Volume 1

Capítulo 3: O Tour pela Academia Mágica

«O sacrifício da nossa amável mãe, a natureza,
fez, com a angústia liberta do seu coração,
nascer Nêmesis, sanguínea chama da pureza.
Suas lágrimas, pesarosas, continuaram a criação;
Salacia, rainha dos mares e Atlas, o rei da terra,
imersos no sombrio mundo de Abyssos, a primordial,
receberam Hipérion de presente, uma luz na guerra
entre o bem e o mal, uma eterna rixa celestial,
pela qual Runesocesius, feroz e violento como suas tempestades
deixou Carmenta, dos ares, sozinha a morrer de saudades.
Assim se deu o surgimento daqueles que seriam o cimento
e o fermento de toda a vida existente sob o firmamento.»

Oráculo Sagrado, vários autores.

De acordo com a acadêmica Ágnes del Rubio, em seu «Dicionário Onomástico-Etimológico das Línguas Zinnegameanas», zenxu significa flor brilhosa; dos vocábulos euleberli «zeun», «brilhoso», e «xu», «flor».

Trata-se de uma bela flor, cujas propriedades mágicas não são menos atraentes. Sua fosforescência violeta é muito chamativa; no entanto, a razão da sua cobiça é seu excelente desempenho como estabilizador de poções e de elixires.

Catálogo da Flora Helenesa, volume III, Adélaide du Beaufort.


Vinte e cinco minutos... Quem demora isso tudo para tomar um banho? Suspirou. Estava sentado, de pernas cruzadas, diante da porta do quarto de Ágnes. A demora estava lhe dando nos nervos. Batendo a poeira da calça, ele se levantou e encarou a fechadura. Será que ela está bem? Girou a maçaneta de bronze e, quando deu o primeiro passo no interior...

— Hiaaaaa!

...Um grito estridente reverberou pelo cômodo. Em frente à cama, seminua, Ágnes estava vermelha como uma acerola. Ela vestia somente suas roupas de baixo, que eram escarlates e enfeitadas com babados.

— Huh?!

Henry caiu de bunda no chão e olhou para Ágnes dos pés à cabeça. Inúmeras cenas similares àquela, as quais ele havia visto antes na ficção, passaram pela sua memória. O que é isto, uma comédia-romântica?

— Não olhe!

— Não tem nada para ver.

Bam!

O que aconteceu...? Com alguma dificuldade, Henry ergueu a metade superior do seu corpo. Sua cabeça latejava. Parecia que um objeto pesado a havia atingido.

Sentado sobre uma tapeçaria felpuda, ele moveu seus olhos, investigando o local. Era um quarto pequeno, com dezesseis metros quadrados. Ele viu uma mesa de estudo, encimada por uma grande janela, cercada por cortinas marrons. Em um canto do quarto estava um guarda-roupa, e no outro, uma porta.

Ágnes, agora vestida, encarava-o com um biquinho nos lábios, deitada de bruços na cama ornada por dosséis escarlates.  

— Até que enfim acordou, Henry Pervertido Atwater.

— Aquilo foi um mal-entendido. Posso explicar, se quiser.

— Não importa! Assuma a responsabilidade por suas ações.

— Responsabilidade?

Franzindo o cenho, Henry estreitou o olhar. Dada sua experiência prévia com situações semelhantes, podia imaginar que rumo a conversa tomaria.

— V-vo-vo... m-me viu... viu... 

— Do que você está falando?

— Você me viu nua. Assuma a responsabilidade.

— Eu não vi nada disso. E que responsabilidade eu teria que assumir por lhe ver pelada? Quer que eu me case com você?

Miau?!

A face de Ágnes enrubesceu. Ela desviou o olhar e cruzou os braços. Miau...? Sério? Henry revirou os olhos.

— Seu estúpido.

— Você quem não está fazendo sentido.  

— Nossa, como você é insistente! Chega desse assunto!

Que garota irritante. Estou começando a me arrepender de ter aceitado esta missão. Henry deu um suspirou desanimado.

Seguiu-se um silêncio desconfortável. Cansado de aguardar, Henry ficou de pé e colocou as mãos nos bolsos do sobretudo. Dirigiu uma olhadela para Ágnes e se virou de costas. 

— Cof-cof... — Ágnes pigarreou ao perceber sua intenção. — Hum, por que foi tão longe para me ajudar?

— Precisa de motivo para ajudar uma colega?

— Só me ajudou por que sou sua colega?

— E por que mais seria? — Henry girou, mais uma vez, sobre seu próprio eixo.  

Ágnes inclinou a cabeça para baixo e levou a mão ao queixo, mas logo deu de ombros e respondeu:

— Não sei. De qualquer forma, muito obrigada por ter me salvado, Henry Atwater.

— Não há de quê, Los Rosales.

— Pode me chamar de Ágnes. Já o considero um amigo.

— Então você também pode me chamar de Henry.

