Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco I

Capítulo 3: A Torre

Pela lei do sacrifício equivalente, o preço a ser pago para continuar sendo o ouro para o mundo era abdicar do que eu tinha de mais precioso.

E para acatá-la, eu arruinei a oportunidade que eu tinha de ser honesto comigo mesmo. Eu não tinha mais como voltar atrás e dizê-lo que eu também o amava.

A partir desse dia, nada seria o mesmo.

Com a cabeça pesada, vagueei próximo ao acervo da macieira de ouro, notando que ela não estava mais lá. O calçamento do jardim levava a uma porta aberta, de onde saía luz diurna.

... Que estranho. Quando chegamos, o tempo estava péssimo. E não tinha como um objeto daquele tamanho e peso simplesmente desaparecer.

Com cuidado para não danificar nada, caminhei até lá, protegendo meus olhos da claridade.

Se desvelou para mim uma paisagem paradisíaca. Campos floridos e pálidos. No topo de um penhasco separando a terra firme do mar, havia uma torre tão alta, mas tão alta, que mal se via o topo.

Ao longo dela, as nuvens densas desenhavam espirais e se abriam para um... outro mundo, um virado de cabeça para baixo. Impossível. Algo assim definitivamente não podia existir.

Tirei os óculos e pisquei várias vezes, para ter certeza de que não foi só um delírio. De súbito, senti algo ardendo em meu peito. Era o medalhão do vovô.

— A-Ai, ai, ai — grunhi, tirando-o de baixo da camisa.

A joia brilhava em um vermelho ardente e vivo, que reagia à presença da torre. Era como se me pedisse para adentrá-la.

... Nem pensar.

Dei as costas e voltei, apenas para descobrir as portas trancadas. Ai, que droga. E agora, o que eu deveria fazer? Mesmo se eu gritasse, ninguém ouviria dali.

O celular também ficou sem sinal. Os números para os quais eu ligava davam fora da área de cobertura.

Antes que perdesse a compostura, respirei fundo. Talvez eu devesse corresponder à vontade do medalhão. Não que eu tivesse alguma outra opção, por enquanto.

Com certa inquietação, escalei até a entrada da torre. Janelas compridas, feitas de um vidro quadriculado. Colunas que subiam em espiral. Sobre os portões, uma placa com hieróglifos embaçados.

“Ah, claro, meu astigmatismo não me permite enxergar dessa distância”, foi o que pensei. Repus os óculos, percebi que não era esse o real problema.

Os caracteres eram escritos em uma língua que, num passe de mágica, se tornou legível para mim. Não era japonês, nem nenhum dos idiomas nos quais eu tinha fluência.

Lia-se:

EMBLEMA IX
Tranca a árvore com o homem velho em uma casa de orvalho, e comendo do fruto ele se tornará jovem.

“No Jardim de Sophia, uma árvore produz maçãs de ouro.
Apanha esta árvore e o homem velho,
tranque-os em uma casa de vidro banhada em orvalho
e deixe-os lá por muitos dias.
E então, ó, maravilhas! Ele se fartará do fruto da árvore,
para que ele, que antes era velho, volte a ser jovem.”

O interior da torre era gigantesco, e centrava-se em uma plataforma circular. Olhar para cima ou para baixo causaria calafrios em qualquer um. Não havia andares superiores ou inferiores, nem escadas, e o claro das janelas não disfarçava a escuridão criada pela distância.

Ergui o medalhão na altura do rosto, onde via meu reflexo na joia.

— Pronto, viu? Não tem nada aqui — Minha voz ecoou. — Agora, podemos ir?

O chão em que eu pisava chacoalhou, e num tropeço, perdi o equilíbrio e caí. Ai, caramba! O que foi dessa vez...?!

Pássaros revoaram das extremidades. Pude escutar o som de muitas máquinas e motores funcionando; um mecanismo que simulava um elevador, subindo em alta velocidade.

Tive a visão de um ovo envolto pelas garras de uma águia de mármore. Dentro dele, um líquido cintilava em perfeita sintonia com a minha pulsação.

No rachar de sua superfície, escorreu ouro fervente em um tubo formador conectado a centenas de aparatos metalúrgicos.

Iniciava-se um processo de moldagem a partir de chapas de peças de armadura. Um par de ombreiras, um par de grevas. Braceletes, um cinturão e, por fim, uma máscara.

A brasa incandescente os tomou, refinando-os nas formas mais sólidas e belas. Na temperatura certa, foram desenhados com arabescos e adornados com joias.

