Volume 1

Capítulo 5: A Recuperação na Enfermaria

Conhecem os senhores questão mais polêmica na atualidade do que «qual é o melhor vinho do mundo»? Duvido que sim. Façam um experimento e verão que não estou equivocado. 

Todavia, como sommelier e escritor que sou, reservo-me o direito da análise e coloco a cara a tapa para quem de mim discordar; os vinhos de Sarmizegetusa são ótimos, mas os de Marebriga são maravilhosos.

Tavernas e Vinhos: Um Guia Cosmopolita, volume II, Maxwell Delacroix.


— Nossa... quando será que ele acordará? — Ágnes cruzou os braços e inclinou a cabeça para baixo.

Em contraste com Adélaide, que estava em seu uniforme escolar, Ágnes usava um vestido verde-éden, de mangas longas e gola puritana. A saia, recheada de babados, descia até os joelhos e era complementada por meias-calças negras.

— Já faz quase um dia que ele está assim...

Elas estavam no segundo andar da enfermaria, na Ala Verde, onde Henry e Florentin estavam sendo tratados por curandeiros. A sala não era diferente de uma enfermaria tradicional, exceto pelo luxo da mobília.

— Por outro lado, ouvi dizer que Draculescu já está bem. Tch! Ele quem merecia estar assim, não o meu servo.

— Tenha mais respeito pelos outros, Ágnes. Embora Draculescu seja primitivo, ele ainda é nosso colega. «Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você».  

— Lá vem você com isso de novo. Eu não me importo com esses provérbios bobos. Ninguém se lembra deles quando me insulta. Humpf. Espero que ele tenha sofrido bastante na sua recuperação.

Sem argumentos e conhecendo a personalidade de sua amiga, Adélaide não insistiu. Em vez disso, preferiu mudar de assunto:

— A propósito, desde quando Atwater se tornou o seu «servo»?

Aquela pergunta vagava pelos pensamentos de Adélaide desde a tarde do dia anterior, quando Ágnes chegou na Ala Verde gritando «quero um curandeiro para o meu servo!» sem parar.

—  Ué, não é óbvio?

— Óbvio...? Não. Pelo menos, não para mim.

— Ele me protegeu, por isso é meu servo. Qual é a dificuldade em entender isso?

— Só a sua lógica, mesmo...

As bochechas de Ágnes se inflaram e ela bufou. Não gostava de ser criticada. Até porque nunca estava errada. De jeito nenhum. Ou, quem sabe, nunca se percebesse como errada... Em outras palavras, era uma tirana em potencial.

— Qual é o problema com a minha lógica?

— Ah, nenhum, sabe...

— Fale.

— Mas já disse que não tem.

— Oh? Será que está com inveja? — Ágnes sorriu e soltou uma risadinha maligna.

— Tsc. Inveja? Por que eu estaria com inveja? Talvez seja você que esteja com ciú...

— Cale-se! Eu nunca teria ciúme de um mero servo... Ops! — Percebendo seu descuido, Ágnes corou no mesmo instante.   

Adélaide deu uma risadinha e semicerrou os olhos. Acabou se beneficiando do ato falho de Ágnes. Matou dois coelhos — ou duas coelhas — em uma cajadada só; descobriu por que Henry virou seu «servo» e obteve uma pista do que ela sentia por ele.

Entretanto, decidiu não importunar mais a amiga. Não era da sua conta de quem ela gostava ou deixava de gostar, mesmo que aquilo a deixasse curiosa. Afinal, tratava-se de Ágnes de Los Rosales, famosa, dentre outros motivos, por sua frieza para com o sexo oposto.  

 

Na cama próxima à janela, Henry dormia desde Dies Ruber. Do lado oposto, Florentin estava na mesma situação. Porém, o comparsa de Leonard fazia caretas constantemente. Já Henry estava inexpressivo como uma estátua de pedra.

— Por hoje está bom. Vamos embora, Ágnes.  

— Hum...

