Volume I – Arco I
Capítulo 2: O Ouro
Da boca de uma cornucópia, flores e frutas de todos os aspectos e cores extravasavam incessantemente. Era uma correnteza eterna por onde minhas memórias fluíam.
Longe de ser uma escola qualquer, a Academia Kinran servia o propósito de instruir e aprimorar as potencialidades de jovens prodígios japoneses. Dito isso, ela possuía uma hierarquia sólida e estimulava a competitividade entre os alunos via um sistema de rankings.
Logo ao ingressar, percebi que minha sala não era um lugar para se fazer amizades, mas disputar por um posto mais alto. E, quando esse objetivo era distante demais, o jeito era depender de alguém para se manter na média obrigatória.
Por isso meus colegas procuravam tanto a mim.
Os que não se adequavam eram removidos da escala e segregados. Eles tinham uma turma própria voltada para a recuperação, e eu não conseguia nem imaginar o que se passava lá.
Uma quantidade considerável de alunos usava desse sistema como uma justificativa para discriminar outros. Não havia só um, mas vários relatos on-line de vítimas de bullying e perseguição.
Tsubasa era uma dessas vítimas.
No primeiro ano do ensino secundário alto, o ano da minha transferência, ele se confessou para Makoto Kaneshiro. Isso mesmo, o rapaz que tinha embaraços comigo.
Além de ter sido rejeitado, passou a ser alvo de boatos e comentários maldosos, e os outros alunos o excluíram. Como ninguém o queria, ele sobrava nos trabalhos e atividades.
Suas notas caíram, e ele quase foi remanejado. Como representante de turma, eu me via na responsabilidade de ajudá-lo.
— Miyashita, vamos fazer o trabalho juntos?
— ... Juntos?
— Sim! Tem algum problema pra você?
Eu o conheci e descobri que não era nada do que diziam. Ele era esforçado e estudioso, igual a mim. Os nossos trabalhos eram impecáveis, e sempre tirávamos notas iguais.
No entanto, ele não era respeitado como eu era. Achei que ficando ao seu lado eu poderia de algum modo protegê-lo até as coisas melhorarem, mas isso foi ingenuidade da minha parte.
Elas só pioraram e pioraram.
Por quê? Por que continuavam a ofendê-lo, mesmo com os meus esforços para mostrar o quão incrível ele era? Eu e Tsubasa éramos tão parecidos, em tanto. ... Em tanto.
Eu não entendia o motivo de ele não ser amado, quando talvez até eu o tenha amado, mais do que como um amigo.
Afora exigências escolares, os momentos divertidos em que tudo ao nosso redor parecia brilhante eram tudo para mim. Mas só para mim, que não passava pelo mesmo prejuízo que ele.
Sempre que confundiam meu sobrenome com o da pessoa que o rejeitou, ele se sentia mal. No dia da entrega da medalha da Olimpíada Internacional de Matemática, ele faltou para evitar ouvi-lo.
Até após a deixa do Kaneshiro, eu ainda não tinha Tsubasa presente em uma boa parte das ocasiões especiais. ... Estava tudo bem, na verdade. Era melhor do que machucá-lo.
Contudo, sempre me incomodou que, por mais que ele fosse uma das únicas pessoas com quem eu conseguisse ser eu mesmo, havia um lado dele completamente obscuro para mim.
Foi na véspera das férias de verão do segundo ano. Eu o procurei pela escola para convidá-lo a uma visita às praias de Nagoya, minha cidade natal, e o encontrei no fim do corredor aos beijos com um garoto.
Meu coração deu um salto, e o meu corpo inteiro gelou. Bem diferente de como se portava comigo, ele agia de forma sedutora e provocativa, rendendo o outro contra a parede e mordendo seus lábios.
Dei meia-volta. Minhas mãos suavam, e eu parecia estar sendo espremido por dentro.
Não, eu não podia ser preconceituoso com meu melhor amigo. Ele tinha a liberdade para se relacionar quem quisesse, não importa como. ... I-Isso mesmo. Eu iria respeitá-lo, e apoiá-lo. O que eu senti não passava de um ciúme imaturo.
Dada sua indiscrição, não demorou muito até acusarem a mim, que era o indivíduo próximo dele, de homossexual. Ou pior: de ser um dos muitos rapazes com quem Tsubasa Miyashita se relacionava sexualmente.
Eu fiquei chocado, e o sangue me subiu. Foi a primeira vez que direcionaram algo ofensivo a mim. Gritei e causei um rebuliço, algo que eu nunca fiz quando era com outro alguém.
