Servo da Coelha Rebelde Brasileira

Autor(a): David/Diana Machado


Volume 1

Capítulo 7: Se os Pingos de Chuva...

Na nossa época, é senso comum que as pessoas — homens e mulheres — cuidam da aparência com elixires, poções, unguentos ou extratos vegetais. Acontece que, antes desses medicamentos se popularizarem, cerca de vinte ou trinta anos atrás, assassinos, espiões e militares utilizavam-nos para se misturarem ao ambiente!

Creiam-me, não minto; conheci um eu mesma. Não me dizia, é claro, mas eu sabia. Não se pode enganar os olhos de uma esteticista! Tomava elixires hormonais — ignoro com que frequência — para retardar o crescimento dos pelos corporais, suavizar a voz e afinar os traços.

A Estética e a Beleza no Século XV, Camille de Eaux Bleues.


Os relâmpagos clareavam o céu enquanto a tempestade continuava sobre a Academia Mágica. Escorrendo pelas folhas das plantas e pelas pétalas das flores, as gotas de chuva pingavam nas poças de água do solo e ondulavam suas superfícies.

Sentado na grama do espaço entre a Ala Verde e a Ala Amarela, Henry contemplava aquele fenômeno. Quando foi mesmo a última vez que tomei banho de chuva? Natural de uma região quente e seca, chuvas eram sempre bem-vindas por Henry. Desde criança, gostava de brincar na chuva com os amigos.

Naquele dia também estava caindo um aguaceiro... De fato, naquele dia, a tempestade causou um estrago. Árvores foram derrubadas, telhados foram arrastados e pessoas foram carregadas pela fúria da ventania. As descargas elétricas incendiaram algumas moradias e espalharam o terror pela vila, enquanto a água alagou as ruas da localidade.  

Henry balançou a cabeça e se deitou de braços abertos na grama molhada. Preferia não se lembrar daquele fatídico dia. Tudo o que queria era aproveitar a massagem dos pingos de chuva.  

— ♪ Se os pingos de chuva fossem pingos de ameixa, que chuva gostosa seria... ♪ — cantarolava de olhos fechados, movimentando os braços de cima para baixo na lama.

De repente, abriu os olhos ao escutar um som incomum e virou-se para a esquerda. Mas sua preocupação fora em vão; não passava de um pequeno sapo-chaxin, carregando um filhote nas costas. Por coincidência, os anfíbios estavam entre os tipos de animais favoritos de Henry.

Acreditava que o corpo inchado e os olhos esbugalhados não os tornavam feios, mas faziam parte do seu charme exótico. Um dos seus passatempos em dias chuvosos era procurar por eles. Adorava observá-los e ouvi-los coaxar nas lagoas e açudes.

Porém, os sapos o lembraram de algo desagradável. Geez... Não é suposto que uma tsundere o espanque ao ser tratada daquela forma? Levar uma surra teria sido menos impactante. Embora tenha sido ele mesmo quem disse coisas ruins a Ágnes, Henry estava decepcionado com o resultado. Afinal, foi com Ágnes que mais passou tempo na Academia, seus dias mais pacífico nos últimos anos.  

Seria maravilhoso se pudéssemos conviver normalmente, como amigos comuns. Contudo, nem sempre as coisas são como desejamos. Henry não podia fazer nada. Uma parcela da culpa era sua, claro. Ter perdido a compostura foi um erro. Porém, devido à natureza de sua missão, aquilo estava destinado a acontecer. Um guarda-costas não deveria se envolver de forma profunda com seu cliente. Este era um conceito básico da profissão.

Antes mesmo do seu inumano treinamento no Batalhão Negro, Henry já conhecia esta regra. Aquilo poderia levar o guarda-costas a baixar sua guarda e atrapalhar seus julgamentos. Portanto, cedo ou tarde ele precisaria estabelecer um limite para sua amizade. No entanto, aquilo não implicava em machucar Ágnes...

Kabruuuuuuuuuuuuum!

