Livro 1
Capítulo 5: Rastreamento
Bash estava sonhando.
No sonho, ele era um jovem guerreiro mais uma vez, ainda novo no campo de batalha.
No dia do sonho, ele e sua companhia estavam escondidos na vegetação rasteira, preparando-se para lançar um ataque surpresa ao inimigo.
— Ouçam, caras... Se vocês fossem ter uma esposa, como cês gostariam que ela fosse?
Agachados na densa vegetação, foi o orc Bulfitt quem fez essa pergunta. Ele tinha um ferimento profundo no pescoço, ganho na batalha anterior. O ataque que sofreu deveria tê-lo decapitado, mas graças à sua dura pele de orc, não apenas manteve a cabeça, mas sua artéria carótida nem sequer foi tocada.
Mesmo os orcs de pele mais dura às vezes precisam de cuidados médicos para evitar a cova, porém ele continuou lutando, quase inconsciente de sua lesão. Seu contra-ataque derrubou o agressor e ele conseguiu se retirar sem mais incidentes.
Já havia contado essa história uma centena de vezes. Um verdadeiro heróico orc.
— Acho que, para mim, eu gostaria de uma mulher forte.
Os orcs muitas vezes se jogavam totalmente na batalha. No auge da guerra, força e tamanho eram quase iguais em termos de vantagem de batalha. Quanto maior você era, mais fácil era ignorar feridas superficiais e continuar lutando. E, claro, seria capaz de carregar armas muito mais pesadas.
Biggden era um dos orcs mais volumosos de sua companhia. A visão dele agitando duas gigantescas maças no ar era o suficiente para fazer qualquer orc prender a respiração em admiração. Apesar de lutar em inúmeras batalhas, não apresentava grandes cicatrizes. De todos os companheiros de Bash, ele era talvez a futura estrela mais promissora.
— Eu gosto das que conhecem sua própria mente. E se é de humanas que 'tamo falando, gostaria de uma dama cavaleira. Uma forte guerreira tá tudo bem para mim.
Donzoi estava sem o dedo anelar e o dedo mindinho da mão esquerda, e todo o seu corpo estava desfigurado com queimaduras. Ele foi incendiado por um mago em sua primeira batalha. Se não houvesse um lago convenientemente localizado nas proximidades, teria morrido queimado. Desde então, sempre carregava um odre dentro de sua armadura. Era o orc mais bem preparado da geração de Bash. Estudava o inimigo, identificava quaisquer fraquezas e pensava na melhor maneira de abordá-lo. Colocou muito cuidado em escolher seu escudo ou fazer suas próprias garrafas de fogo e outras armas e ferramentas inventivas para trazer às lutas. Muitos generais do exército foram salvos pela engenhosidade dele.
— Eu sei o que cê quer dizer. Uma guerreira, hein? Boa de luta e espírito inquebrável, sabe? Isso não iria desaparecer, nem mesmo depois de já ter dado à luz três filhos pa tu. Imagine abrir caminho com ela na frente de todas as suas tropas! Só de pensar nisso...!
Budarth era um orc vermelho com uma enorme cicatriz em forma de cruz em todo o rosto. Era o capitão do pelotão de Bash. Seus braços carnudos tinham o dobro da circunferência de qualquer outro da raça, e possuía força igualada ao seu tamanho. Nasceu de uma mulher anã e tinha dedos ágeis. Era um arqueiro que lutava com uma espécie de arco híbrido. O arco foi projetado para trabalhar com a poderosa força do braço de um orc e era uma arma formidável de fato. Com ele, Budarth era capaz de prender um cavalo em uma árvore ou atirar em um wyvern do céu.
Como capitão de pelotão, tinha uma boa mente, mas também era arrogante e um tanto orgulhoso. Só porque era um dos orcs vermelhos mais raros, o fazia pensar que era melhor que os outros.
— Se queremos ter esposas algum dia, precisamos provar a nós mesmos…
Bash era o melhor espadachim do grupo. Naquela época, entretanto, ainda não tinha feito um nome para si mesmo. Era o mais baixo do pelotão, e sua pele era verde, comum. Não era um ninguém, longe disso; não tinha começado a se destacar ainda somente.
— Hum, eles estão perto.
— Hora do show, manos.
— Certo, tão chegando lá. Calem-se, geral!
Todos ficaram em silêncio, obedecendo à ordem de Budarth.
Momentos depois, o som dos cascos dos cavalos pôde ser ouvido. Parecia que o grupo inimigo estava tentando ficar o mais quieto possível, contudo os ouvidos aguçados dos orcs captavam cada pequeno som.
