Os Prelúdios de Ícaro Brasileira

Autor(a): Rafael de O. Rodrigues


Volume I – Arco I

Capítulo 1: O Jardim

Nesse dia, eu presenciei.

Um bloco de ouro bruto que queimava continuamente. Houve faíscas e sons agudos. O processo de fusão o fez como rio fervente que escorria por entre máquinas e tubos até um molde, onde resfriou e endureceu. Em sua superfície límpida, foram cinzeladas folhas de loureiro.

O vovô, cujo rosto era tão alto que eu não via com clareza, encaixou nele uma joia vermelha e me presenteou.

— O ouro é belo, pois simboliza o triunfo sobre todas as coisas — disse, tirando-me do transe. — Mas, para torná-lo em sua forma mais sublime, é necessário remover as impurezas.

Ele me tomou pela mão, e partimos à luz que vinha da entrada da fábrica.

O vovô era dono de uma empresa de metalurgia em Nagoya, no Japão. Pela qualidade dos materiais, nosso sobrenome se tornou conhecido no mundo inteiro, e o que não faltavam eram compradores e investidores. E graças a essa fortuna, minha família vivia da maneira que queria.

Até me deparar com aquela visão, da qual nunca me esqueci, eu só não havia percebido algo:

As estátuas dos templos. As moedas que lá deixávamos em oferenda ou que usávamos para comprar sorvetes. Anéis, brincos, pulseiras. Todos esses objetos passaram por uma mudança e moldagem para serem vistos como preciosos.

Eu também queria ser precioso. Eu acreditava que, tornando-me como o ouro, eu alcançaria isso.

— Por último, pessoal, precisamos falar a respeito dos resultados da Olimpíada Internacional de Matemática — disse o coordenador ao microfone do auditório, trazendo-me de volta das reminiscências.

Cochichos correram entre os alunos na plateia. Passado um curto silêncio, ele continuou:

— Nós da coordenação da Academia Kinran temos o orgulho de anunciar que, dentre os ganhadores da medalha de ouro, há um aluno da nossa escola. Por favor, uma salva de palmas para Terumichi Kaneshiro, do terceiro ano do ensino secundário alto! Pode vir, Kaneshiro!

Aos aplausos, levantei-me timidamente entre os assentos e me dirigi ao palco. Meus colegas me parabenizavam e mandavam assobios. Com um grande sorriso, acenei para eles.

A premiação foi posta em meu pescoço, no mesmo lugar onde eu pendurava o presente dado pelo vovô. A diferença era que uma estava por fora da camisa, e o outro por baixo.

Foi um pouco exaustivo, pois me forçaram a tirar um montão de fotos carregando o certificado. Era importante para a imagem da escola, eu acho.

As medalhas de ouro são concedidas aos que se sobressaem, seja em escalas, campeonatos ou concursos. Então, eu fazia questão de obtê-las, estando sempre além, sempre em destaque.

Seja como um aluno de honra ou como representante de classe, eu precisava alcançar um lugar mais alto e brilhante por aqueles que depositavam suas expectativas em mim.

O vovô, a mamãe e o papai. Eu queria ser o Menino de Ouro, de modo a orgulhá-los!

Mais tarde, o sinal da saída tocou. Chegando em casa, vi tudo desligado e vazio.

— Mãe? Pai? Teruki? — Como os aposentos eram bem largos, por onde eu passasse, a voz ecoava. — Uhh, onde será que eles foram?

Me esparramei na cama, apreciando minha mais nova medalha. Olimpíada Internacional de Matemática, huh? Eu nem lembrava de ter feito essa prova. Acho que foi algo que meus pais me pediram para fazer no ano passado.

Eu não gostava de matemática, mas foi uma boa adição para minha coleção. Tiveram até a decência de gravá-la com o kanji do meu nome, “金城輝通”, ao invés de o escrever romanizado.

Falando nisso, até o final da celebração o coordenador não se deu conta de que meu sobrenome não se lia “Kaneshiro”, mas “Kinjō”, em on'yomi, e significa “Castelo de Ouro”.

Sinceramente, era um equívoco tão comum que passei a ignorar. Lembro-me das vezes em que perdi tempo corrigindo, só para errarem de novo depois... assim como no meu primeiro dia de aula na Academia Kinran.

— Terumichi Kaneshiro.
— A-Ah... Professor, meu sobrenome se lê Kinjō. Presente, senhor.
— Hm? Kaneshiro, responda apenas se está presente ou não. Se tiver alguma dúvida, conversamos depois da aula.