Naquele momento, os olhares de Henry e Ágnes se encontraram. Ágnes sorriu e bateu duas vezes no lugar ao seu lado. Ah, então ela consegue ser legal? Acho que aproveitarei a oportunidade para conseguir informações. Ele se sentou e se virou para cima, ficando esparramada na cama como uma gatinha manhosa.

— Ei. Diga-me, Ágnes, por que aceita aquele tipo de situação?

— Do que está falando?

—  Não se faça de boba. Eu ouvi as ofensas que lhe dirigiram durante sua apresentação.

— Ah, isso...? Não adianta reagir. Tudo o que me resta fazer é tentar evitar que piore. Mas, às vezes, as coisas não saem como o planejado, como você pôde ver...

Ágnes virou a cabeça para o outro lado e fungou algumas vezes. Observando-a com atenção, Henry vislumbrou uma lágrima descendo pela sua bochecha.

— Por que não adianta reagir?

— Porque eles nunca param. Quando eu revido, a situação acaba saindo de controle e eu fico como culpada. Uma vez, quase fui até expulsa...

Henry franziu o cenho. Para Ágnes ter sido quase expulsa, deveria ter infringido uma regra escolar muito importante. Ele cogitou investigar mais a fundo, mas preferiu, por ora, não envolver o poderia ser um tópico sensível. 

— Sinto muito. Se precisar, não hesite em pedir minha ajuda para lidar com esses idiotas.

— Muito obrigada, Henry. — Com um sorriso inocente, Ágnes olhou para ele e piscou o olho. — Você é uma boa pessoa. 

How cute... Deixou escapar uma interjeição em eastlandês. Nada incomum, tendo em vista que vivera por muitos anos naquele país e assimilara sua língua. Mesmo com seu estudo de helenês, não era fácil de se livrar daquele hábito. Ela pode ser uma pirralha chata, mas é muito fofa. Henry se forçou para conter um sorriso. Ágnes se ergueu com um impulso e se sentou de pernas cruzadas. Conferiu seu relógio de bolso.

— Duas e quarenta. Ainda disposto a conhecer a Academia, Henry?

— Acho que sim. — Henry deu de ombros.  

— Humpf. Pois sinta-se honrado por ter a oportunidade de passear com uma princesa, meu servo.

— Oi? Servo...?

— Nunca leu «A Torre da Melancolia Solitária»? É assim que a Eleonora chama o Lorenzo, seu néscio.  

«A Torre da Melancolia Solitária»? Isso é um livro popular? E o que porra é «néscio»? Ágnes, sem se importar com a aparente confusão de Henry, levantou-se e caminhou na direção da porta. Henry balançou a cabeça e a seguiu. Assim começou o tour pela Real Academia Mágica de Sainte-Hélène.

Conforme caminhavam pela Academia, Ágnes explicava para Henry o que eram as estruturas que encontravam. Atrás dos dormitórios masculinos, havia a casa recreativa Le Marigot, com seus sofás, mesas redondas, jogos de tabuleiro e cantina. Era ali onde os estudantes mais sociáveis gostavam de passar o tempo livre.

No Le Marigot, as partidas de jogos eram batalhas intelectuais, principalmente quando envolviam estudantes da Adivinhação ou da Ilusão. Porém, nenhum deles era páreo para a invicta Ágnes, cuja inteligência superava seus feitiços trapaceiros. Não era incomum algum perdedor guardar rancor por isso... Ora, para eles, que jogavam com auxílio de suas mágicas, era uma humilhação ser derrotado por uma inapta. Aquilo era como uma alfinetada no orgulho.

Mais na frente, passaram por um cruzamento, com um estábulo à esquerda e a Ala Laranja à direita. Depois, Ágnes apresentou o Dormitório Navia, dos funcionários. O Anfiteatro, Henry já conhecia. Ele também já tinha visto o caramanchão paralelo à Ala Amarela e supunha que deveria ter uma função parecida com o Le Marigot. Considerando que os estudantes viviam a maior parte do tempo em suas dependências, era atencioso da Academia ter espaços assim. 

Na metade do caminho para a Ala Verde estava o Salão de Carmenta. Nele, aconteciam os bailes e os eventos típicos da nobreza, como o famigerado Baile dos Chicotes e a Dança das Ninfas. A bifurcação no norte da Academia levava, à direita, para a Ala Azul, e à esquerda, para a Torre de Trebaruna. Esta torre era um armazém abandonado, cuja última inspeção acadêmica havia acontecido décadas atrás. 

Finalmente, eles chegaram ao Jardim de Eratuna, que, mesmo a uma distância de centenas de metros, ficava paralelo ao portão de entrada. O Jardim era imenso e tinha uma enorme diversidade de plantas. Havia estátuas de espíritos e bancos de madeira espalhados nos arredores.

