixão de ouro, sobre o qual muitos parentes pranteavam e discutiam por causa de dinheiro e herança. Eu fiquei à sombra com o Teruki no colo, observando o que falavam e faziam.
Lembrava-me bem, muito bem. Eu não podia fazer nada a respeito, muito menos chorar, ou isso os deixaria ainda mais estressados. Se eu não fosse forte e resiliente, acabaria quebrando sob pressão.
As circunstâncias atuais eram contrárias. Não era barulhento, mas a quietude me fazia sentir do mesmo jeito: sufocado. Esse rapaz, Patroclus de Angerona... morreu? Assim, como se não fosse nada?
O combate deveria ter como finalidade derrubar a máscara do oponente, mas terminou com alguém vitimado pela mesma maldição do ouro da qual eles buscavam se salvar, e salvar seus povos.
— Pelas leis da Corte dos Heróis, o perdedor do duelo é julgado indigno de alcançar Messias e se torna uma peça de ouro, para sempre — disse Hector, com uma frieza cortante. — Ele sabia disso, e aceitou os termos por conta própria. Até o dia da Correnteza Eterna-...
— Até o dia da Correnteza Eterna, o quê? — interrompi, com os olhos lagrimando. — O-O que foi isso, Hector? A salvação da humanidade precisa ser ao custo da morte de alguém? Isso é horrível! Que tipo de Messias é esse?!
— Uma existência sublime, amada e contemplada por todos — declarou o Imperador. — É preciso que haja um herói que transcende eras. Um vencedor digno de estar comprometido a ti e de abrir os portões do Jardim de Rosas da Sabedoria.
Vi um jardim extenso, cuja terra manava leite e mel.
Um caminho iluminado que levava a um castelo de ouro — o santuário de deus —, onde cestos fartos em maçãs e rosas douradas brilhavam sob um Sol deslumbrante.
Para além do céu onde ecoava o canto de milhões de pássaros, pairava um rochedo com um homem alado acorrentado, e abaixo dele, um cálice que abrigava uma chama inextinguível.
— Lá, residem tesouros preciosos e inimagináveis. Riqueza. Felicidade. Reconhecimento. O poder para operar milagres, inclusive reverter a morte de ouro. Alcançar Messias é tornar isso possível.
— Reverter a morte de ouro? Ressuscitar os mortos?!
— No entanto, tornar-se ouro ante à derrota é um dos termos do pacto desta Corte. Logo, nem mesmo um milagre pode violá-lo.
— ... Então, mesmo que todos os outros voltem, Patroclus, que perdeu, não voltará?
— Quando o Filho de Trismegistus caiu no abismo, seu corpo foi condenado a expor as asas ocultas à luz do Sol Sagrado. Do fluido derretido surgiu o Amaranto, uma chave para adentrar o paraíso de salvação. Com seu sacrifício precioso, o reino humano perdurou sob o domínio da Correnteza Eterna.
Com os heróis, não era diferente.
Moldados em poder e graça — assim como Davi foi esculpido a partir de um bloco de mármore —, eles não tinham outro propósito senão a sede pelas alturas. Falhar em tal destino significava morrer para si mesmo.
E, nessa morte, sacrifica-se o que restou de si pela glória vindoura, afirmou o Imperador.
— I-Isso é errado. É desumano sujeitar alguém a isso.
— Tu, que foste marcado com o brasão de ouro, deverias ser capaz de entender o desespero por ser precioso.
Aquelas palavras me acertaram como uma flechada certeira, fazendo-me voltar aos sentidos e abrir os olhos para o vazio do Anfiteatro.
— A Correnteza Eterna pode ser a tempestade, a destruição dos homens, mas é clemente por natureza. — O vencedor desvestiu a máscara, chamando minha atenção. — Como o Imperador disse, basta um comprometido digno até a data limite. Não é obrigatório que um desafiante lute.
Sendo assim, ainda havia uma maneira de lidar com a situação pacificamente. Uma possibilidade, ao menos. Mas, eu... eu acabei de ver uma pessoa morrer, bem na minha frente. Para eles, isso era normal...?
