Volume 1

Capítulo 6: A Tempestade de Emoções

Pois não é que em Sainte-Hélène, o país dos paladinos, onde as tradições cavalheirescas vigoram até hoje, é permitida a ingestão de álcool a partir dos quinze anos? Muito me surpreendeu tamanha leniência nos meus primeiros meses no reino. Entretanto, parece-me que os jovens são educados em favor da moderação e, portanto, não se constitui um problema que bebam em tão tenra idade.

Uma Viagem pelo País dos Paladinos, Stefan Weber.


Ei, ela não acabou de beber o restante do vinho da garrafa? Henry semicerrou os olhos e franziu o cenho. Maldita beberrona! Quem sabe quando eu poderei beber algo assim novamente? Argh!

— H-Henry...

Henry teve um mau pressentimento. Ela ainda está sóbria? Não, definitivamente não está sóbria... A face de Ágnes estava vermelha e seus olhos não pareciam ter foco. Ela balançava de um lado para o outro, como se estivesse prestes a cair da cadeira.

— Ah, Henry, como você é belo... Eu nunca sonhei que, um dia, um lindo cavaleiro viria para me proteger. Mesmo sendo uma criatura tão vulgar, um servo da ralé das ralés, eu não me importo! Não me importo... Case-se comigo!

O vinho, que já havia começado a fazer efeito nela um tempo atrás, atingiu um estado irremediável. Ágnes adorava o gosto de vinho, mas sabia se controlar. Entretanto, aquela era uma ocasião especial...

Henry ficou boquiaberto. Uma nobre acabou de se declarar para mim? Não, ela está bêbada. Maldita! Não bastou ter roubado meu vinho, roubou até o título de primeira a se declarar para mim!

Ele também havia bebido demais e, apesar de não estar nem perto do estágio de Ágnes, estava aborrecido. O vinho era muito gostoso, e ele queria ter saboreado mais uma vez antes de esvaziarem a garrafa... Por algum motivo idiota, possivelmente influenciado pelo teor alcóolico da bebida, Henry também estava incomodado com uma bêbada ter sido a primeira garota a se declarar para ele.  

A bêbada o encarava com seus olhos esmeraldinos, agora mais sedutores do que nunca. Respirando fundo, Henry se acalmou e respondeu, com sua clássica poker face:

— Suas palavras me deixam lisonjeado, Ágnes. Mas, sinto muito informar que você está bêbada.

— Eu não estou bêbada — Ágnes protestou e fez biquinho. — Estes são meus sentimentos sinceros...

Ela se inclinou para perto de Henry e agarrou sua mão. Ele teve um sobressalto e tentou se livrar, mas a garota segurava seu pulso com firmeza. O quê...? A personalidade dela não mudou completamente. Como isto é possível? Então, com um sorriso tímido, ela puxou sua mão e a colocou sobre seu peito.

— Está sentindo? Esta é a verdade. Meu coração só bate por você, Henry Atwater...

— Ngh?!

Tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum.

Suas artérias bombeavam seu sangue como uma metralhadora e sua face empalideceu. Ele nem conseguia raciocinar direito. Ninguém em sã consciência diria que Ágnes tinha um busto chamativo. Para ser honesto, as pessoas sequer sabiam se ela tinha algo para chamar de busto.

Na sua sala, os garotos tinham um sistema para classificar os peitos das garotas. Havia, originalmente, as classes A, B, C e D. Porém, graças a Ágnes, eles se viram obrigados a atualizarem seus parâmetros. Foi assim que surgiu a classe Ágnes.

Henry estaria grato se aquilo fosse verdade. Mas não era o que parecia. Sob a palma da sua mão, através do vestido delicado de Ágnes, sentia algo que, apesar de pequeno, era macio e maleável. E também era capaz de sentir a feroz pulsação em seu peito.   

Tum-tum-tum-tum-tum-tum.

Ofegando, Henry retirou sua mão dali e se afastou de Ágnes. Seu rosto estava tão vermelho que parecia brilhar. Ágnes o encarava com os olhos umedecidos e parecia surpresa com aquela reação.

— Você não gosta de mim...?

— Eu já disse que você está bêbada! Acalme-se e descanse um pouco!

— Oh, Henry! Acredite em mim... Eu não acabei de lhe provar meu amor por você? E você ainda não me ama?

— Tch...

Com o rosto se contorcendo de maneira involuntária, Henry se levantou da cama e pôs suas mãos sobre os ombros de Ágnes.

— Só por que você é bonita, não significa que pode fazer o que quiser quando está bêbada! Além do mais, eu... eu nunca amaria uma tábua baixinha e irritante como você!

— U-uaaah... 

As pupilas de Ágnes se dilataram e seus olhos se encheram de lágrimas. De súbito, ela empurrou Henry de volta para a cama e ficou de pé. Sem olhar para trás, correu cambaleando na direção da porta.

Bam!

Embora ela tivesse escondido os olhos com os braços, Henry ainda conseguiu ver seu semblante choroso. Sentiu uma pontada no coração. Acho que exagerei. Ela só estava bêbada... Suspirou.