O que mais chamava atenção nele era a organização concêntrica das cores das plantas, arranjadas em um padrão de arco-íris, em que cada cor simbolizava um dos domínios divinos.

À medida que adentravam no Jardim, as cores das plantas mudavam, e variavam de plantas comuns a espécies místicas ou magicamente modificadas. Este lugar é fantástico. Henry pensou, boquiaberto. Como que lendo sua mente, Ágnes respondeu:

— Este Jardim é uma homenagem a Eratuna, a mãe dos deuses. O arco-íris simboliza a cor branca, a junção de todas as cores, e também o domínio da natureza. Segundo o Oráculo Arcano, ele deu origem aos sete que conhecemos hoje e se perdeu com o sacrifício da deusa. 

— Muito interessante. Nunca ouvi falar disto antes.

A voz de Henry transmitia seu entusiasmo. Naturalmente curioso, explorar novos horizontes era algo que ele amava fazer. Tinha começado a admirar Ágnes, que satisfazia sua sede por conhecimento.

— Não esperava mais. Istlândia é famosa pela sua negligência para com as tradições. Malditos reformadores...

— O que esses «reformadores» fizeram para ser tão queridos?

— Credo, você não sabe de nada? Vinte anos atrás, o teólogo alarmano Luther von Abendroth escreveu um livro herético contestando o Oráculo Arcano. Suas palavras blasfemas pregavam a existência de um deus único e todo poderoso, que não fazia distinção de raça, status ou nação... A crença se espalhou como fogo no palheiro e resultou no movimento chamado de Reforma. 

— Ah. Agora que você mencionou, esse não foi o estopim para a Guerra do Orgulho?

— Certamente. A declaração pública do rei William IV de conversão ao lutheranismo foi a gota d’água para o rei Timothée II e sua nobreza.

Henry concordou com a cabeça. Havia recebido um relatório geral sobre Ágnes antes de entrar na Academia. Embora o relatório fosse um tanto vago, ele era bastante assertivo sobre ela ser bastante inteligente. Ele não tinha mais dúvidas quanto a isso. Quem poderia estudar na melhor academia mágica de Sainte-Hélène sem conseguir usar magia, senão um gênio? Aparentemente, devido às suas notas extraordinárias, ela não precisava nem participar de uma Vertente.

Eles chegaram ao centro do Jardim, o menor dos sete círculos, constituído por ipês-roxos, jacarandás, zenxune e várias outras plantas da mesma tonalidade. Apontando para frente, Henry perguntou:

— O que é aquilo?

Adiante, havia uma construção heptagonal com o teto abobadado erguido por sete colunas. Na gravata das colunas, lia-se, no alfabeto antigo: «In principio erat Numen; et Numen erat apud Natura; et Natura erat Numen».

— É o Santuário da Mãe Natureza. Quer fazer uma visita?

Pegando seu relógio de bolso, Henry viu que eram três e meia. Ainda faltava uma hora e meia até o horário da batalha. Ele concordou. Ao entrarem no Santuário, depararam-se com uma grande escultura de mármore, que representava uma mulher madura, com um par de asas nas costas. Era Eratuna, de mãos unidas, vestindo uma estola.  

Ao seu redor, como se a louvassem, havia sete esculturas menores, cada uma em uma coluna. O interior da abóbada era repleto de afrescos, que narravam o nascimento dos Sete Reis Celestiais. Henry parecia uma criança vivenciando um sonho. Olhava, inquieto, de um lado para o outro, lembrando-se do Velho Mundo que sempre desejara conhecer.

Sempre caridosa com informações, Ágnes lhe explicou que o Santuário fora ornamentado por Giovanni Buonarroti, artista ravenno considerado o melhor de todos os tempos, e zombou de Henry por não saber quem era.

Após se ajoelhar diante de Eratuna, Ágnes fez um gesto convidando Henry para perto. Ele imitou sua posição e se ajoelhou. Pronunciando em uma língua que Henry não era capaz de entender, embora sentisse que fosse familiar, Ágnes orou:

Gloria Natura, et Filia, et Septem Regibus Caelesti. Sicut erat in principio, et nunc, et semper, et in saecula saeculorum. Amen.

Lamb of God, you take away the sin of the world, have mercy on us.

— Cordeiro de Deus...? Que oração é essa?

— Uh, você sabe eastlandês?

Ele olhou rapidamente para Ágnes. Não seria uma surpresa se ela soubesse, no entanto, tendo em vista seu histórico... 

— Quem você pensa que eu sou? Eu sei falar seis idiomas.

— É uma oração popular em Eastland — Henry bocejou como se não estivesse preocupado.

— E você ousa recitar uma linha blasfema diante de nossa mãe?!

Saltando sobre Henry, Ágnes o esganou. Fê-lo entender, por bem ou por mal, que se quisesse utilizar uma língua diferente, essa deveria ser a língua antiga.  E, com a reprimenda violenta, Henry voltou, em silêncio, à posição de oração.



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