Eu achava que ser o Menino de Ouro me isentava de quaisquer críticas e alvos nas costas. A partir dessa ocasião, eu finalmente entendi.
Nesse mundo, existe um fundamento imutável: por mais que criemos o ouro como um objeto, se não nos tornarmos perfeitos como ele, corremos o risco de sermos excluídos.
Não importando o quão altas fossem minhas notas, se eu não atendesse estritamente às expectativas que colocaram em mim e não mantivesse a minha máscara, eu perderia tudo.
Eu não estava preparado para enfrentar rejeições. Tendo vivido somente em meu mundo dourado, eu me encostei na crença de que eu não podia mudar, ainda que tudo ao meu redor estivesse mudando num ritmo incontrolável.
O vovô se foi recesso do ano novo. Eu não tive como me despedir dele. A escola inteira ficou sabendo da notícia, e eu recebi pilhas de mensagens superficiais prestando condolências.
Tsubasa, por sua vez, apenas me abraçou.
O presente que o dei, o Atalanta Fugiens, era pequeno comparado ao quão grato eu era por ter ele ao meu lado. Sem ele, eu não sei como os últimos dois meses teriam sido para mim.
De volta ao presente, eu e ele nos deitávamos sobre o colchão sobressalente, dividindo os fones para escutar a uma das músicas que ele mais gostava: Prelúdio, Op. 28, nº 4, um clássico de Frédéric Chopin.
— A ventania lá fora está terrível. Quer que eu aumente a temperatura, Tsubasa? — perguntei, dando uma olhada na intensidade do aquecedor.
— Assim está bom. Está quentinho. — Ele paginava o livro, debruçado.
— Hehe. Mesmo? Então tá na hora de dormir.
Dei um bocejo, devolvendo o lado do fone. Me levantei, desliguei o abajur e fui me aninhar na minha cama.
— Se precisar de algo, me acorde.
— Teru.
— Sim?
— Eu preciso te falar uma coisa.
Nossos olhos se encontraram. Ele tinha um semblante tão sério que meu coração acelerou.
— O-Oh. O que seria?
— Na verdade, o meu aniversário não é hoje. Quer dizer, tecnicamente.
— ... Hã?
— No ano passado e retrasado eu comemorei o meu aniversário foi no dia 28 de fevereiro, mas, na verdade, eu nasci no dia 29 de fevereiro, que só acontece em anos bissextos. É como se eu só fizesse aniversário a cada quatro anos. ... Me desculpe. Eu só queria te contar a verdade sobre isso.
Num primeiro momento, deu-me um branco.
Não entendi o que ele queria dizer, nem o porquê de me contar isso àquela hora. Digo, não era uma mentira, nem nada com que ele precisasse se preocupar.
Quando demos boa noite, e ele se enrolou nas cobertas, minha ficha caiu. Tsubasa me permitiu conhecer algo novo sobre sua pessoa, mesmo que um pequeníssimo detalhe.
Fiquei tão entusiasmado que demorei para pegar no sono. Eu só podia pensar no que fazer para dar a ele o melhor aniversário de todos. Afinal, seria um dia inteiro só para nós.
Assim, dedicamos um ao outro cada minuto, cada segundo daquele dia 28. Assistimos vários filmes e séries que gostávamos, e nos acabamos com pipoca, pizza, refri e outras besteiras.
Podíamos até não agir tão íntimos publicamente, mas ele continuava a ser quem era comigo, e eu com ele. Por mais que eu ainda não conhecesse o “verdadeiro Tsubasa”, nada mudaria isso.
Nós seríamos melhores amigos enquanto o tempo permitisse.
Seguido ao fim desse último ano letivo, vinham as férias de primavera. Eu havia idealizado as praias de Nagoya para o verão, que era logo depois, mas até a hora de ele ir, não consegui convidá-lo.
No dia 1 de março, a Academia Kinran levou os alunos a uma excursão ao Museu Nacional de Tóquio. Era uma atividade facultativa, mas por ser um lugar que nunca fui, achei que seria legal.
Tsubasa já conhecia o museu desde a escola média, e concordou em ir. Ele me prometeu apresentar umas coisas interessantes de lá.
Devido à chuva forte, a rua em frente ao prédio alagou e o nosso ônibus não pôde estacionar na parada. Tivemos que correr para não ficarmos encharcados, mas chegamos todos bem.
As escadarias do hall principal levavam a uma porta larga, sobre a qual um relógio rente a um símbolo na parede marcava a hora errada. Devia estar com defeito. Foi aí que o guia apareceu para nos introduzir a cada seção.