Não quero sair agora. Quero ficar perto dele. Ágnes pensou, enrolando as pontas do cabelo nos dedos. Não conseguia nem ouvir os chamados de Adélaide. Ele está assim por minha causa. O mínimo que eu deveria fazer seria ficar ao seu lado até se recuperar. Mas por que tenho pensado tanto nele...? Ele nem é um servo de verdade.

— Ágnes...? — Cansada de ser ignorada, Adélaide se abaixou até a altura de Ágnes, encarando seus olhos de frente.  

— A-ah! Oi?

— Você não vem...?

— Não... Boa noite, Adél — Ágnes disse e desviou o olhar.

— Hã? Como assim?

— M-mais tarde eu irei. Pode ir na frente.

O rosto de Ágnes estava avermelhado. Ela continuava a enrolar as pontas do seu cabelo negro, olhando de um lado para o outro.  

— Estou com saudade de você, Ágnes — Adélaide declarou e a envolveu em um abraço.

— Pare com isso... Foi só o primeiro dia de suspensão.

— Eu sei, mas é que...

Retribuindo o abraço, Ágnes fechou os olhos e encostou a bochecha nos cabelos sedosos da amiga.

— Sniff... Sniff...

— Você está... chorando? Que idiota! — Ágnes disse e arregalou os olhos, livrando-se dos braços de Adélaide.

— Não seja tão cruel! Sniff.

— Pelos espíritos... Às vezes, você parece uma criança.

— Olha quem fala.

— Ah, Adél, vá logo dormir!

Adélaide pensou em protestar, mas suspirou e desistiu. Despediu-se de Ágnes com mais um abraço e foi-se embora. Certo. Como os funcionários têm chaves, não vai dar problema... Sozinha na enfermaria, Ágnes trancou a porta e pegou uma pequena mala de baixo da cama de Henry, da qual retirou uma camisola azul-celeste.

Era quase um vestido, embora o tecido fosse mais leve. As mangas eram curtas e o corpo cheio de babados. Apesar do conflito interno, Ágnes tinha preparado tudo para passar a noite ali. Em seguida, trocou de roupa e se deitou no sofá.

Colocou a mão dentro da mala e pegou um pequeno livro, «A Torre da Melancolia Solitária — 2». Relembrando alguns acontecimentos do livro anterior, Ágnes sorriu. Abriu o volume um pouco depois da metade e começou a sua leitura. Mas... faltava alguma coisa. E ela logo se deu conta do que era. Esquecera-se de trazer seu lençol.

Vestida em sua camisola fina em pleno verão, estava congelando. No entanto, seus olhos brilharam quando, olhando para o lado, percebeu que Henry estava coberto por uma manta azul. Deixou o livro de lado e se levantou, pronta para o ataque.

— Tch.

Todavia, ao ver a face adormecida de Henry, desistiu. Sua expressão, indiferente por padrão, agora estava alterada. Suor frio descia por sua testa enquanto contraía suas pálpebras como que para expulsar alguma visão. Um pesadelo, talvez? De repente, uma ideia surgiu na cabeça de Ágnes. Não posso fazer nada...

— Fuuuu.

O candeeiro se apagou com um sopro.

Após guardar seu livro, a pequena Ágnes se infiltrou sob a manta de Henry. Nervosa e encabulada, encolheu-se como um gatinho filhote. Guh! Este cheiro azedo... Bem, visto que Henry não tomava banho desde o dia anterior, não era surpresa que estivesse fedendo. Somado a isso, o suor acumulado durante a intensa atividade física da luta e o calor do lençol só contribuíam para fortalecer o odor desagradável.

Pelo menos não está tão ruim como ontem. Ou talvez meu olfato tenha se acostumado. Diria que é até um pouco agradável... Não, que nojo! Com uma careta engraçada, Ágnes se alojou entre o peito e o braço de Henry. Mas, sério, que tipo de magia ele usou naquela luta? Ou melhor, aquilo era mesmo uma magia? Ele não utilizou um canalizador e também não recitou nenhuma oração...