Fiquei branco de vergonha. Nem pedi desculpas. Permaneci calado, boquiaberto.

Ah, e também teve aquela vez no segundo ano, na feira de ciências. A minha maquete havia sido escolhida como a vencedora, e o nome Kaneshiro foi chamado. Nisso, um aluno da turma 2-C, Makoto Kaneshiro, foi em disparada receber o prêmio.

Mas a maquete não era a dele, e sim a minha! Ahh, ele ficou tão desapontado. Quem não ficaria, né?

Nunca chegamos a nos conhecer, mas acho que ele não gostava de mim. E, bem... como ele andava com baderneiros e bullies, o sentimento era recíproco. Depois de um tempo, descobri que ele pediu saída da escola, e eu acho que, em partes, foi culpa minha.

Parando para pensar, essa confusão devia acontecer por Kinjō ser o nome da empresa.

Certa vez, li que o criador da marca de pastas de dente “Colgate” era um inglês chamado “William Colgate”. Se por ventura um “Thomas Colgate” se transferisse para a minha turma, seria algo difícil de acreditar. Hmm, mas talvez esse não seja lá o melhor exemplo.

O que realmente interessa é que, hoje em dia, ao menos o meu círculo de amigos não erra mais!

— Kinjō, Kinjō! Por favor! Amanhã é a entrega do trabalho de inglês e eu não sei como fazer!
— Não se preocupe! Eu ajudo você a fazer, mesmo sendo onze horas da noite!

E eu realmente dei um jeito de ajudá-lo, mesmo sendo onze horas da noite.

— Kinjō, Kinjō! Por favor! O Tanaka trouxe um sapo para a sala, e eu tenho medo de sapos!
— Não se preocupe! Eu vou falar com o profes-... Espera, essa é a aula de ciências. E são rãs, não sapos.

E eu fiquei conversando com ela até o término da aula em laboratório.

— Kinjō, Kinjō! Por favor! Tem alguém tentando me matar com bolas de queimada!
— Não se preo-... Sawajiri, nós estamos jogando queimada!

Ele tinha certeza de que alguém estava tentando matá-lo durante a educação física. Comuniquei isso ao coordenador.

— Kinjō, Kinjō! Por favor! Todos os alunos da escola estão se transformando em sapos, e eu não sei o que fazer! O mundo vai acabar!
— Como é que é?!

Tá. É claro que esse último é mentira. Mas se por algum acaso as pessoas começassem a se transformar em rãs, tenho certeza de que a menina com batracofobia viria me procurar primeiro.

Eu sou a pessoa com quem meus colegas podem contar para todo e qualquer tipo de problema. Eles vieram até mim tantas vezes que aprenderam o meu sobrenome correto por repetição!

Meu celular vibrou. Era uma ligação da mamãe. Logo atendi.

— Mãe?
— Terumichi, meu amor. Já chegou da escola?
— Sim. Onde vocês estão?
— Eu e seu pai viemos à fábrica. O memorial do seu avô foi realocado para protegê-lo da chuva.

Um frio me subiu a espinha, mas resisti.

— Ah. Entendi. Mãe, hoje, na escola, eu recebi a-...
— Espere, seu pai está chamando — cortou.

Ainda podia ouvi-la ao fundo, junto ao choro do meu irmãozinho mais novo.

— Parece que a carreta está com problemas. Terumasa, pegue o brinquedo do Teruki, eu vou falar com eles. ... Não! Eles não vão sair daqui sem trazer essa estátua para dentro! Hã? Como assim “onde está o brinquedo”? No carro, é claro! As chaves estão na minha bolsa.

— Mãe...?
— Terumichi? Terumichi, meu amor, está me ouvindo?
— Estou sim.
— Vamos passar algumas noites em Nagoya. Tem comida na geladeira. Eu ligo depois.
— Uhum. Está tudo bem. Até depois.

Com um suspiro, desliguei.

Nesse dia, fazia três meses desde o falecimento do vovô. Até onde eu sabia, ele era um senhor saudável. O tipo de pessoa que você nunca imaginaria sofrer um infarto.

Em memória dele, uma enorme estátua de ouro foi esculpida em frente à fábrica. Por ter sido um filantropo, ele foi amado e respeitado por um bocado de gente.

De certa forma, torná-lo uma estátua fez dele eterno. Ainda que não estivesse entre nós, sua mera existência era marcante. Ele era tão poderoso que transcendeu a morte, e passou a estar vivo em todos os lugares, inclusive em mim.