O grupo de Bash esperou até ouvir os respiros dos cavalos, e então...
— Gragh!
Atacaram.
O grupo inimigo consistia em cerca de cinco cavaleiros e outros trinta soldados de infantaria. Um pelotão de médio porte.
A companhia orc, no entanto, contava apenas com cinco. O inimigo tinha a vantagem, mas aqueles orcs não sabiam o significado da palavra "recuar". Em vez disso, lançaram um ataque furioso.
… Biggden morreu naquela batalha.
Quando Bash acordou, se viu deitado em um quarto desconhecido.
Onde estou?
Ao sentar na cama, os eventos do dia anterior voltaram à sua mente.
As coisas terminaram com ele sendo emparelhado com Judith, e deveriam sair e investigar a emboscada na estrada da floresta juntos. Todavia, já era tarde demais no dia anterior — o sol já estava se pondo no horizonte. Então foi levado a uma câmara privada na fortaleza e convidado a passar a noite.
"Então estou em Krassel, huh?"
Suspirou, ponderando sobre o sonho que estava tendo.
"Sim... Costumávamos ter conversas assim..."
Conhecer a cavaleira ontem deve tê-lo feito sonhar aquele sonho em particular.
Judith, a mulher que apareceu em sua vida tão de repente. Uma beleza, e talvez como resultado do treino diário e vigoroso de esgrimapossuía um corpo incrível. Sua voz também era agradável ao ouvido. O orc desejou ter ouvido ela falar mais. Para adicionar a tudo isso, era uma cavaleira — a mulher dos sonhos de todo orc.
Uma cavaleira seria orgulhosa e não desistiria, até o amargo fim. Engravidando à força uma mulher arrogante que lutou o tempo todo... essa era a fantasia mais erótica de todo orc. O círculo de orcs dele estava de acordo que um cavaleiro ou uma princesa era a melhor opção para uma esposa. Pessoalmente, não se importava se era uma princesa ou uma cavaleira, o que quer que seja. Qualquer uma serviria quando se tratava de perder sua virgindade. Mas ela... Ela era a personificação dos desejos mais profundos de cada um de sua raça. Conforme pensava sobre a possibilidade de perder a virgindade com ela, todo o sangue correu para uma certa parte de seu corpo, ingurgitando-o na hora.
"Que orc sortudo eu sou por ter conhecido uma linda dama cavaleira como ela tão cedo em minha busca."
— Ah, bom dia, chefe.
Enquanto estava sentado ali, extasiado por suas próprias fantasias, Zell parou de preparar suas asas de fada e se virou para ele com um grande sorriso.
— Você está muito, é, alegre esta manhã. Pensando em fazer uma visita àquela cavaleira, não é?
— Algo desse tipo.
— Sabe, chefe, esta é a primeira vez que te vejo em toda a sua "glória matinal". É tão magnífico quanto eu imaginava.
— É?
Sentiu seu peito inchar de orgulho.
Os orcs não se envergonhavam quando outros notavam o crescimento repentino em suas calças. Na verdade, a ereção de um orc era um símbolo de virilidade e masculinidade, e o consenso geral era que valia a pena exibir. Ser elogiado pelo tamanho de seu terceiro braço era a segunda coisa favorita de se ouvir.
O que mais gostavam de ouvir, é claro, eram elogios por sua força física.
— Aquela cavaleira, a Judith, aposto que ela é virgem, certeza! Ela provavelmente vai gritar igual uma condenada quando você colocar isso nela! — Estava tentando soar casual e desajeitada, mas na verdade, parecia um pouco envergonhada.
Sim, estava de frente para Bash, sorrindo amplamente, porém seus olhos estavam indo de um lado para o outro.
— Mas você tem certeza que ela é a escolhida?
— O que você quer dizer com isso?
— Eu só acho... Sabe, ela foi terrivelmente imprudente, considerando que é apenas uma cavaleira novata. Ela te prendeu e te desprezou. Eu sou uma fada de mente aberta, mas até eu estava começando a ficar puta.
— Eu não me importo com isso. Eu gosto de uma mulher esquentada.
— Você gosta de mulheres de força de vontade, chefe?
— Claro. Todos os orcs gostam.
Tendo dito isso, o encontro do dia anterior com ela foi a primeira vez que conheceu uma mulher fervorosa, muito menos falou com uma. Todas as que conheceu no passado foram mortas logo em seguida.