Terminada a confecção do produto, as máquinas expeliram uma nuvem de vapor quente, e as comportas se abriram para apresentar o arsenal novinho em folha.

Na placa eletrônica, dizia:

“Modelagem finalizada. Proceder para exposição. AO FILHO DE TRISMEGISTUS, COMPAREÇA AO ANFITEATRO IMEDIATAMENTE.”

A mesma mensagem apareceu em outra placa, e em outra, e em outra.

Era uma alucinação. Eu estava vendo coisas! Assim que fechei os olhos e tampei os ouvidos, a minha noção do que era cima e baixo se inverteu, e meus pés se desgrudaram do chão.

Quando notei, eu caía em direção a um largo coliseu.

— A-Ahhhh!!

Bateram grandes asas por entre plumas esvoaçantes. Em meu socorro, um anjo que trajava as peças da armadura testemunhadas na visão me recolheu em seus braços.

Sua pele era da cor da canela. Tinha cabelos lisos e negros, e olhos iguais a topázios azuis lapidados. Nunca em minha vida vi alguém tão, tão lindo.

O calor de seu rosto tomava-me como refém, e de um único beijo entre nós dois irrompeu a luz de um Sol.

Num estalar de dedos, minhas roupas se transformaram nas de um sábio, ou alquimista. E o meu medalhão, desprendendo-se do colar, tomou forma de um caduceu.

A partir dele, materializou-se uma máscara que cobria parcialmente o rosto do anjo. Segurando-me pela cintura, ele brandiu a espada com toda a elegância de um guerreiro divino.

Em segurança, ele me carregou até o piso da arena e, com a respiração pesada, quedei de joelhos. Eu não teria acreditado em nada do que aconteceu, caso não tivesse vivido isso na pele.

Aquele rapaz ao meu lado tinha asas, asas de verdade! E nós não estávamos simplesmente fantasiados. O que é pior, e ele me beijou, sem dizer uma palavra, e--...!

— O Anfiteatro da Eterna Sabedoria dá as boas novas! — reverberou uma voz forte, que fez minha cabeça remexer. Ela vinha do topo de um púlpito, bem à frente de nós. — Em nome da Correnteza Eterna, consagremos o novo comprometido!

Tratava-se de um rei ou imperador medieval, com manto e coroa. Mas no lugar do corpo, tinha flores, frutas, verduras e legumes. Não era um ser vivo, mas uma espécie de fantoche.

Por incrível que pareça, eu o via nitidamente, mesmo sem meus óculos. Também via à plateia e à orquestra, compostas por legiões de estátuas douradas, e os detalhes dos cortineiros.

A minha visão foi corrigida?!

— Ó, comprometido. Responde do teu coração: jura seguir, defender e preservar as leis deste Anfiteatro, ainda que tua vida dependa disto?
— Eu juro — respondeu o anjo, vigoroso.
— Reconhece, portanto, a existência e autoridade da Correnteza Eterna?
— Eu reconheço.
— Daremos início, então, à Corte dos Heróis!

Aplausos, não da plateia, mas de caixas de som escondidas pelo coliseu. Tanto é que pararam repentinamente, como se alguém as desligasse. Era provável que até a voz do rei fosse artificial.

Por deus, no que eu fui me meter? Afinal, o que raios era “Correnteza Eterna” e essa coisa de “comprometido”?

— Mil perdões, mas você fala japonês, não? — Me levantei num pique, indagando ao garoto alado.
— Japonês?
— Eu me chamo Terumichi. Terumichi Kinjō. Poderia me explicar o que está havendo?
— Espere aí, você possui o Amaranto e não sabe de nada?
— É, e eu também não sei o que é esse Amaranto. Eu vim de Tóquio, Japão. Gostaria de saber onde estamos, e como saio daqui. Pode me ajudar?

Fitou-me, intrigado. Logo em seguida, clamou.

— Imperador das Rosas, um momento! — Holofotes o iluminaram. — O garoto de Agartha não parece estar ciente da situação. Como alguém como ele pode ser o Filho de Trismegistus?
— O Filho de Trismegistus é o único que detém poder sobre a chave de Hermes Trismegistus. Mas, uma chave sem um homem para girá-la não é nada. A máscara em teu rosto prova que ele é, de fato, quem pensas ser.

Hermes Trismegistus.

Botei a cabeça pra pensar. Esse era o nome de um profeta e filósofo, autor de escritos sagrados e patrono dos herméticos. A figura lendária que marcou os primórdios dos conhecimentos alquímicos.