Fósseis de dinossauros, ícones de outros períodos da história do Japão, escritos antigos, pinturas, até estátuas de todos os tamanhos. Com essa quantidade de atrações, vi-me fascinado. Definitivamente, o museu parecia ser maior por dentro.
... Eu só sentia falta de alguém. Tsubasa já não estava entre nós.
— Professor. — De lá de trás, ergui a mão.
— O que foi, Kinjō?
— Um dos alunos está faltando. Tsubasa Miyashita.
— O Miyashita? Ele estava presente na chamada. Ele não foi ao banheiro ou algo assim? Pessoal, alguém viu o Miyashita?
Nossos colegas se entreolhavam, atônitos. Ninguém deve ter percebido, ou, ninguém se importava o suficiente para sequer perceber. Isso me deu uma sensação ruim. Me tirava do sério o hábito dele de sumir sem me dizer para onde ia.
Num pique, deixei a prancheta com a vice-representante e me separei da turma.
— Eu vou procurá-lo. Com sua licença!
Pedi ajuda dos funcionários, mas nenhum deles soube me responder.
Fui aos banheiros, às salas de espera e ao ônibus. Nada. Com as calças pingando, subi as escadas e segui por um corredor diferente dos outros, um que não parecia ter fim.
Quanto mais adiante eu ia, mais longínquo parecia. Era como se eu andasse em círculos em um lugar inóspito. Em favor da crescente ansiedade dentro de mim, apressei o passo e corri.
... Onde você está, Tsubasa? Eu quero te encontrar. Eu me importo tanto com você. Por que você sempre tem que ir para onde não posso vê-lo? Que segredos está escondendo de mim?
Deparei-me com estátuas de ouro representando todo tipo de animal estranho, como borboletas siamesas e outras misturas entre animais. Cavalos com cabeças de ocapi. Pássaros, dezenas deles.
Também havia vestimentas e utensílios que um só veria em livros de fantasia. Alguns pareciam instrumentos musicais, e outros, artefatos de teor ritualístico.
Ofegante, parei frente a uma frondosa macieira, com folhas, frutos e tronco talhados em ouro. Era o protótipo artificial de um jardim.
Por curiosidade, tateei o aspecto dos arbustos. Era como tocar em tiras finas de um metal liso e gelado, tipo a fivela de um cinto. Um material sintético, como esperado, mas a riqueza em detalhes na textura dava a impressão de ser de verdade.
Essa seção não tinha nada a ver com o resto do museu. Estudei diferentes culturas, das contemporâneas às mais antigas, e nunca vi nada como aquilo.
Olhei em volta, até que, num sobressalto, encontrei quem procurava.
— Tsubasa! — O chamei, do fundo da garganta.
Como se nada tivesse acontecido, ele apreciava à estátua de um anjo nu cujas asas rasgavam as costas para se libertarem. Virando-se, me retornou:
— Teru! Minha nossa, você está suando. O que aconteceu?
— Eu é quem deveria estar perguntando isso. Você sumiu sem avisar. Eu fiquei preocupado.
— Você veio até aqui por mim?
— Mas é claro. O que veio fazer aqui? E que lugar é esse, aliás?
— Eu tinha ido procurar por uma seção em especial, mas acabei parando aqui. Tão misterioso. Não é bem o que eu pretendia te mostrar, mas é lindo, não é?
Ah, esse garoto...! Como pôde me assustar desse jeito? Podíamos ter ido juntos, ou perguntado a alguém. Que coisa. ... Ah, quer saber? Ele estando bem, era o que me importava.
Até que ele tinha razão, aliás. Tudo ali era belo, e um pouquinho assustador ao mesmo tempo. Talvez fosse porque estátuas de ouro me remetiam ao memorial do vovô.
A mesma estranheza bateu quando parei para reparar no anjo. A firmeza com a qual arranhava seu ombro era tão verossímil que eu quase sentia um pouco de sua dor.
Não deveríamos estar andando por aquelas bandas, muito menos sem funcionários por perto. Os itens desse sítio deviam pertencer a alguma exposição de arte abstracionista, ou sei lá.
Mais tranquilo, tomei Tsubasa pela mão.
— Vamos. Temos que ir, antes que o professor nos dê uma bronca.
Quando menos esperava, ele me parou, aproximando seu corpo franzino, e seus lábios foram pressionados contra os meus.
Diferentemente dos dele, os meus não se deleitavam, nem reagiam ao ato. Eu estava sendo... absorvido, junto às fantasias infrutíferas com as quais me revesti por tanto, tanto tempo.