Aliás, essa suposta propensão orc para mulheres com força de vontade... Ele só tinha ouvido isso de orcs lascivos durante conversas obscenas. Ouvira tanto isso que deixou gravado na mente, e agora também acreditava que as mulheres mal-humoradas e brutas eram as melhores.
— Hmm, entendo, entendo... — murmurou Zell baixinho.
Ela começou a juntar o pó de fada que haviam deixado cair e a colocá-lo ordenadamente em uma pequena garrafa de vidro.
O pó de fada tinha um poder incomum. Quando espalhado em uma ferida, aliviava a dor e curava. Quando engolido, recuperava energia e força. Tomado sempre, podia curar a maioria das doenças e até tinha propriedades embelezadoras. Era uma espécie de panacéia.
Era uma das principais funções de uma fada, e também a razão pela qual os humanos, com seus corpos fracos, procuravam capturá-las. As fadas estavam cientes de que muitas raças diferentes estavam ansiosas para colocar as mãos no pó e, então, começaram a exportá-lo para venda.
Como têm corpos minúsculos, só podem fazer um pouco de cada vez. Ele também perde potência rápido. Assim, insatisfeitos com o conceito de comércio justo, os humanos ainda buscavam caçar para cativeiro.
— Aqui, chefe.
— Eu posso...?
— Claro! Considere isso um agradecimento por me salvar! Ah, tenho um pedido em troca... você poderia usá-lo em algum lugar que eu não possa vê-lo? Obrigada. — Ofereceu a pequena garrafa ao parceiro, corando.
Fadas geralmente odiavam dar seu pó de fada. Consideram como lixo, não diferente de fezes. Não importa o quão efêmeras as fadas possam ser, ter que ver outras pessoas espalhando seus “excrementos” em suas feridas ou engolindo-os... as deixa enjoadas. Na verdade, as que ficaram para trás em seu país durante a guerra nunca souberam para que uso o pó era usado.
Como as fadas riram ao saber que os humanos cultivavam suas colheitas usando suas fezes como fertilizante... Eca!
Zell foi uma das fadas que sobreviveram à guerra. Ainda era embaraçoso, é claro, mas conseguiu superar isso.
— Obrigado.
Assentindo, Bash aceitou a garrafa com gratidão.
— Isto virá a calhar. Não sei quantas vezes confiei nessas coisas até agora.
Quando ainda era um novato, sofreu uma lesão grave, mas o pó salvou a sua vida.
No momento em que a guerra estava chegando aos estágios finais, havia sobrevivido sem mais ferimentos graves. Usava pó de fada muitas vezes apenas para manter-se em movimento e poder lutar por dias sem parar.
Provavelmente não precisaria de pó de fada nesta jornada. Ainda assim, estava agradecido. Ter uma garrafa à mão seria muito reconfortante.
— Tudo bem, você deveria se vestir, e então... — De repente, Zell parou no meio da frase.
— Acorde, orc! O general Houston disse para mostrar a você... — A porta abriu de repente, e o rosto de Judith apareceu, espiando pelo batente.
Olhou para o orc, ele nu e expondo seus músculos da cabeça aos pés, seu orgulho subindo alto para todos verem.
Ela ficou branca de imediato e pareceu parar de respirar.
Ele conhecia o olhar em seus olhos.
Ódio.
Estava tão irritada que nem conseguia falar. Ele, todavia, não tinha ideia do porquê.
Na noite anterior, havia tirado sua armadura, já que dormiria dentro de casa e tinha ido para a cama pelado. Óbvio, não podia ser por isso que ela estava zangada, podia?
— O que foi?
— Apenas... prepare-se. Eu estarei, hum, esperando... lá fora...
— Tudo bem.
Se ele tinha feito algo para ofendê-la, então estava mesmo arrependido. Mas ele também era um orc, e um orc nunca se desculpava sem ao menos saber o que fez de errado.
— O que poderia tê-la irritado...?"
— Ela está um pé na bunda desde ontem. Talvez raiva seja apenas o humor padrão dela?
— Não, hoje parece diferente por completo de ontem.
— Suponho que sim.
Havia algo com ela, era certeza. E ele não era socialmente consciente o suficiente para identificar ou articular o que era. Nem sabia muito sobre os humanos, para começar.
— De qualquer forma, é melhor você não deixá-la esperando! Apresse-se e prepare-se! Então vá pegar aquela dama cavaleira no saco!
— Eu vou!
Uma vez que estavam prontos para ir, saíram da sala juntos.
A região oeste da floresta de Krassel…
Uma única rodovia atravessava-a, construída para transporte durante a guerra. Foi batizada de Rodovia Brikuus em homenagem ao general que encomendou sua construção. Na parte oeste, se dividia em duas estradas. Uma levava ao país dos elfos, a outra ao país dos orcs.