Quando se referiam a “Filho de Trismegistus”, queriam dizer eu? Nesse caso, o Amaranto seria o meu medalhão, tornado há pouco um caduceu?

— Isso não está certo. Eu não sou esse Filho de Trismegistus. E isso aqui é um presente que ganhei do meu avô quando eu tinha oito anos. É algo valioso pra mim.
— Não importa. Ele é necessário para um bem maior.
— Então você poderia começar me explicando que bem maior é esse! Do que exatamente a humanidade precisa ser salva?
— Sua ignorância é inacreditável. Realmente o Declínio não existe em Agartha.
— O Declínio em Ouro — tornou o intitulado Imperador das Rosas —, a maldição que transforma todo e qualquer ser vivente em uma peça de estatuário dourado. É o presságio do dia da Correnteza Eterna e o mal trazido a este mundo pelo uso irresponsável dos conhecimentos antigos.
— Uma maldição que transforma em... ouro?
— Apenas o Amaranto de Hermes Trismegistus possui o poder para restituir a dignidade humana diante da extinção absoluta. Muitos heróis subiram esta torre, isto é, revestidos do orgulho de suas terras natais, com o único intuito conquistá-lo. Tal é o mérito do Messias.
— Messias? Um salvador do mundo? Isso é você? — dirigi-me ao rapaz.
— O gado e as plantações morreram. Não há mais peixe, nem água potável. Lá fora, neste instante, pessoas definham sem ter o que comer e beber.

Ele segurou firme na espada, apontando-a para mim, e me acuou.

— Filho de Trismegistus, queira ou não, você pertence a mim! Não vou entregá-lo a ninguém. Eu alcançarei Messias, e salvarei o meu povo!

Entendi melhor, embora não soubesse o que dizer. Digo, se o tal poder do medalhão era necessário para salvar a vida das pessoas, o mais sensato a se fazer era entregá-lo.

Sei que era uma lembrança do vovô, mas conhecendo-o bem, até ele ficaria orgulhoso dessa minha atitude. Por isso, me ajoelhei cordialmente e ofereci o cetro.

— O que pensa que está fazendo?
— Depois de ouvir tudo isso, não tenho como não o entregar a você. Se esse é o Amaranto do qual o seu povo precisa, aqui está. É todo seu.

Estava tudo bem. Talvez eu não precisasse daquilo, nem do ouro, contanto que eu tivesse meus amigos, meus pais, meu irmãozinho e Tsubasa ao meu lado. Seja lá o que significasse o “Messias”, eu estava disposto a oferecer tudo.

O anjo, menos defensivo, ignorou o artefato e me segurou pela mão, ajudando a me levantar.

— Não se ajoelhe diante de alguém desse jeito. Você é um sujeito estranho.
— ... Ué, mas e o Amaranto?
— Não será fácil assim. A Corte ainda não acabou. Aconteça o que acontecer, fique onde está e não interfira.

Ele me deu as costas, e quase fui varrido pelo esticar de suas asas.

— Ei, calma! Aonde você vai? Ao menos me diga como se chama!
— Sou Hector. Hector de Vertumnus. E eu não vou a lugar algum.

Hector. Mais um nome com raízes míticas. O príncipe que liderou o exército troiano na Ilíada de Homero. Já seu sobrenome, título ou sei lá o quê, pertencia ao deus romano das estações.

Mas esse não podia ser o mesmo personagem do mito, a não ser que eu tivesse misteriosamente voltado para o passado, ou entrado na história de um livro...?!

Quando eu menos esperava, as grades metálicas de uma das entradas da arena emitiram um barulho ensurdecedor, abrindo-se, e houve uma segunda ovacionada.

Das sombras, saiu um homem de cabelos castanhos, estes envoltos por uma coroa de louros. Portava uma lança mais comprida que seu corpo, e uma capa que descia até os joelhos.

Havia um detalhe em comum entre ele e Hector: a máscara.

Se absorvi o mínimo de informações da forma correta, isso o identificava como um dos heróis dos quais o Imperador das Rosas falava. Porém, um comprometido havia sido elegido antes dele.

Direcionando presenças ameaçadoras um ao outro, eles manuseavam suas armas, adotando instâncias de batalha. Muito breve, veio a anunciação:

— Abram-se as cortinas para o combate de abertura da Corte dos Heróis. A condição para a vitória é derrubar a máscara do adversário. Vença aquele que prevalece em glória e dignidade!

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