Volume 1

Capítulo 2: A Espada do Bravo Cavaleiro

Muitos mistérios existem neste mundo; quanto a isso, não restam dúvidas. Contudo, aquele que intriga e deixa admirado o homem, desde o início dos tempos, é o zanaun do céu, como diriam nossos irmãos euleberne.

Mas por que o céu é dourado? Não há no mundo alguém que possa bater no peito e afirmar que conhece a verdade verdadeira. Ainda assim, eu, humilde feiticeira, acredito que semelhante cor seja gerada pela interação da luz solar com o Numen os gases atmosféricos.

Os Princípios da Magia, Santa Hélène de Draconville.


Na sala «D» do segundo ano, Ágnes estava sentada na terceira fileira do lado das janelas. Ela ocupava a quarta cadeira da fileira, e seus vizinhos eram Adélaide à direita e ninguém à esquerda.  

A sala respeitava o padrão universitário de arquibancada, de forma que a altura das fileiras aumentava conforme se distanciavam das primeiras. Ela tinha quatro fileiras, separadas ao meio por uma escadaria. As bancadas eram coletivas e acomodavam até cinco estudantes.

Às oito e dez, um homem jovem e magro entrou pela porta corrediça na parte inferior da sala. Amarrada em seu braço direito estava uma braçadeira violeta. Apresentou-se como Gaspard de Renard, o professor de língua helenesa, e cumprimentou a classe. Os estudantes o saudaram, ao que ele respondeu com uma breve reverência.

Em seguida, pediu que todos se apresentassem, pois «os nomes são os sons mais doces e mais importantes quem uma língua possui». Desejava proporcioná-los seu primeiro contato com seus colegas de sala. Aquele era um momento de tensão. Afinal, todos sabiam que a primeira impressão era a que ficava...

A sala «D» possuía vinte e cinco alunos, embora um tivesse faltado. Um por um, eles foram se apresentando, alguns com naturalidade, outros tremendo ou gaguejando. Nobres de diferentes status, alguns considerados subalternos, anunciaram seus nomes e sobrenomes

A presença de membros da baixa nobreza na Real Academia não despertava estranheza, já que a instituição não selecionava seus estudantes pela influência política, e sim pela capacidade intelectual demonstrada no exame de admissão.

Sobrava apenas quatro pessoas. Dentre eles, uma jovem se levantou, jogando para trás seus cabelos dourados com o antebraço, em um gesto espalhafatoso. Não era alta, mas também não era baixa. Chamavam atenção seus incomuns olhos carmesins, sedutores como os de uma elfa.

Sua aparência era a própria definição de beleza extraída de um dicionário e pintada pelas mãos de um renomado artista. As curvas do seu corpo pareciam ter sido esculpidas com esmero. Em outras palavras, seus dotes físicos eram espetaculares. 

Olhares invejosos a atingiam de todos os lados. E qual era o problema? Tinha noção do próprio charme e não ligava para as recalcadas. Na verdade, divertia-se com aquela “rivalidade”. Sabia que os corações dos rapazes pertenciam a ela, a daciana dos cabelos parafusados. Exibiu um sorriso presunçoso e colocou, de uma forma um tanto lasciva, o dedo indicador sobre os lábios.

— Huhuhu. Como já devem saber, meu nome é Rozalia Draculescu din Ardelean. Ain, o que foi? Por que estão me olhando assim, meninas? Fiquem tranquilas; não competirei com vocês. Afinal, nunca teriam chances...

A atmosfera da sala pesou. Algumas garotas tentaram se levantar, mas foram contidas pelos colegas. Rozalia, rindo baixinho, deu de ombros e se sentou. Ao seu lado, um estudante fez exatamente o contrário. Tal como Rozalia, tinha olhos carmesins e cabelos dourados. E, de forma similar, era a própria definição de beleza — para outro público.

Tratava-se de Leonard, o irmão gêmeo de Rozalia. E enfrentou o mesmo problema de sua irmã — olhares desagradáveis. Porém, com ele, a coisa mudava de figura. Muitos o invejavam, mas muitos o admiravam e tinham-no como um ideal. Como seu nome sugeria, Leonard era musculoso como um leão e possuía uma presença dominadora.