Apesar de ser chamada de rodovia, era mais uma trilha de terra estreita que mal cabia uma única carruagem puxada por cavalos.
O país dos orcs não recebia tantos visitantes, e se alguém quisesse ir para o país dos elfos, havia outros caminhos mais seguros para tomar. Assim, o tráfego era raro ao longo dela.
A propósito, a razão de ele não ter ido por ela era porque sua raça na maioria das vezes ficava fora das estradas, como regra. Um orc nunca se perderia na floresta, e um pouco de terreno acidentado não era nada para eles. Então, não precisavam muito de caminhos pré-estabelecidos.
Não há muito tempo atrás, um incidente ocorreu lá.
Uma carroça puxada por cavalos foi emboscada por bugbears, e os mercadores que viajavam nela foram mortos. Na verdade, esse tipo de coisa aconteceu muito. Mesmo que a guerra tivesse acabado, isso não significava que havia menos feras selvagens que atacavam os humanos ao redor. Essas criaturas pouco inteligentes vagavam pela floresta como bem entendessem, atacando as pessoas de vez em quando. Era mais do que de vez em quando, corrigindo. Esses tempos, era o tempo todo. Assim, o general, Houston, encarregou os caçadores de localizar e suprimir os bugbears em particular.
Quando a população das bestas cresceu fora de controle, ataques regulares como esses eram o resultado. Um abate era o único recurso lógico. Os caçadores já haviam eliminado vários grupos de bugbears. Eliminar cada um na floresta não era viável, mas eliminar alguns dos grupos maiores deveria ter se mostrado bastante eficaz. Depois disso, o problema deveria ter sido resolvido por um tempo. Os ataques não pararam de vez, mas os humanos estavam confiantes de que a frequência deles diminuiria de maneira considerável.
Não foi bem assim.
Os ataques continuaram com a mesma frequência de ocorrência, mesmo após os abates. Algo estava estranho. Desconfiado, Houston colocou a cavaleira novata Judith no comando da investigação.
Podia ser uma novata, contudo era uma cavaleira por um ano inteiro agora. Já era hora de ela assumir um pouco mais de responsabilidade.
Ela embarcou na investigação com prazer. Promissora, estava nervosa por enfrentar a sua primeira missão importante. No entanto, conseguiu reunir várias informações intrigantes. Primeiro, confirmou que a região oeste da floresta era apenas escassamente habitada por bugbears. Com os recentes abates — se os relatórios dos caçadores estivessem corretos, é claro —, deveria haver ainda menos. Também descobriu que várias cargas que estavam sendo transportadas pelos comerciantes desapareceram. Não tantas a ponto de serem óbvias sem verificar as listas de ações das principais empresas comerciais, mas era definitivo que itens importantes faltavam.
Bugbears e outras bestas selvagens podem arrastar cargas interessantes de vez em quando, entretanto em uma escala tão grande…? Improvável.
A partir dessas duas informações, Houston supôs que esses ataques estavam sendo cometidos não por animais selvagens, e sim por pessoas. Quem estava por trás de tudo estava fazendo parecer ataques de bestas e depois roubando quantidades sutis de mercadorias das carroças.
Até o momento, os humanos não conseguiram prender o criminoso responsável. Os ataques continuaram acontecendo, e tudo o que era deixado para trás depois eram as pegadas animalescas de sempre.
Os bugbears sabiam ficar longe quando os guardas eram enviados acompanhando os mercadores, só que, nos últimos anos, os vendedores inexperientes e entusiasmados aumentaram em número, e poucos deles prestavam atenção aos perigos de viajar sem proteção.
Relatos de testemunhas oculares de sobreviventes mencionaram eles em cena, mas nenhum se lembrava de ter visto uma pessoa. Consciente da preciosidade das vidas humanas, Houston sentiu que não poderia, em sã consciência, postar espiões na floresta para potencialmente testemunhar um ataque do início ao fim.
E assim a investigação de Judith chegou a um impasse.
Não tinha novas pistas, nem informações, nem suspeitos. Tudo o que possuía eram mais perguntas, ficando cada vez mais estressada. Estava falhando de um jeito miserável em sua primeira missão de verdade.