Ele se jogou de bruços no colchão e abriu os braços. É mesmo, ela só estava bêbada. Sem chances de uma nobre como ela gostar de mim. Além disso, preciso manter uma distância segura. Caso contrário, a missão estaria em risco. Assim deve ter sido melhor. Concordou com a cabeça e se enrolou, sua visão rodopiando...

A pancada da porta repercutiu por todo o andar. Durante o almoço, Adélaide recebeu a notícia de que Henry havia acordado e decidiu lhe fazer uma visita. Entretanto, quando ela chegou ao corredor da enfermaria...

— Ágnes?

...Ágnes passou correndo ao seu lado. Antes que pudesse dizer algo, a garota já havia descido os degraus e desaparecido. Foi um milagre ela não ter tropeçado nas próprias pernas e rolado escada abaixo.

Naquelas horas, Adélaide sabia que não adiantava tentar ajudar. Os meses de convivência com Ágnes lhe ensinaram a dar um tempo para a amiga organizar os pensamentos e depois oferecer conforto. Não raro, tentava ser gentil naquelas situações e acabava a irritando, tornando as coisas ainda piores.

Ao abrir a porta da enfermaria, ela viu que Henry estava deitado e coberto por sua manta.

— Boa tarde, senhor Atwater.

— Senhorita Beaufort...? Boa tarde.

Henry estava desorientado. Não esperava nenhuma visita além da de Ágnes.

— Como você está?

— Estou bem, obrigado. Sinto apenas um pouco de cansaço. 

— Que ótimo. Perdoe-me, mas o que acabou de acontecer?

— Ah, nada de mais. Só algo que saiu do controle.  

— Hum? Como assim?

Na janela, Adélaide observava as gotas de chuva que começavam a cair do céu cinzento, brilhando com os relâmpagos no horizonte. Então, percebeu a garrafa de vinho sobre a mesa.

— Ainda não entendi direito o que aconteceu, mas posso imaginar...

— Ela deve estar lhe esperando. Melhor se apressar.  

— Ela ficará bem sozinha.

— Faça como desejar. Só não a mime demais quando a encontrar.

Adélaide sorriu. Em seguida, deu meia volta e saiu da enfermaria.

No último piso da Torre de Trebaruna, Ágnes, ainda sob o efeito do álcool, descontava sua frustração em tudo que encontrava pela frente.

Bam! Crack!

Um caixote de madeira se espatifou em uma pilha de caixas. Os itens armazenados nas caixas se espalharam pelo chão da torre.

— Sniff...

A vontade abandonou as pernas de Ágnes e seus joelhos beijaram o piso áspero da torre. Havia uma pontada que rasgava seu peito. Agarrou seus cabelos com brutalidade e descontou neles a sua angústia. A imagem de Henry fragmentava-se pouco a pouco em sua mente. Tentando se livrar daquela sensação, fechou o punho e socou o chão.

— Ai!

Um filete de sangue escorreu por entre os dedos da sua frágil mão. Eu não estou bêbada... Quando Henry foi encaminhado para a enfermaria, Ágnes estava bastante preocupada. Porém, os enfermeiros haviam proibido visitas até que os dois pacientes estivessem estáveis.

Durante horas, Ágnes resistiu ao sono, até que, por voltar das onze e meia da noite, uma enfermeira a convidou para entrar. Henry estava pálido, e seus lábios tinham uma coloração lilás. Ela se assustou ao ver seu estado. Os enfermeiros notificaram que ele não corria perigo e que ela poderia descansar com tranquilidade. No entanto, insistiu em dormir na enfermaria.

Cansados pelo trabalho, os curandeiros não resistiram. Foram embora tão logo concluíram seus deveres. Ágnes havia tomado para si a culpa pela atual condição de Henry. Sentindo-se incomodada, ajustou seu cobertor e, movida pelo instinto, esgueirou-se em sua cama. Enquanto olhava para seu semblante adormecido, Ágnes corou. Nunca sentira nada parecido antes. E, sem que percebesse, caiu no sono utilizando o peito de Henry como travesseiro.

No dia seguinte, ao acordar, ela passou o dia inteiro envergonhada. Neste mesmo dia, o diretor a convocou para uma reunião. Estava nervosa. Durante o sermão, ela tentou assumir toda a culpa pela briga. Caso contrário, Henry provavelmente sofreria uma punição severa. Entretanto, o diretor já estava ciente dos fatos. No fim, o único castigo foi a suspensão de quatro dias. Ágnes levou uma advertência oral, mas isso não era tão relevante.

Ela aproveitou a folga para cuidar de Henry manhã, tarde e noite. Portanto, na sua cabeça, Henry não havia rejeitado somente seus sentimentos sinceros, como também sua gratidão e sua preocupação. Aquilo ferira seu coração.  Ainda mais devido a sua escolha de palavras.

Ágnes se deitou no piso empoeirado e se encolheu em posição fetal. Lágrimas transbordavam pelos seus olhos inchados. Seu nariz escorria e ela fungava a todo momento. Eu sou uma inútil. Por que tive que nascer tão pequena? Até meus seios são pequenos!