Um raio gigantesco atravessou as nuvens. Henry fechou os olhos e suspirou. Um certo sentimento continuava a arranhar seu cérebro e a martelar pregos em seu coração.

O quarto de Henry não era tão diferente do quarto de Ágnes. O que mudava era a ausência do guarda-roupa e da mesa de cabeceira, que eram substituídos por uma cômoda. O banheiro, cujas paredes eram de azulejos, seguia uma linha minimalista. Possuía uma pia, um espelho redondo, um cesto de palha, um vaso sanitário e uma banheira de bronze.

Henry examinava, seminu, seu reflexo no espelho. Havia atirado o uniforme ensopado no cesto e esfregava a palma da mão no queixo. Não faz uma semana e já está crescendo? Que saco. E o que há com esta aparência? Estou parecendo um selvagem. Lama seca e grama salpicavam sua pele bronzeada. Tentou deslizar os dedos pelo cabelo, mas os fios estavam grudados uns aos outros pela oleosidade e pela sujeira da terra molhada.

Deu um suspiro profundo e abaixou a cabeça. Pegou um frasquinho esverdeado em cima da pia, retirou a rolha e esvaziou o conteúdo em uma única golada. Colocou o vidro no mesmo lugar e reparou no seu corpo; não era um corpo musculoso, mas era bem definido. Havia diversas cicatrizes em sua pele, recordações das batalhas do passado. No entanto, o que mais chamava atenção era a tatuagem em seu ombro direito. Era uma tatuagem índigo ilustrando uma águia de aspecto nebuloso, com as asas bem abertas e carregando algo semelhante a um raio em seus pés.

Ele a encarou por um tempo. Aquilo estava gravado em seu ombro havia alguns meses. Deixando aquilo de lado, Henry entrou na banheira.

— Eita porra...!

Todos os pelos do seu corpo se arrepiaram ao mesmo tempo. Que água gelada! Está passando da hora de inventarem o chuveiro elétrico por aqui! Antigamente, os banheiros em Carimea eram públicos e espaçosos. Entretanto, com o avanço da civilização, aquela tradição se tornou cada vez mais incomum nos meios aristocráticos.

Por outro lado, o banheiro individual apenas cresceu em popularidade. Eles eram menores, mas a privacidade era incomparável. A manutenção também era simples e barata. Algumas pedras encantadas filtravam a água da banheira, o que significava que ela poderia passar semanas sem ser trocada e, ainda assim, ser considerada limpa.

Mas elas não possuíam sistema de aquecimento embutido, problema que era contornado com um feitiço de esquentar metal. A questão era que Henry era um inapto... E se meu... congelar? Não quero me tornar um eunuco antes de pegar pelo menos uma gatinha. Enquanto ria de sua própria idiotice, Henry afundou a cabeça na água.

Sua experiência com relacionamentos amorosos era zero. Em outras palavras, ele nunca beijou ou namorou uma menina. Dito isso, Henry não era bom em lidar com o sexo oposto. Sua mentalidade prática, seu pensamento lógico e sua introversão criavam um repelente natural para as garotas da sua idade. E, como se não bastasse, ainda era lerdo para reconhecer emoções. 

De repente, a face entristecida de Ágnes surgiu em sua mente. Ele emergiu, com a água escorrendo pelos seus longos cabelos ondulados. Espero que ela não fique de mal por muito tempo... Não posso culpá-la se ela decidir se afastar de mim, mas espero que isso não aconteça. Pelo bem da missão, claro. Henry suspirou e se encostou na beirada da banheira.

A porta entreaberta da Torre de Trebaruna batia sem parar com a ventania. Dentro da torre havia várias prateleiras, preenchidas com caixotes, ferramentas e quinquilharias. O cheiro de mofo impregnava o ar. As aranhas haviam tecido suas teias por todos os lugares e as baratas rastejavam pelo piso empoeirado.

— Que bagunça. Este lugar não deve ser limpo há pelo menos dois anos. Ugh!