Quando estava chegando ao fim de seu juízo, outro ataque ocorreu. Ela e suas tropas estavam patrulhando a floresta quando tropeçaram em uma carruagem puxada por cavalos que acabara de ser atacada. Como sempre, não havia suspeitos em potencial à vista. Em uma inspeção mais próxima da cena, localizaram pegadas de orcs. As digitais os levaram de volta a Krassel. Então, enquanto reuniam relatos na cidade, descobriram que um orc havia sido recém-visto passando pelos portões. Também receberam um relatório de duas mercadoras traumatizadas, alegando que foram atacadas por um orc na floresta. A cavaleira partiu dessa nova informação e logo continuou a investigação, descobrindo que o orc pelo qual as mulheres foram atacadas estava hospedado em uma pousada na cidade.
Investigações posteriores teriam deixado claro que não havia sido o instigador da emboscada, mas a essa altura, estava muito frenética para pensar com clareza.
Ao invés disso, ficou animada ao extremo. Enfim, teve uma pista. Respirando com dificuldade, falou com seus homens.
— Isto é inacreditável! Os culpados estavam bem aqui na cidade, bem debaixo de nossos narizes, e não percebemos! É isso! Vamos reunir todos os ladrões em potencial da cidade, começando pelo orc!!!
Então instruiu seus homens a cercarem a pousada, e após isso, Bash foi preso em um caso de identidade equivocada.
— Essa é a cena. O que você acha disso, sr. Bash?
Bash foi trazido de volta ao local da emboscada. A carruagem quebrada ainda estava deitada de lado, junta com o cadáver do cavalo de vários dias, cheio de moscas.
Havia rastros. Os óbvios.
Três tipos diferentes ao todo: os das mercadoras, os de Bash e incontáveis de bugbears.
— Parece uma simples emboscada dos bugbears para mim. — Depois de olhar ao redor da cena, foi a única hipótese a qual conseguiu pensar.
Viu emboscadas feitto essa durante a guerra, muitas vezes causadas pelas tropas inimigas, mas às vezes por bestas selvagens e monstros. Guerreiros orcs podiam ser abundantes, mas se acabassem em menor número, sua sobrevivência não seria garantida.
A cena na frente dele agora parecia o resultado de um ataque padrão.
— Hmph, então você é apenas um orc normal, afinal. Tomando pelo valor nominal, não é?
— Hmm…
Judith zombou dele. Ele era um guerreiro e não estava acostumado a esse tipo de investigação, e tudo o que podia fazer era descrever a cena como a via. Desejou, entretanto, poder dizer algo — qualquer coisa — que impressionasse a companheira.
— Bem... em primeiro lugar, não há outras pegadas além das das mercadoras. A carga também parece praticamente intocada. Se uma força inimiga tivesse emboscado, não teria como deixar os despojos para trás, principalmente comida e água; as primeiras coisas que levariam, na lógica. Se fosse em tempo de guerra, seria fácil atribuir isso a nada mais do que um ataque aleatório de bugbear.
— Certo. Continue…
Bash pensou muito, seu pequeno cérebro trabalhando o mais rápido que podia.
Não o usava dessa maneira há muito tempo, desde aquela época que as tropas anãs quase o enterraram vivo nas Cavernas Aryoshiya.
Usou todas as informações ambientais locais disponíveis ali a fim de escapar.
— Se este é o trabalho de seres sencientes, deve haver algum tipo de objetivo por trás disso.
— É o que temos dito. O objetivo deles é atacar os comerciantes e evitar suspeitas, fazendo com que pareçam animais selvagens. Se a culpa recair sobre os animais, eles não serão suspeitos e poderão continuar roubando. Sendo honesta, orcs são estúpidos demais. Você não passa de um peso morto para esta investigação…
— Hmm…
Olhou para sua parceira, a fada.
Em situações como essa, os orcs muitas vezes se voltavam para suas companheiras fadas, os batedores, por suas opiniões.
Zell zuniu ao redor da cena, dando cambalhotas no ar enquanto pensava muito. Então, chegando ao nível dos olhos de Bash, balançou a cabeça.
— Bem, a julgar pela cena, um ataque de bugbear é a única explicação que consigo pensar também.
— Ah, é isso, agora?! Veja, vocês são inúteis. Este é um problema complexo. Estamos investigando há séculos e ainda não sabemos quem está por trás disso. Não é como se fosse algo superóbvio, algo que vocês dois idiotas poderiam descobrir apenas de uma olhada na cena, você sabe. — Estufou o peito com altivez ao dizer isso, embora o fracasso de sua equipe não fosse nada para se gabar.
Zell não fazia ideia, nem Bash.
— Vamos continuar com o rastreamento, então?
— Sim, vamos à próxima área.
— Próxima área? Do que você está falando? — Ainda inchada de indignação, estreitou os olhos para a fada e o orc.
