Servo da Coelha Rebelde Brasileira

Autor(a): David/Diana Machado


Volume 1

Capítulo 8: Bad Omen

"Pobre é o mestiço cuja vida,
por vis feiticeiros destruída,
vai-se e vai-se a cada noite
de macabro ritual e cruel açoite.
Berra a criança ao perder a alma humana,
mas, na sua agonia, não há salvação;
pois, do sangue do demônio, passou de zana
a afronta à sagrada Numen da criação."

Nascidos do Sangue, trecho da canção popular helenesa.


Balançando uma espada de madeira para cima e para baixo, Henry realizava seu treinamento matinal. Graças às circunstâncias extraordinárias da primeira semana, não conseguira se exercitar como costumava. Para compensar, fez todas as manhãs desde o Dies Caeruleus de palco para suas atividades extenuantes, do nascer do sol até o desjejum.

— Setecentos e noventa e nove... oitocentos!  

Em seguida, Henry se deixou cair de bunda na grama. Seu local de treinamento ficava entre o Dormitório Sucellus e a Ala Laranja. Estava ofegante e suado, e seus músculos ardiam como se estivessem queimando. Porém, ele já havia se acostumado à aquela sensação. Conferiu a hora em um pequeno relógio de bolso.

— Já são seis e quarenta e cinco? Melhor eu me apressar. Do jeito que ela demora no banho, não posso perder tempo.

Henry e Ágnes não haviam se falado desde a confusão na enfermaria. Além do mais, devido à suspensão e aos feriados, eles quase nem se viram nos últimos dias. As únicas exceções foram durante as refeições, em que todos os estudantes se reuniam. E, quando por acaso se encontravam, era raro trocarem olhares.

Não era como se Henry fizesse questão de receber atenção, mas era irritante saber que estava sendo ignorado de propósito. Por essa razão, utilizou a folga não apenas para treinar, mas também para conhecer novas pessoas e explorar o restante da Academia. Nesse processo, acabou participando de algumas pequenas aventuras — nas quais se divertiu bastante, apesar da quantidade de pontos negativos.  

Talvez o maior ponto negativo tenha sido algum tipo de punição divina dos espíritos. Não, com certeza tinha sido isso. Por que, de todos os jogadores de cartas do Le Marigot, Henry teve de enfrentar logo Florentin? Estava aliviado que o garoto havia se recuperado. E ele não parecia ressentido, então até se cumprimentaram de modo amistoso. Por isso, não hesitou em aceitar pagar uma prenda caso perdesse a partida.

Julgando o livro pela capa, Henry acreditou que se tratava de um idiota e não se preocupou. E pagou um alto preço por isso. Nunca, jamais se esqueceria daquele incidente. Apesar de problemas como este, aqueles dias foram mais alegres do que sombrios.

Como será que devo falar com ela depois daquilo? Ainda eram sete horas quando Henry bateu na porta do quarto de Ágnes. Não demorou muito tempo para que a maçaneta girasse.

— Oh! — Adélaide exclamou, vestida em um pijama lilás. — Bom dia, senhor Atwater.

— Bom dia... Que surpresa. Não esperava encontrá-la por aqui.

Eles trocaram algumas palavras e Henry entrou. Deparou-se com Ágnes deitada sobre sua cama, apoiada pelos cotovelos e balançando as pernas magras. Estava vestindo uma camisola de mangas bufantes, analisando um tabuleiro de xadrez.

— Bom dia.

— Ah!

Surpreendida, Ágnes caiu sobre o jogo e bagunçou todas as peças.

— H-Henry?! O que está fazendo aqui, a esta hora? E como ousa estragar minha partida de xadrez?!

— Vim para não deixar que perdesse a hora. Mas, aparentemente, isso nunca foi necessário.   

— Então não queria acabar com nossa partida?

— De onde você tirou isso? 

Contudo, Ágnes ainda não estava convencida. Com o rosto corado, ela disse, quase em um sussurro:

— N-nesse caso, você estava planejando me ver com minhas roupas de dormir?

— Eu só vim para acordaá-la. Isso é tudo.