Na sua vez, Ágnes, com as mãos suando frio e a garganta seca, lutou para ficar de pé. Passou os olhos pelos colegas e abaixou a cabeça. Aqueles que ainda se davam o trabalho de observá-la estavam de cenho franzido ou olhos semicerrados. As palavras pareceram escapulir da sua cabeça. Engoliu em seco.

— M-meu nome é Ágnes Soledad El Rubio de Los Rosales. Sou uma hispaniana. Adoro ler e escrever. Eu...

— «Sou minúscula como um coelhinho e grosseira como um yonnahiou» — interrompeu-a Rozalia com a bochecha apoiada em uma mão, fitando-a de cima para baixo. — Oh, ho ho ho...

Ágnes se virou na sua direção, encarando-a nos diretamente nos olhos.

Ameaça...

Rozalia chegou a sentir um calafrio, mas logo foi salva pelo comentário de um estudante de óculos:

— Hum? Essa não é a tal «Coelha Rebelde»? Ei, vejam a cor da sua braçadeira! 

E não parou por aí. Sua observação desnecessária foi o estopim para uma série de dizeres de mal gosto:

— Ouvi dizer que nunca a viram lançar um único feitiço. Humpf. Uma nobre incapaz de usar magia! Digna de pena...

— E por que ainda não a mandaram de volta para a Hispania?

— Puff. Um ditado diz que, da Hispania, nem bom vento, nem bom casamento. Está mais para «nem bom vento, nem bom nascimento».

— Tomem cuidado! Nunca se sabe quando ela saltará do seu lugar para nos atacar. Não testem a sorte...

Os olhos de Ágnes ardiam de raiva enquanto ela ouvia, emudecia, aqueles insultos. Imaginou-se agredindo aqueles idiotas, um por um. O babaca do «nascimento», em especial, esmurrou a face com tamanha vontade que o deixou irreconhecível. Quebrou seus dentes em uma pancada contra o chão e pisoteou sua nuca.

Estava no seu limite. Queria transformar seus pensamentos em realidade. Somente aquilo acalmaria sua fúria. Entretanto, o fogo que a consumia internamente por apagado por um balde de água fria; um abraço de Adélaide. Ver aquele sorriso dócil fez desaparecer de Ágnes qualquer intenção hostil.

— Vocês se orgulham tanto das suas posições, mas zombam de uma colega de classe indefesa. Do que adianta haver nobreza no título se não há nobreza na alma? Sou Adélaide du Beaufort. E devo dizer que não tive uma boa primeira impressão de vocês.

Envergonhados, os estudantes se aquietaram. Ágnes aproveitou a oportunidade e contra-atacou:

— Ofendam-me à vontade. Ao contrário de vocês, não preciso lamber as botas de outros nobres em troca de mixarias. Humpf! Aposto que a fortuna das suas famílias não paga nem a minha mesada.

Agora ela havia tocado na ferida. Embora não conseguisse usar magia, Ágnes ainda era herdeira de uma das mais poderosas e abastadas famílias da Hispania. Seu pai era nem mais, nem menos que o arquiduque. Tal fato despertava os mais sombrios sentimentos em seus colegas, visto que os segundanistas mais bem-nascidos eram filhos de meros marqueses. 

Após a confusão, Gaspard deu uma bronca severa nos envolvidos e ninguém mais deu um pio. Ainda irritada, Ágnes descansava a cabeça entre os braços, na superfície gelada da bancada de madeira. Quando Gaspard anunciou que tinha uma surpresa para o final, ela, sem mudar de posição, levantou os olhos. Hein?! Endireitou-se na cadeira como se tivesse levado um choque.  

— Muito prazer. Henry Atwater. Sou eastlandês e não tenho nenhuma afinidade mágica. Isso é tudo.

Henry trajava a versão masculina do uniforme da Academia, que era uma adaptação do uniforme dos marinheiros. Ou seja, um sobretudo azul-marinho com botões dourados, uma calça da mesma cor e um par de botas polidas. Ah, e sua braçadeira também era branca.