As placas do teto do Anfiteatro se abriram, revelando o céu estrelado. Ou não. Prestando mais atenção, percebi que não eram estrelas, mas a superfície noturna da Terra, com as luzes das cidades formando constelações.
E o outro lado da torre, por onde eu vim, já não existia.
— Eu não posso mais voltar?
— Não. Até o dia da Correnteza Eterna, o Filho de Trismegistus permanecerá no Anfiteatro.
— Quando é esse dia? Eu tenho uma família, lá do outro lado. E-Eu quero ir pra casa. Não posso ficar aqui por muito tempo. Eu preciso-...
— Ainda não entendeu a situação em que está? — ele cortou. — Mesmo se isso fosse permitido, não há como você voltar. O outro lado da Torre já desapareceu.
— ...!
— Vamos embora. Não há mais nada a ser feito aqui.
Meus dedos tremiam.
Hector tinha razão. Eu perdi o caminho de volta.
Todos deviam estar preocupados, vasculhando cada canto do museu em minha procura. Conhecendo meus pais, certamente já estariam desesperados. Minha mãe, principalmente.
E Tsubasa...? Onde ele estava? Será que estava bem? Será que estava seguro, depois de nos separarmos? Era estranho pensar nisso agora. Eu tomei uma decisão errada. E não havia mais como refazê-la.
... E agora? O que eu faço?
— Ugh... Arrgh--...! — Hector grunhiu.
Suas asas encolhiam, desplumando-se. Ou melhor, ele estava as guardando, transformando-se em um homem comum. Mas o processo era tão doloroso que ele gritava, contorcendo-se, mal conseguindo permanecer de pé.
Assim que o segurei, minha mão ficou encharcada pelo sangue que escorria em torrentes de suas costas.
— Hector? Hector, fale comigo, o que está acontecendo?!
— O Amaranto, use-o!
— O Amaranto?
— Depressa!!
Eu juntei o cetro luminoso e o aproximei das brechas em carne viva. De imediato, a dor aliviou. As cabeceiras adentraram completamente, e a pele começou a cicatrizar. O Amaranto o estava curando.
Permanecemos abraçados em meio às centenas de milhares de penas espalhadas. Com força nas mãos, ele apertava minha camisa.
— Está tudo bem. Já passou, já passou. — Como fazia com meu irmãozinho quando ele chorava, afaguei suas costas.
Aquele em meus braços já não era o anjo ou herói sem remorso que eu havia assistido lutar. Ele tremia tanto quanto eu e soluçava igual uma criança... uma criança perdida e desamparada.
Apesar do medo, algo dentro de mim me comovia a querer fazer alguma coisa, qualquer coisa, desde que fosse para ajudá-lo. Era uma angústia, ou uma saudade inexplicável.
— Como está?
— Melhor.
Passos ecoaram da entrada. Hector se afastou abruptamente de mim, enxugando as bochechas e retomando sua expressão imponente.
À luz, surgiu um homem jovem e alto, com trajes quase idênticos aos do perdedor. O mesmo cinturão, a mesma coroa de louros. Sua pele, no entanto, era clara, e seus cabelos loiros e ondulados caíam sobre um dos ombros.
Com os olhos arregalados, ele se prostrou diante da figura de Patroclus, afagando seu rosto rígido.
— P-Patroclus...
De cara, eu soube quem era.
O homem representado na estátua da cenografia de combate: o legítimo Achilles de Angerona. Sem lágrimas para derramar, seu semblante se incendiou em ira, e, tomado por ela, sacou sua longa espada da bainha, apontando-a para o vitorioso.
— Hector de Vertumnus. Você... é um homem morto...!!
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EMBLEMA XXVII
Aquele que se esforça para adentrar o Jardim de Rosas da Sabedoria sem a chave é como um homem que anda sem os pés.
“O Jardim de Rosas da Sabedoria é abundante em flores,
Mas os portões estão sempre trancados por ferrolhos fortes;
Sua única chave é mantida no mundo como uma coisa vil.
Sem ela, caminharás como se não tivesses pés.
Tentarás em vão escalar o topo íngreme do Monte Parnaso.
Tu, que mal tem força o suficiente para permanecer de pé em terra firme.”
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