Normalmente, não pensava tanto na sua aparência. Mas agora, por alguma razão, aquilo havia se tornado motivo de preocupação. Apesar da sua inteligência genial, Ágnes não entendia bem seus sentimentos. Sempre que se sentia mal, reprimia-se ou descarregava em qualquer um que estivesse no caminho. Eu quero estar ao seu lado. Se você me acha irritante, eu posso mudar por você. Então, deixe-me estar ao seu lado! 

Kabruuuuuuuuuuuuum!

— Aaaaaaah!

O coração de Ágnes quase saltou pela a boca com aquele trovão estridente. O clarão do relâmpago iluminou todo o interior da torre. Ágnes limpou os olhos com as costas das mãos.

— Chuva...?

Devido a sua introspecção, não havia notado o temporal chegando. Ágnes tinha medo de trovões. Nas lendas hispanianas, eles eram os resultados das batalhas selvagens entre os espíritos da tempestade.

Kabruuuuum!

Engatinhou até um abrigo formado por caixas empilhadas e um pano mofado. Aparentemente, os dois sustos colaboraram para restaurar sua sobriedade. O que eu estou fazendo aqui...? Espera... não! Ágnes relembrou o que havia acontecido desde a hora do almoço. Estava perplexa. Justo quando estava para fazer outro escândalo...

Kabruuuuuuuuum!

— Hiii!

...Soou um estrondo tão alto que seus ouvidos apitaram. Porcaria. Por que isto está acontecendo?! Ela levou as mãos à cabeça e tampou as orelhas, tremendo-se sem parar.

Din-don! Bin-bon!

Era o toque para começar o turno vespertino. A primeira aula era de Nathalie Le Rogue, de ética mágica. Nathalie era uma professora rigorosa e detalhista. Ela exigia muito dos alunos. Mesmo assim, ela era bastante querida entre os garotos. A causa? Seus cabelos ruivos, sua pele alva e sua beleza madura, na casa dos vinte e cinco anos.

Sentada em seu assento, Adélaide observava a tempestade pela janela. Ela parece inabalável, mas, no fundo, é bem sensível. Enquanto pensava, Adélaide se lembrou do que Henry havia lhe dito. Não posso abandoná-la em uma situação dessas...

Nathalie era uma defensora ferrenha da ordem. Seu lema era «regras devem ser seguidas, não importa o quão idiota pareçam». Ainda assim, Adélaide não poderia se acovardar. Reunindo sua coragem, ela se levantou e subiu a escadaria até a porta de cima.

— Ei, você! Qual é o seu nome?

Uma voz implacável perguntou. Era Nathalie, que encarava Adélaide com olhos indiferentes.

— Adélaide du Beaufort, senhorita Le Rogue!

— E aonde a senhorita pensa que vai?

Engolindo em seco, Adélaide se arrependeu por não ter planejado nenhuma desculpa.

— E-eu não estou muito bem... Problemas femininos, sabe?

Adélaide fingiu estar com dor. Se sua atuação falhasse, o plano «B» era fugir da sala e depois arcar com as consequências.

— Ah...! Perdoe-me a indiscrição, senhorita. Por favor, leve o seu tempo...  

— Muito obrigada, professora. Sinto muito por atrapalhar sua aula.

Com o desfecho inesperado, Adélaide suspirou aliviada e saiu da sala.

 

Agora, por onde devo começar? O campus era imenso e Adélaide não tinha sequer uma pista do paradeiro de Ágnes. Ela escolheu começar pelo Dormitório Nêmesis. Ao bater na porta do quarto de Ágnes, não houve resposta. Protegida pelo seu guarda-chuva, Adélaide procurou pela zona oeste da Academia, mas falhou em encontrá-la. Perambulava cabisbaixa, até que uma agressiva ventania arrancou o guarda-chuva de suas mãos. 

— Droga...! Hum? Este é o Jardim de Eratuna? Parece que caminhei muito...

Fuuuuuuuu.

O vento assobiava nas folhas das plantas. Parando diante de um canteiro de cravos, Adélaide se ajoelhou.

— Já faz um ano desde que a conheci. Mesmo com aquele semblante inabalável, havia uma melancolia sem fim em seus olhos...

Adélaide encostou a ponta do seu indicador na flor e sorriu. As memórias agridoces do ano passado ressurgiram em sua mente. 

— Atwater, eu o invejo. Em um ano de amizade, nunca tinha visto Ágnes tão feliz.

A chuva engrossou. A água acumulada no uniforme de Adélaide começava a pesar.

— Se eu tivesse pelo menos uma fração da sua coragem, não teria fracassado tantas vezes como amiga. Sou só uma covarde. Que vergonha.

Kabruuuuuuuuuuuuuum!

— Aah!

De repente, uma descarga elétrica rasgou os céus e estremeceu a terra. Adélaide caiu de bunda na lama. Quando ela ergueu a cabeça, porém, vislumbrou a silhueta de uma torre distante, tracejada pela luz do relâmpago. Foi então que a chama da esperança se reacendeu em seu peito. 

— É mesmo. Ela pode estar lá... Aguente firme, Ágnes !



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