— Ora, rastrear os bugbears, é claro. — Zell deu de ombros, porém a carranca da cavaleira só se aprofundou.
— Rastrear? Não seja absurda. Bugbears são incrivelmente astutos. Mesmo nossos melhores caçadores não podem rastreá-los.
Como regra, os bugbears não deixaram rastros. Pelo menos, esse era o consenso humano geral. Eram adeptos de esconder seus próprios rastros e cuidadosos até para não fazer cocô em qualquer lugar, exceto em segurança dentro de seus próprios covis. Para voltar para seus covis sem deixar evidências, atravessavam rios e até escalavam árvores. Qualquer coisa para evitar deixar impressões. A fim de atrair e capturar um, os caçadores tinham que queimar incenso especial para atraí-los. Esse incenso era feito de sangue de bugbear. O cheiro os confundia, fazendo-os pensar que seu território estava sob ataque, e todo o bando vinha correndo para lutar. Contanto que o fosse queimado em áreas que continham eles mesmo, é isso.
— Mesmo? Os humanos não podem rastreá-los?
Essas crenças sobre nunca deixarem rastros eram muitas vezes mantidas apenas pela raça humana.
As outras raças sabiam melhor como rastreá-los.
— Você está dizendo que as fadas podem?!
— Não, não, fadas não participam de rastreamento ou outras práticas animalescas. E, além disso, não temos motivos para os perseguir. Eles nem existem no país das fadas, então ninguém se importa. Certamente, ninguém se importaria em ir rastreá-los...
Na verdade, bugbears também não viviam tradicionalmente em terras humanas. Após a guerra, aí sim começaram a aparecer dentro das fronteiras da humanidade. Por quê? Se mudaram? Difícil. Eram animais selvagens muitíssimo territoriais. Não, nunca deixariam suas casas originais. Na verdade, havia uma explicação lógica. Foi porque os humanos tomaram terras que pertenciam a outra raça e descobriram as bestas morando nessa terra. Talvez sempre tenha sido território deles.
“Se você quer rastrear um bugbear, você tem que perguntar aos orcs. Eles fazem isso há centenas de anos!”. Certo, esta terra era originalmente parte do país orc.
Os animais selvagens eram vermes. Deixados sem abate, se infiltravam nas cidades e aldeias, destruíam plantações e atacavam o gado. Quando seus números eram abundantes, até atacavam as pessoas. Não havia tantas diferenças entre bestas selvagens comuns e demoníacas. Uma fundamental era que as demoníacas tendiam a aparecer do éter, aparentemente não de meios reprodutivos naturais. Embora alguns digam que a principal diferença era que apenas bestas demoníacas atacavam humanos sem provocação.
Falando a verdade, os homens-fera, demônios e orcs — raças agora classificadas como seres sencientes — eram considerados equivalentes a criaturas míticas e monstros pré-guerra. Os registros históricos humanos até os descreveram como tal. Os bugbears também eram vistos pelos orcs como um tipo de criatura mítica, só que eram tratados da mesma forma que outros animais selvagens. Não eram muito saborosos, mas seu tamanho grande e o grande número deles os tornava comida adequada para os orcs. Como resultado, os orcs se tornaram habilidosos em caçá-los. Orcs caçadores se levantavam ao amanhecer e saíam para rastreá-los. Afinal, Deus ajuda quem cedo madruga. Durante a guerra, o próprio Bash costumava os caçar.
Ele estava em silêncio agora, seguindo solenemente a trilha das bestas. Não estava caçando há algum tempo, todavia ainda assim foi fácil para ele. Bugbears podiam ser astutos, só que mesmo eles não eram capazes de esconder por completo seus rastros. A saliva que tendiam a soltar enquanto se moviam entre as árvores na verdade tinha um cheiro característico e era uma grande pista. Orcs tinham narizes afiados. Seu olfato estava sintonizado bastante com os odores distintos dos animais selvagens. Podiam captar cheiros que caçadores humanos mal perceberiam. Na verdade, dizia-se que tinham um olfato ainda mais apurado do que o dos homens-fera. Em outras palavras, não havia esperança de rastrear um sem o nariz de um orc para guiar o caminho.
Bugbears eram quase patologicamente obcecados em esconder seus próprios rastros. Se visse uma pegada deles, era provável que fosse muito fraca, ou mesmo apenas pequena, tanto que duvidaria de seus próprios olhos. Também às vezes deixavam de propósito impressões falsas que levavam na direção oposta de seus covis, apenas para afastar possíveis perseguidores.