Adélaide não era fã de artrópodes no geral, mas quando se tratava de aranhas, a aversão beirava o pavor. 

— Pelo bem da minha melhor ami... hiii! — Alguns fios de teia haviam se prendido ao seu rosto. E, no momento que ela tentou tirar, suas mãos encostaram em uma teia enorme e grudenta.

— Socorro...

As teias se estendiam por todos os lados, como um campo minado. Somente com muito sacrifício e resignação Adélaide conseguiu chegar à escadaria em espiral.

— Argh! Que podridão...!

Por alguma razão, o segundo piso fedia bastante. O odor dava embrulho em seu estômago. Havia muitos ratos se esgueirando pelas paredes.

— Que mal fiz eu para merecer este castigo...?

Vendo o estado deplorável do lugar, Adélaide deduziu que a amiga não estaria ali e seguiu para o terceiro piso. Assim que ela pisou em seu interior, Ágnes disparou do seu esconderijo e saltou em seus braços. No entanto, ao sentir suas roupas encharcadas e cobertas de teias, afastou-se por instinto.

— O que aconteceu?!

— O que aconteceu...? Como assim "o que aconteceu"?! Você saiu correndo da enfermaria e sumiu! Eu fiquei preocupada!

— Desculpa... Prometo não lhe dar mais trabalho.

— O quê? Ágnes, é você...?

Ágnes bufou e inflou suas bochechas como um balão.

— Não precisa desconfiar de mim só por que não estou sendo irritante. Agora, conte-me, como você me encontrou? 

— Para ser sincera, nem eu sei. Aconteceu por acaso enquanto eu procurava por você. 

— Heein? Por puro acaso? E eu achava que este lugar era um bom esconderijo...

— Você não faz ideia do quão complicado foi encontrar esta torre. E essa nem foi a pior parte...

Adélaide fez uma careta semelhante a ">̼<". Ao ver aquilo, Ágnes arqueou a sobrancelha.

— Deixe-me adivinhar. Aranhas?

— Tch...

— Sua aracnofobia não havia sido curada?

— Bem... até que estou mais resistente.

Ágnes levou o dedo indicador aos lábios e sorriu.

— Eu também... estava com medo.

— Da tempestade?

— Aham.

— Essas coisas nunca mudam.

As duas garotas gargalharam. Em seguida, Adélaide se sentou sobre uma caixa e perguntou:

— Diga-me, o que aconteceu na enfermaria?   

— A-ah, hum... como eu posso dizer? É constrangedor...

— Como assim?

— Eu bebi uma quantidade perigosa de vinho no almoço. Como você pode imaginar, eu perdi o controle sobre mim mesma e causei alguns problemas. Também irritei Henry e, quando fui repreendida, reagi de forma exagerada.  

Só então Adélaide percebeu que os olhos de Ágnes estavam inchados e vermelhos. Seja lá o que Atwater lhe disse, afetou-a bastante. Emocionada, ela pulou sobre Ágnes e abraçou seu pescoço delicado.   

— E-ei, Adélaide! Ar... Sem ar...!

Adélaide afrouxou o aperto e sorriu. Acariciou os cabelos de Ágnes e sussurrou:

— Entendi. A partir de hoje, pode contar com minha ajuda para conquistar Atwater. Talvez eu não seja boa com isso, mas posso tentar.

O coração de Ágnes quase parou e ela adquiriu a cor de uma maçã.

— C-conquistá-lo? Não seja idiota!

— Não adianta esconder, Ágnes. Seu olhar me diz tudo.

— Ah...!

— Não se preocupe; seu segredo está em boas mãos. Um conselho: antes de voltar a falar com ele, acho melhor organizar seus pensamentos. Que tal esperar até o fim da suspensão?

Ágnes apenas concordou com a cabeça, nervosa demais para falar. Adélaide pegou sua mão e a levou para o Dormitório Nêmesis. A tempestade violenta finalmente se dissipou. Em seu lugar, surgiu um arco-íris duplo, que enfeitava o céu nublado sobre a Academia Mágica.



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