Será que, se eu morresse, alguém faria uma estátua dessas para mim? Eu era importante assim? ... Claro que não, né?

Talvez eu devesse introduzir meus parentes. O papai, Terumasa, é o filho do meio de três. Ele e os irmãos dividiram a herança do vovô entre os primos, apesar de terem ficado com a maior parte.

A minha mãe, Koemi, é uma pessoa com muitas ambições, mas no fundo bem amorosa. Ela só estava estressada no telefonema porque meu pai é atrapalhado.

Já o meu irmãozinho, Teruki, tem quatro anos de idade. Ele é uma criancinha bem expressiva, e é a cara da mamãe. Sua inocência quanto ao falecimento do vovô é tamanha que me assusta, e às vezes não sei nem o que dizê-lo.

Eu faço o melhor que posso para cuidar dele, e para compreender os tropeços dos meus pais durante esse período complicado.

Cinco e meia da tarde. Já era hora, então corri para o banheiro e dei uma molhada no rosto. A lâmpada estava com defeito e piscava sem parar. O papai não mandou arrumá-la.

No meu reflexo, o meu traço que mais chamava atenção: vários pontinhos marrons que iam de um lado ao outro das minhas bochechas. Sardas.

Como é de se imaginar, essa era uma característica bem incomum aqui no Japão, ainda mais quando há um prezar estético por uma pele bem clara e limpa.

Eu costumava achá-las desagradáveis, e cheguei a usar corretivos para escondê-las, mas o vovô também tinha sardas e não se envergonhava disso. Ele me encorajou a aceitá-las.

Para dizer a verdade, eu...

Não. Eu não podia ficar triste. É claro que eu sentia falta dele, mas eu tinha que continuar sendo o Terumichi do qual ele se orgulhava, pois ele confiava no meu eu prestativo, responsável e confiável.

O Menino de Ouro é um bom filho, um bom irmão e um bom amigo.

Ding-dong.

No tocar da campainha eu soube quem era, e na mesma hora penteei o cabelo, vesti o suéter e fui recebê-lo.

No abrir do portão, estava diante de mim um garoto mais baixo, de olhos e cabelos negros, carregando uma mochila nas costas. Suas bochechas, sobre as quais usava óculos de grau alto, tal qual eu, tinham um aspecto levemente rosado.

— Tsubasa! Seja bem-vindo! — De instinto, o abracei.
— Teru! Desculpe o atraso. Estava chovendo, o trem demorou um pouco, então... — Ele coçou a nuca, como fazia quando envergonhado. — Bem, você já sabe.
— Não liga pra isso. Vem, pode entrar. Fique à vontade.

Tsubasa Miyashita era o meu melhor amigo.

Um pouco tímido, mas extremamente doce e amável. Na escola, ele era o mais próximo de mim, e fazíamos de tudo juntos. Estudávamos, almoçávamos, passávamos um tempo na biblioteca e de vez em quando até pegávamos a mesma linha de trem.

Com ele, eu me sentia livre para mostrar uma parte de mim que os outros não viam.

Digamos que eu tinha interesses particulares. Não era nada sobre o qual eu pudesse conversar com outros a não ser o vovô e ele, pois com certeza eu seria julgado como esquisito. Antes de mais nada, já aviso que não era nada preocupante.

Era só alquimia.

Não que eu acreditasse em misticismos, mas o processo doopus alquímico” me remetia ao dia em que recebi o medalhão, e ao vovô em si. Era algo que nos ligava. Foi ele, tão estudado no assunto, quem me deu livros para ler e me influenciou nesse gosto.

A sensação de conversar com Tsubasa sobre o esoterismo e o oculto, ele me escutando atentamente, me fazendo perguntas e vice-versa, era semelhante a quando eu e o vovô fazíamos as noitadas de leitura. Construíamos interpretações só nossas, e criávamos algo único entre nós dois.

Como já era de se saber, todos me consideravam um gênio. Porém, Tsubasa definitivamente estava no mesmo nível que eu. Sim, ele era incrível. O mais incrível de todos.

No dia seguinte, era seu aniversário. Como sua mãe também saiu em viagem, ele não teria com quem comemorar, e por isso o convidei para dormir em minha casa.

Meus pais estavam fora, então não dava para apresentá-lo a eles, mas sem estresse.

Ao anoitecer, pedimos comida gostosa, assistimos documentários e jogamos videogame até tarde. Poxa, eu sempre perdia pra ele, mesmo jogando há muito mais tempo!