Ágnes deu de ombros e se juntou a Adélaide para ajudar a recolher as peças espalhadas pela cama. Enquanto elas faziam isso, Henry descobriu que Adélaide já havia sido derrotada nove vezes seguidas só naquela manhã. Não pôde deixar de pensar que Ágnes era um monstro. Em todo caso, estava feliz por ela ter se recuperado bem da discussão. Não parecia mais nem um pouco afetada.

— Enfim, melhor você tomar logo seu banho, Ágnes. Se não se apressar, chegaremos atrasados.  

— Huh? Acha que pode falar assim comigo após partir meu coração? — disse Ágnes de maneira fantasmagórica.

— Perdão? — Henry franziu o cenho e a encarou, articulando as orelhas para ouvir melhor.

— O que foi? Se não tem mais nada a dizer, por favor, retire-se. Não quero me atrasar para o desjejum.

Adélaide se despediu de Ágnes com um abraço e acompanhou Henry para fora. Sentado em um banco à beira da calçada, Henry não conseguia relaxar. A atmosfera estava esquisita. Algo parecia estar errado... Embora nada estivesse, de fato. Não importava como tentasse interpretar aquilo, Henry só conseguia chegar a uma única conclusão: bad omen.

De repente, depois de vinte minutos, avistou no horizonte um lacinho encarnado preso a uma longa madeixa de cabelos negros. Não demorou para divisar uma garota vestida no uniforme acadêmico e portando uma braçadeira branca.

O desjejum consistia de alimentos leves para se ter sustendo durante a manhã. Ao sinal das sete e meia, os estudantes se levantaram e juntaram as palmas das mãos. De olhos fechados, eles rezaram para os espíritos. Após a oração, todos se sentaram novamente.

Terminando de passar a geleia no interior do pão, Henry o mordeu. Porém, um pouco de geleia de framboesa deslizou e caiu no pires de porcelana. Naquele momento, o cenário mudou... Hã? Quando Henry se deu conta, os estudantes haviam desaparecido. As pedras do piso do refeitório haviam se transformado em uma lama pegajosa, salpicada de poças de sangue e tripas.

O que está acontecendo? Ei! Embora tentasse se mexer, seu corpo não lhe obedecia. Sentiu um líquido gelado em suas pernas e um forte odor ferroso. Ao inspecionar a causa, seu estômago quase entrou em erupção. A terrível ânsia apertava suas têmporas e enfraquecia seus músculos. Ngh! Suas pernas estavam submersas na essência vital de alguns jovens, cujos corpos haviam sido perfurados por dezenas de flechas.

Henry ficou espantado ao perceber que segurava um mosquete em suas mãos enluvadas. Seus braços estavam cobertos pelas mangas longas de uma jaqueta verde, machada de sangue e suja de pólvora e de lama. Parecia que estava dentro de uma trincheira. Gritos selvagens e grunhidos de agonia eram ouvidos por todo lado, assim como explosões e choques metálicos. Não... por que isto está acontecendo? Isto não pode ser real... Não, não, não... 

— Henry? Henry!

Em um estalo, Henry estava de volta ao Saveur Royale. O pão que ele mordeu havia caído no chão e espalhado a geleia e seu corpo estava encharcado de suor.  

— O que aconteceu? — Ágnes perguntou, agachada ao seu lado. — Você está bem? Quer que eu peça ajuda?

— Eu estou... bleeeerg!

Interrompendo sua fala, uma mistura repugnante escapou da boca de Henry e caiu sobre mesa, emporcalhando a toalha branca e algumas bandejas de alimentos.

— Henry!

— Senhor Atwater!

A visão de Henry gradualmente perdia o foco e o mundo se tornava violeta. Suor frio escorria pela sua pele e ele sentia como se tivesse ficado três dias sem comer ou beber. Sentia os sintomas de queda de pressão e rangia os dentes com as câimbras. Ainda assim, de alguma forma, deu-se conta de que os olhos das garotas... não, de todos ao seu redor... tinham um brilho carmesim primitivo. E estavam fixados somente nele.

Que merda... está acontecendo...? Enquanto dava seu melhor para manter sua calma, Henry se afastava pouco a pouco da mesa.  Acuado no canto da parede, exibiu seus caninos para a multidão. Eles tinham um sorriso macabro. Ignorando a ameaça, Ágnes começou a se aproximar.