Bem, tanto faz. O importante é que ele venceu e vai ficar bem. Fechando os olhos, Ágnes orou para seus espíritos guardiões e adormeceu.

Henry havia acordado no Dies Viridis, por volta do meio dia, durante o horário do almoço, e estava sentado na cama da enfermaria, enrolado das pernas para baixo com sua manta. No sofá, com um vestido bege sem mangas, Ágnes segurava uma xícara de chá em uma mão e um pires em outra. 

— Quatro dias de suspensão e uma advertência? Isso não é exagero?

— Considerando os resultados da luta, deveríamos agradecer por não termos sido expulsos da Academia. — Ágnes tomou um gole do seu chá e retornou o conjunto de porcelana para a bandeja de bronze.

— Mas eu não entendo... Por que até você foi envolvida?

— Se esqueceu de que aquela batalha aconteceu em meu nome?

Com um sorriso sem graça, Henry balançou a cabeça em discordância. 

— Deixando isso de lado, os curandeiros daqui são bem cuidadosos, não é?

— Algo aconteceu?

— Enquanto eu dormia, um deles me deu um excelente travesseiro. Era bem macio e tinha um aroma agradável. Infelizmente, quando despertei, não estava mais comigo.   

— Cof-cof!

Ágnes se engasgou com o gole de chá que tomou para disfarçar a vergonha. Com as bochechas coradas, desviou o olhar para a janela. O travesseiro era eu, seu imbecil! Ai, não quero nem pensar no que teria acontecido se ele tivesse acordado primeiro...

Naquela manhã, Ágnes acordou antes dos galos cantarem. Isso fazia parte do seu plano para enganar Henry e Adélaide. Por isso, teve tempo de sobra para ir ao seu quarto, tomar banho, trocar de roupa e retornar para a enfermaria.

— Cof, você não está se esquecendo de nada?

— Hum?

— Quando foi a última vez que tomou um banho?

— Dies Ruber... Por quê?

Adivinhe... Ágnes parecia ter esta palavra estampada em seu semblante emburrado. Com um estalo, a mente de Henry entendeu o significado daquela pergunta. Aproveitou a desatenção de Ágnes, que olhava para a janela, e ergueu discretamente o braço para cheirar sua axila.

— Eca! Pare já com isso!  

Sua ação fora notada pela visão periférica de Ágnes. Apertando o nariz com os dedos, ela fechou os olhos em um formato de «><» e mostrou a língua. Acho que preciso mesmo de um banho... Ficou cabisbaixo. Para alguém como ele, demonstrar qualquer defeito era motivo de constrangimento. Em outras palavras, embora não fosse arrogante como os demais nobres, ele ainda possuía o mesmo orgulho de um.

 

Os almoços do paciente e da acompanhante foram entregues por uma estudante terceiranista da Restauração. Contradizendo o estereótipo, a comida da enfermaria parecia para lá de apetitosa.

Coxa de cocatriz-alpina, cogumelos-chapéu-de-bruxo, arroz branco, ovos de serpe-anã, rodelas de batata-vermelho, feijão-noturno e salada de folhas compunham ambos os pratos, tudo no ponto. Havia boatos sobre a gula de Ágnes, então os responsáveis pela comida da enfermaria fizeram pratos idênticos para ela e Henry.

Para acompanhar a refeição, havia um par de taças de esmeralda e uma garrafa de vinho tinto marebriguense. O vinho de Marebriga era conhecido em toda Carimea por seu sabor forte e revigorante. Afinal, Marebriga, além da capital da Hispania, também era considerada a capital do vinho.

Acostumada ao sabor desde seus treze anos, Ágnes exibiu, como uma marebriguense nata, um sorriso orgulhoso vendo expressão de Henry ao beber um gole do vinho carmesim.

A sobremesa consistia de mousse de morango, petit gâteau, brigadeiros e beijinhos. Eles aproveitaram os doces para aliviar a dormência causada pelo álcool. Após limpar a boca com um lenço, Ágnes tentou puxar conversa com Henry:

— Ei.