— Ouvi dizer que os orcs têm um faro afiado para rastrear animais selvagens, mas eu não tinha ideia... — Houston estava olhando com admiração para Bash, que estava ocupado rastreando. Sua voz cheia de admiração.
— Não é tão impressionante. Você sabe tão bem quanto qualquer um que nossos narizes são mais fáceis de enganar do que, digamos, o de um homem-fera.
— Ah, bem...
A resposta direta fez ele sorrir fraco.
Sim, os orcs podem ter sido abençoados com narizes aguçados, entretanto não perspicazes. pois eram incapazes de categorizar cheiros diferentes. No passado, os humanos exploraram essa fraqueza atraindo-os para um lugar e depois emboscando todo o grupo deles.
Houston encontrou seus pensamentos voltando para a guerra.
Ele uma vez atraiu Bash para uma armadilha usando essa exata técnica na esperança de matá-lo.
— De qualquer forma, esse método de rastreamento deve nos levar aos responsáveis pela emboscada.
O Herói Orc estava liderando o grupo, que consistia em sete humanos. Havia Houston e Judith, além de cinco soldados de infantaria. Os soldados foram todos treinados pelo próprio general. Os cinco o serviram fiéis desde a guerra... Claro, todos sabiam sobre Bash, só que eram somente soldados de infantaria. Nenhum deles tinha qualquer interesse particular em conhecer o inimigo, e nenhum deles era especialista em orcs, como seu treinador era. O peso total do título do orc não foi tão gravado neles. Tudo o que sabiam era que havia um guerreiro particularmente selvagem no campo de batalha durante a guerra.
Antes de partir, Houston reuniu seus soldados ao seu redor. “Ele pode ser um orc, mas é um orc de status significativo. Vocês não precisam estar em guarda perto dele.”. Eles, porém, continuaram a vê-lo como uma entidade desconhecida e ameaçadora. Permaneceram em alerta máximo a respeito dele, certificando-se de ficar atentos aos arredores para que pudessem reagir rapidamente se o orc lançasse um ataque surpresa. Estavam um pouco confusos, até. Por que o General Houston estava expressando tanta boa vontade com um orc? Foi estranho ao extremo.
— O general perdeu a cabeça? E ele geralmente é tão implacável com os orcs também…
— Não tenho a menor ideia.
— Hmm, talvez algo tenha acontecido com esse orc em particular na guerra. — Os soldados murmuraram entre si, tentando entender a estranha atitude do ex-líder da Força Antiorc.
— Sim, não tem sentido. Talvez tenha sido colocado sob um feitiço?
— Talvez. De qualquer forma, se Houston, o Exterminador Suíno, está disposto a atestar por ele, então deve ser um tipo especial de orc.
— Certo, há algumas pessoas boas para serem encontradas por aí, mesmo entre as harpias e os homens-lagarto. É lógico que deve haver pelo menos alguns meio decentes.
— Você deve estar certo. Este orc parece bastante incomum.
Por meio dessa discussão silenciosa, conseguiram chegar a um consenso geral sobre as supostas credenciais de Bash, embora uma pessoa não tenha ficado convencida. Essa pessoa, é claro, era Judith.
— Hmph...
À medida que os outros soldados começaram a se sentirem cada vez mais seguros com Bash, apenas ela permaneceu fria, fixando ele com um olhar odioso.
De repente, ele congelou.
Judith desviou o olhar em pânico e percebeu que não tinha motivos para se sentir perturbada e dirigiu seu olhar para ele de novo, numa maneira desafiadora.
Bash simplesmente olhou para a carranca dela com uma expressão neutra em seu rosto.
Por alguns momentos, se contemplaram. Ela estreitou os olhos, o desafiando a ser o primeiro a desviar o olhar. Se mostrasse o menor indício de fraqueza agora, o orc logo começaria a jogar seu peso e tentar intimidá-la. Sabia disso.
— Huh.
Como se estivesse lendo a mente dela, o orc revirou um pouco os olhos, desviando o olhar.
— Ei!
Ela entendia aquele olhar: zombaria.
Era como se dissesse que ela era insignificante demais para se preocupar.
"Como se atreve a olhar para mim de cima para baixo!?"
Claro, ele não tinha tais intenções.
Estava apenas colocando em prática o que aprendeu com a lição sobre mulheres humanas que Zell lhe dera. Regra número quatro: dê a ela um olhar de apreciação. e regra número cinco: dê a ela um sorriso sugestivo.
Pelo visto, as mulheres humanas adoravam o que Zell chamava de “olhar masculino”. Também gostavam de homens misteriosos.