Enquanto eu enchia um copo com água para oferecê-lo, desviei minha atenção para apreciar seu perfil delicado. Um hábito que adquiri, por alguma razão.

Quando eu dizia algo engraçado e ele ria, eu me sentia... bem.

Talvez ele não soubesse, mas, ao lado dele, eu via tudo mais bonito. O mundo virava um panorama encantador, como uma espécie de sonho vívido do qual eu não queria acordar.

O relógio bateu à meia-noite, e o sonho se tornou realidade. No que voltei o olhar, vestíamo-nos como se em uma história de fantasia. Ele era um príncipe segurando um bastão com joias, e eu o seu fiel cavaleiro.

De mãos dadas, corríamos por um jardim abundante em flores — um palco repleto de adereços bem elaborados. Sob uma elegante cobertura de modelo renascentista, puxei uma cadeira para assentá-lo.

À luz da Lua, entreguei seu presente. Ele desfez o laço do embrulho, com uma mistura de surpresa e curiosidade em sua face. Logo, o deslumbre.

— Oh. Isso é...!
— É uma edição colorida do livro que você queria, o “Atalanta Fugiens”. Do Michael Maier, certo? — Ajustei os óculos, que continuaram comigo no devaneio. — Demorou para chegar. Ainda bem que deu tempo. Feliz aniversário, Tsubasa. Espero que goste.

Ficou um tempo em silêncio, cabisbaixo, apreciando a pintura na capa. Quando me dei conta, lágrimas caiam sobre ela.

Foi um susto pra mim, e no mesmo instante me ajoelhei ao seu lado. Seus olhos pareciam um lago negro de cristal, do qual caía todos os tipos de pedras preciosas.

Eu queria enxugá-los, mas, por alguma razão, meus braços não se mexiam.

— Tsubasa? Está chorando? ... Tem algo errado?
— Não, não é isso. Só estou feliz. Obrigado, Teru — disse, soluçando. — Eu nunca ganhei um presente tão lindo assim. Obrigado, de verdade.

Ele me abraçou bem forte. Era tão macio, e quente. Eu desejava que estas minhas mãos que o envolviam não o soltassem nunca mais.

Com a brisa, pétalas esvoaçavam pelo cenário, e holofotes iluminaram o caminho a um recanto no alto do céu: um castelo dourado. Antes de levá-lo, vi surgir em mim uma armadura brilhante que reafirmava minha posição como cavaleiro — o sacro cavaleiro de Tsubasa.

De repente, a luz tomou tonalidade vermelha, reduzindo-nos a silhuetas sombrias. Não mais parecíamos estar ali, ao menos não em carne e osso.

Escutei as vozes daquelas duas máscaras gregas — Tragédia e Comédia — que sempre tratavam de me preparar uma história diferente a cada dia. Tão sarcásticas, deram início a um show.

— Ah, o meu amado cavaleiro da armadura brilhante, Thomas Colgate! Agraciado com grande beleza e gentileza, ele é o meu verdadeiro herói. Mas, sem ele, eu não sou nada, pois no fim das contas não possuo nenhuma dessas qualidades...! — lamentava Tragédia.

Comédia, que interpretava o cavaleiro, indagou:

— Huh? Como assim, não possui? Você é Wilson, o filho de Wildad T. Gilette, o dono de uma empresa de tesouras especializadas em cortar rosas.
— Mas não só de cortar rosas vive o homem.
— ... Não? Então, do quê? A-Ah, cuidado, Wilson! Esse caminho não leva a um jardim de rosas, e sim a um labirinto de espinhos! E eles machucam!
— Aaargh, pare de falar e me deixe reclamar!! Por que raios você se preocupa tanto comigo? Por que você se esforça tanto para agradar alguém como eu? Por quê? Por quê?!

Quando ele menos esperava, tropeçou no precipício e caiu. O grito ecoou pelas montanhas, e nunca mais se ouviu falar em Wilson T. Gilette.

Entre mim e Tsubasa, não havia nada tão belo quanto um jardim, não que isso fosse um segredo.

Talvez o único a se surpreender com isso fosse eu, por empilhar as mentiras que eu contava a mim mesmo me esconder da realidade da escola. Esse era o lugar falhou com ele, e que o abandonou.

Aviso de Conteúdo Sensível:

Esta novel pode conter cenas de violência; representação subentendida de abuso físico, emocional e sexual; menção a bullying; menção a suicídio e automutilação. Por favor, leia com precaução.

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