Não era isso o que eu desejava, de certa forma? Beijá-lo, e tocá-lo. Tê-lo perto de mim. Então, por que eu me senti tão mal? O que era essa dor aguda atravessando o meu peito?
Ali estava um Terumichi Kinjō que só conhecia medo e vergonha. Um ser desprovido da coragem para libertar as asas. Ora, caso o fizesse, seria excluído e descartado.
Seu pai, sua mãe e todos os outros parariam de vê-lo como precioso, e ele não teria como continuar. Ao invés disso, era preferível seguir como um prisioneiro da estátua do avô, para sempre.
Não existe um Menino de Ouro, tampouco um Cavaleiro da Armadura Brilhante, sem uma máscara selada a ferro e fogo.
De repente, a luz tomou tonalidade vermelha, me reduzindo a uma silhueta sombria. Eu não mais parecia estar ali, ao menos não em carne e osso.
Escutei as vozes daquelas duas máscaras gregas — Tragédia e Comédia — que sempre tratavam de me preparar uma história diferente a cada dia. Tão sarcásticas, deram início a um show.
✤ O Brasão de Ouro de Trismegistus ✤
— Há muito tempo a história é contada! Num passado distante, e num futuro distante. Em um continente remoto, onde os humanos aprenderam a criar asas! Antes mesmo da Lua e o Sol brilharem no estreito céu entre a terra firme e o planeta oco, é contada a tragédia do Filho de Hermes Trismegistus. Um rapaz marcado com um brasão de ouro por seu pai e tornado belo!
— Espere — interrompeu Comédia —, o nome dele era literalmente “Filho de Hermes Trismegistus”? Não tinha um nome melhor, tipo Thomas Colgate?
— Silêncio.
Então, Tragédia prosseguiu com a apresentação teatral.
— Ah, o Filho de Trismegistus. Uma existência perfeita, venerada por todos. O homem absoluto e o mais corajoso e virtuoso dos heróis! Porém--! Se ele libertasse suas asas, como seus conterrâneos, a fórmula do brasão seria desfeita para sempre. Então, recusou-se a abri-las. Por mais que só pudesse andar por aí com os próprios pés, até que isso não era tão ruim.
— ... Não?
— Não! Até que veio o desastre! Oh, o grande desastre. Os prelúdios da Correnteza Eterna, a vontade de retribuição que a tudo engolia. Os pássaros caíram dos céus. As árvores murcharam uma atrás da outra. Os animais desapareceram das florestas. Quando mil barcos afundaram, nada pôde ser feito para salvá-lo da queda no abismo. E nunca mais se ouviu dele.
— Ele podia ter aberto as asas, já que seus conterrâneos o fizeram. Ele perderia a beleza concedida pelo brasão, mas ao menos teria vivido.
— Ahh, há muito tempo a história é contada! Há muito, muito tempo!
— Está me ignorando?
E as duas máscaras continuaram discutindo, eternamente.
ᛜᛜᛜ
“A Pedra Filosofal é uma certa substância celestial, espiritual, penetrante e fixa, que leva todos os metais à perfeição do ouro, e isso por métodos naturais, que em seus efeitos transcendem a natureza. É preparada de uma substância com a qual a arte da química está familiarizada, à qual nada é adicionado, da qual nada é retirado — exceto suas superfluidades.
Saiba, então, que é chamada de pedra, não porque se assemelha a uma pedra, mas porque, em virtude de sua natureza fixa, resiste à ação do fogo com tanto sucesso quanto qualquer pedra. Em espécie é ouro, o mais puro entre os mais puros. É chamada de ‘Pai de Todos os Milagres’ por conter todos os elementos de forma que nenhum predomina.
É fixa e incombustível como uma rocha, mas sua aparência é a de um pó muito fino, impalpável ao toque. Doce ao paladar, perfumado ao olfato. Se dissermos que sua natureza é espiritual, não seria mais do que a verdade; se o descrevêssemos como corpóreo, a expressão seria igualmente correta; pois é ouro espiritual sutil, penetrante, glorificado.
É a mais nobre de todas as coisas criadas depois da alma racional, e tem a virtude de reparar todos os defeitos, tanto nos corpos animais quanto nos metálicos, restaurando ao temperamento mais exato e perfeito. Mas devo prosseguir para responder à pergunta mais importante de minha tese. Como essa pedra pode ser obtida?”
Um Breve Guia ao Rubi Celestial
Arthur Edward Waite, 1893.
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