— O quê?

— Onde você aprendeu a lutar?

— Na minha terra natal. Eu era bem desocupado e não gostava disso. Por isso, comecei a praticar capoeira e a fortalecer meus músculos.

Ágnes inclinou a cabeça. Seu semblante estava um pouco corado, o que sugeria que ela havia passado do ponto com a bebida...

— Capoeira? É o nome da arte marcial?

— Oh, sua pronúncia é ótima. Uhum.

Ao falar de seu passado, Henry ficou com um olhar distante. Contudo, as perguntas de Ágnes atrapalhavam-no de aproveitar suas memórias.  

— Onde você nasceu? Digo, em Eastland.

— Por que estas perguntas? Na vila de Atwater, no condado de Faraway.

— Nunca ouvi falar.

— Tanto faz. Você não gostaria de lá.

Sentindo-se desafiada, Ágnes arqueou a sobrancelha e fez uma careta:

— Por quê?

— Com esses vestidos, você acabaria derretendo com o calor. Além do mais, o lugar é bem barulhento e movimentado.

— Derreter com o calor? Nunca fui a uma terra que fizesse tanto calor...

— Mudando de assunto, o que aconteceu com Florentin?

Apesar de bêbada, Ágnes lançou um olhar afiado na direção de Henry.  

— Como assim? Você não sabe?

Henry colocou a mão no queixo e ponderou. Tinha perguntado algo idiota? Uma «?» pairava sobre sua cabeça.

— Como conseguiu passar no exame de admissão da Academia, burro?

— Que coisa mais terrível de se dizer a um colega.

Ágnes revirou os olhos e cruzou os braços.

— Guarde minhas palavras, criatura estúpida, pois não as repetirei. Hu-hu-hu! 

Ela revelou um sorriso arrogante e fechou os olhos. Aparentemente, quando estava fora de si, Ágnes se transformava em uma verdadeira narcisista... Que porra é essa? Henry estava pasmo.

— Então, o que houve com ele...?

— Ora! A criatura não reconhece uma «Sobrecarga Mágica»! Ha-ha-ha! 

Henry vasculhou sua memória e compreendeu, de forma vaga, o que havia acontecido. Não era ignorante a ponto de não reconhecer uma condição mágica. Mesmo assim, Ágnes não perdeu a oportunidade de expor sua inteligência e lhe passou uma lição.

A diferença de um mago para um humano comum era a presença ou não de circuitos mágicos ativos. Estes circuitos eram os responsáveis por canalizarem o Numen e convertê-lo em um feitiço. Porém, havia um limite para a quantidade que os circuitos conseguiam suportar de uma vez. Se o mago conjurasse uma magia poderosa demais para o seu nível, certamente sofreria com uma sobrecarga e desmaiaria. Essa era a «Sobrecarga Mágica».

Uma condição parecida era a «Exaustão Mágica», que ocorria quando um mago esgotava sua energia. Isto poderia ser causado ou pelo uso descuidado de feitiços, ou pela quantidade de feitiços utilizados. Para se conjurar feitiços propriamente exigia-se concentração e autocontrole, e nesse processo se gastava a energia do mago. Portanto, como os magos ainda eram humanos, o resultado não poderia ser outro. Este havia sido o caso de Henry.

 Em ambas as situações, os indivíduos sofriam com fortes dores e sintomas de exaustão física e mental. Ainda havia o risco de ativar um «Castigo Astral».

— Castigo Astral?

— Você não vai querer saber... — Ágnes bateu na mesa de madeira ao seu lado e bebeu, em uma golada só, o vinho que havia acabado de colocar em sua taça. — A menos que não se importe de sofrer uma combustão espontânea ou perder os cinco sentidos...

Os pelos de Henry se eriçaram com as palavras macabras de Ágnes. Preferiu não continuar no assunto. Apesar de não conhecer o nome científico da condição, testemunhara-a muitas vezes no serviço.



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