Havia garantido a ele que qualquer uma ficaria de joelhos por um homem que pudesse abrir um sorriso sugestivo no momento crítico.
Ficar desse jeito por causa de um sorriso... Poderiam as mulheres humanas ser tão fáceis assim?
De qualquer forma, as tentativas dele não pareciam ter o efeito desejado nela.
— Algo está errado, sr. Bash?
— Não, nada... Aliás, estamos chegando perto agora.
Houston apertou os lábios com força e levantou uma mão no ar.
Ao seu sinal, todos os soldados de infantaria pararam de repente. Com um tinido final de sua armadura, congelaram.
Apesar de estarem vestidos com armaduras pesadas, conseguiram ficar parados, sem fazer o menor tinido ou barulho. Sobreviveram no campo de batalha da guerra, onde fazer o menor ruído muitas vezes podia significar a morte.
— Judith, é hora do silenciamento.
— Sim, senhor.
Ela retirou sua varinha de seu cinto ao comando de Houston, seu rosto solene e sério.
Então, murmurando um encantamento baixinho, começou a lançar magia silenciadora em cada soldado por vez.
Esse tipo de magia de suporte exigia que o lançador tocasse o corpo do destinatário.
Naturalmente, ela fez uma pausa antes de tocar no orc. Contudo, ciente dos olhos de seu superior sobre ela, sabia que não podia fugir dele. Ainda era sua primeira missão, e provou ser completamente inútil até agora. Não estava disposta a atrapalhar ainda mais as coisas deixando seu próprio sentimento de desgosto atrapalhar.
Com um olhar de repulsa em seu rosto, colocou a mão no ombro volumoso dele.
— Unf!
Só então, ele soltou um grunhido estranho.
Ela se encolheu, assustada.
— O quê? O que foi?
— Ah... peço perdão. É só que sua mão está tão... fria.
De alguma forma conseguiu arranjar uma desculpa. Foi sacudido pelo toque suave da mão de uma mulher, que nunca sentiu antes. Foi de repente dominado por uma enorme vontade de jogaá-la no chão e fazer filhos ali mesmo, na frente de todos.
Se conteve. Que bom, não?
Não precisava mais da ajuda da fada para adivinhar que uma mulher humana não aceitaria uma coisa dessas.
Na guerra, uma vez viu um grande chefe carregando uma mulher como um saco de batatas. Ela estava gritando e agindo e parecia bastante agitada, tudo porque quem carregava tinha acabado de fazer o que queria com ela, estava na cara. Não parecia violento, como era de costume. Os orcs espectadores próximos estavam todos sorrindo e rindo enquanto assistiam, e ela, frenética. Aparentemente, tal coisa era um problema maior para os humanos. Se um orc fizesse uma coisa dessas nesta era pós-guerra, talvez fosse considerado não consensual.
E assim ele cingiu seus quadris e tentou desacelerar sua respiração rápida.
Regra número seis: seja sutil.
Quando orcs eram confrontados com uma batalha ou uma mulher, tendiam a ofegar e bufar alto, e as humanas aparentavam não se importar com isso, considerando um comportamento bárbaro.
Quando se segurou, seu corpo começou a brilhar de leve. Era um sinal de que o feitiço havia se firmado.
— Tudo bem. Primeiro, vamos enviar um batedor à frente.
No momento em que Houston sugeriu, Zell disparou.
— Um batedor, você diz? Deixe para mim! Estou pronto para mergulhar no perigo. Eu até voaria direto para as chamas do próprio Monte Bafar!
Então, sem se preocupar em esperar por uma resposta, disparou para dentro da floresta sem olhar para trás. “Estarei de volta antes do pôr do sol!”, gritou antes de desaparecer entre as árvores.
— Hmm, bem, não vejo mal em deixar isso para ela.
Houston também sabia bastante sobre a fada.
Ela poderia farejar a posição do inimigo, não importa o quão bem estivessem se escondendo. Se infiltraria no próprio QG inimigo e guiaria a companhia de Bash direto ao local para então a carnificina acontecer. Sim, ela era uma olheira e espiã especialista. O general sabia tudo sobre.
— Hmm... Sim, eu suponho...
— De qualquer forma, vamos manter nossa posição aqui até que ela retorne.
— Hmm.
Bash assentiu, porém, sua testa estava franzida.
Sabia que Zell localizaria o inimigo — isso era certo. O único problema era metade do tempo em que ela encontrava o inimigo, o inimigo também a encontrava... E assim como ele temia, ela não retornou.