— Get away!

— Hen-ry...

Ágnes  sorriu. Seus dentes caninos estavam pontudos. E o pior, sangue escorria por eles. Sua língua, longa como a de uma serpente, balançava de um lado para o outro. Não pode ser...! Henry estava atônito.

Diante de si, Ágnes estava pálida como um cadáver. Suas orelhas haviam se tornado pontudas e seus cabelos adquiriram uma coloração prateada. E seu corpo ainda estava se transformando. Seja lá o que fosse aquilo, não era mais humano. Era algo sobrenatural. Uma criatura profana, fruto da corrupção e da perversão humana. Um demônio do sangue. Um híbrido imoral...

V-vampiro?! Henry prendeu a respiração. Testemunhando aquela inumana transformação, cujo terror não poderia ser descrito em palavras, Henry perdeu a consciência e desabou no chão.

— Ei. Ei... Ei!

Uma voz feminina insistia em o chamar. Henry abriu os olhos e se deparou com Ágnes. Eles estavam sentados em seus assentos, na sala de aula.  

— Hã? O que aconteceu...?

Sua memória estava embaralhada. Segundos atrás ele havia presenciado uma situação aterrorizante e agora estava na sala de aula. A sensação de medo ainda estava presente, mas não era muito diferente de quando você despertava de um pesadelo.

Arqueando a sobrancelha, Ágnes perguntou:

— Por que esta reação?

— Nós não estávamos no Saveur Royale?

— Não. Faz uma hora que estamos aqui. Você está dormindo desde a primeira aula. Deveria estar sonhando.  

— Sonhando?

Parando para pensar, aquele tipo de coisa só poderia acontecer em um sonho. Ou melhor, em um pesadelo. De qualquer forma, melhor esquecer daquilo. Decidido, Henry suspirou aliviado e olhou pela janela ao seu lado. Além das muralhas, havia vastos campos cobertos por vegetação rasteira, que terminavam em um enorme paredão de terra no horizonte.

Cri-cri-cri-cri.

Pela ausência de um professor, Henry havia deduzido que se tratava do intervalo entre as aulas. Mais de quinze minutos se passaram e nada do professor. Aquilo era incomum, pois os intervalos duravam exatamente dez minutos. Algo não estava certo.

O comportamento anormal dos alunos reforçava o sentimento de Henry. Ele só havia assistido a um dia de aula com eles e por isso não podia julgar com precisão... Mesmo assim, teve a impressão de que seus colegas estavam diferentes. Estavam sentados em silêncio, envoltos por uma aura melancólica...

De repente, a porta corrediça de baixo se abriu. Uma funcionária loira entrou e, após pigarrear, declarou:

— Estudantes do segundo ano "D", infelizmente, o professor Johnson está doente e não poderá ministrar sua aula. Por favor, comportem-se e utilizem o tempo livre para estudar por conta própria. Isso é tudo.

Com uma breve reverência, a mulher se retirou. Os estudantes permaneceram indiferentes. Henry franziu as sobrancelhas e mergulhou em seus pensamentos. Não muito depois, ele, que estava farto daquele ambiente sombrio, convidou Ágnes para dar uma volta. Essa, após um breve teatro, aceitou o convite.

 Sentados em um banco na Fonte do Trevo, não muito longe do prédio escolar, os dois apreciavam a brisa do verão.

— Poderia me dizer o que está sentindo? Você me parece inquieto.  

— Não sinto nada. Só queria tomar um ar.

— Não esconda as coisas de sua mestra. Vamos, conte.

— Se você insiste, tudo bem... Escute, não consigo dizer o quê, mas a minha intuição me diz que algo aqui está muito errado.

Ágnes levou a mão ao queixo e pensou. Em seguida, cruzou os braços e respondeu:

— Não vejo nada de errado. Pare de se preocupar com besteiras.

— Se me responderá assim, não me pergunte o que estou sentindo.

Revirando os olhos, Henry fez uma careta. Vendo isto, Ágnes deu um sorriso sádico e se levantou.

— Tolo... E você ainda espera que algo aqui faça sentido? Seus anos de experiência aqui não lhe ensinaram nada?

— Hã? O que isso significa?  

O semblante de Henry mudou. Seus olhos apontavam para Ágnes como dois canos de espingardas preparados para atirar a qualquer momento.

— Oh? Não me diga que já se esqueceu...

— Chega de brincadeiras. Explique-se!

— Hu-hu-hu. Acredito que você já saiba a resposta, não é verdade? Não preciso vocalizá-la... Henrique.

Bam! Ameaça...

Henry desferiu um soco-martelo na lateral da parede da fonte. Ele irradiava uma poderosa intenção assassina, exibindo uma expressão demasiado rígida.

— Desgraçada... Como você sabe disso?!

— Hum... quem sabe?

Ela deu uma risadinha e piscou um olho. Em resposta, Henry quase deu um soco em sua face, mas conseguiu se restringir a tempo. O calmo e composto Henry Atwater estava vermelho de raiva. Ele fumaçava pelas narinas como um touro demoníaco. A atitude de Ágnes naquela situação só inflamava seus sentimentos. No entanto...

Acalme-se, Henry. Lembre-se dos ensinamentos de Bridget. Henry cerrou os punhos e ajustou sua respiração. Aquela bonitona sempre me dizia para manter a compostura. Não posso decepcioná-la. Desse modo, a feição intimidadora de Henry logo reverteu a sua habitual poker face.

Fechando os olhos, ele relembrou tudo o que havia acontecido, ligando os pontos em sua mente. As reações convenientes, os eventos limitados, as anomalias...

— Quem é você, de verdade?

— Huh? Ágnes de Los Rosales, ora.   

— Não minta, impostora.

— Hi-hi-hi-hi-hi! — Ágnes segurava sua barriga chapada e gargalhava como uma hiena.

— Não foi você quem disse "você ainda espera que algo aqui faça sentido?", impostora? Não, eu não espero. Não deste lugar. Que feitiço é este?!

— Feitiço? Ficou maluco, Henry? O que você está querendo dizer?

— Pare de fingir, verme. Caso se faça de boba novamente, farei com que nunca mais consiga atuar. Responda-me, quais são os nomes dos Sete Reis Celestiais? Ou talvez, quem projetou a Torre de Babel? Melhor, demonstre-me seus conhecimentos linguísticos.

— A-ah, hum...

— Não sabe? Como eu imaginei. Minha hipótese estava correta. Nada aqui está além dos limites do meu próprio conhecimento. Professor Johnson? Besteira. Eu sou o único eastlandês nesta Academia Mágica. Bem, parece que minha ignorância me salvou.

— Como...? Você não deveria conseguir perceber estes detalhes!

Com seu esquema destruído, a impostora se ajoelhou no gramado da fonte. Ela estava irritada e, ao mesmo tempo, chocada. Um estudante do segundo ano havia encontrado uma maneira de ignorar o encantamento de seu feitiço. Não somente isso, ele também havia desvendado seu enigma!

Kaabruuuuuuuuuum!

De súbito, uma chuva de raios atingiu as imediações da Fonte do Trevo. As árvores pegaram fogo e as chamas se espalharam pelo gramado. Por reflexo, Ágnes se atirou na direção de Henry. Porém, ele a impediu de se aproximar utilizando seus braços. Está com medo? A impostora está com medo...?

As nuvens sobre a Academia estavam escuras como as profundezas do oceano. Os trovões ecoavam como os tambores de uma banda marcial, substituídos por baterias de canhões navais.

— O que você fez, maldita?!

— Eu não fiz nada!

— E o que é isto?!

— Não faço ideia!

No alto do céu, as nuvens se acumulavam em uma espiral formando um furacão que descia para encontrar a terra. O vórtex era imenso e cobria o campus inteiro. A ventania era brutal e arrancava bancos, estátuas, árvores, arbustos e pessoas do solo, arremessando-os para todos os lados.

Uaaaaah!

Apesar dos esforços para se manter agarrada ao banco, Ágnes foi puxada pelo turbilhão e lançada pelos ares. Não muito depois, foi a vez de Henry. Ele voou por dezenas de metros até que, enquanto rodopiava no céu, bateu a cabeça em uma pedra e apagou.



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