— Graças ao fim da Grande Guerra — começou Gaspard — temos a honra de ter o senhor Atwater como nosso primeiro e único estudante eastlandês em onze anos, simbolizando a paz entre as nossas nações. Senhor Atwater, por favor, acomode-se na vaga ao lado da senhorita Los Rosales.

Ao ouvir seu nome, seus olhos se arregalaram e sua boca se abriu em um círculo. Ela piscou uma, duas, três vezes, estupefata.

Tum-tum-tum-tum-tum-tum.

Quando Henry alcançou a altura da sua fileira na escadaria, as safiras e as esmeraldas, pela segunda vez, encontraram-se. Ágnes desviou o olhar e encolheu-se no seu canto. Henry a ignorou e se dirigiu ao seu assento. Somente após a oração aos espíritos, começou, de fato, a aula.

 

Din-don! Bin-bon!

Às nove e vinte, um relógio de pêndulo, pendurado sobre o quadro negro, emitiu uma melodia agradável. Era o sinal para a mudança de professores.

Durante as aulas seguintes, Henry e Ágnes ocasionalmente se olharam de soslaio, mas não houve comunicação. Quando o sinal do almoço tocou...

— Senhorita Los Rosales.

— O-o que foi?

— Percebo que tem uma braçadeira igual à minha. Sei o que isso quer dizer. Que tal almoçarmos juntos, como colegas?  

Ágnes franziu as sobrancelhas. Nada na expressão de Henry indicava que ele estivesse gracejando. Na verdade, a congelante frieza dos seus olhos sugeria o completo oposto.

— Bem, se você insiste... por mim, tudo bem.

Consultada pelo olhar inquiridor de Ágnes, sua melhor amiga balançou a cabeça em concordância, declarando que não tinha objeções.

O refeitório Saveur Royale era imenso. Para se ter uma ideia, seu salão recebia os estudantes e professores ao mesmo tempo, o que excedia o número de trezentas pessoas. E era apenas o salão. O refeitório também tinha uma cozinha, uma despensa e uma sala para funcionários.

Havia três fileiras de quatro mesas, uma para cada turma, e mais duas mesas para os professores. Em cima das mesas havia candelabros de sete velas, e, no teto, lustres de joias valiosas. Vidraças com mosaicos de heróis e uma lareira em forma de cabeça de dragão, encimada por uma coroa de flores-de-lis, complementavam a decoração.   

Os pratos eram servidos por mordomos e empregadas da mesma idade dos estudantes. Esta regra partiu da diretoria da década passada. A ideia era criar um ambiente familiar para os alunos.

— Ó espíritos da agricultura, vós que possibiliteis nossa sobrevivência, somos profundamente gratos por esta imensa fartura. Nós suplicamos que continueis tão misericordiosos conosco. Amém.

Sempre antes das três refeições, todos se levantavam, fechavam os olhos e oravam em uníssono. Agradecer pela comida era tradicional nos reinos orientais de Carimea.  

Da esquerda para a direita, sentavam-se os primeiros, segundos e terceiros anos. Ágnes, Henry e Adélaide estavam sentados na extremidade da mesa da turma «D» do segundo ano, em frente à Boca do Dragão.  

Essa é a tal Ágnes de Los Rosales? Parece uma pré-adolescente. Henry pensava, enquanto observava a garota devorar um pedaço de frango assado. O prato do dia era frango assado, salada de folhas, legumes e baião de dois. Fazendo uma pausa em sua refeição, Henry perguntou às senhoritas se gostariam de lhe mostrar a Academia. Embora Adélaide não pudesse, em razão das aulas de Restauração, sugeriu que fosse apenas com Ágnes.

— O que me diz, senhorita Los Rosales?

— Não bejo pobema. A Afademia é gande, mas não é fifícil de avender omo runciona.

Como pode uma nobre falar de boca cheia? Henry estava surpreso.

— Aliás, senhor Ashwater, bocê vá enfende sobe as cores?

— Cores? Está falando das cores de identificação? Não, ainda não.

Finalmente terminando de mastigar, Ágnes limpou a boca com um guardanapo. Virando a cabeça na direção de Henry, ela disse:

— Preste atenção. Existem sete cores para sete Vertentes. Vermelho representa a Vertente da Destruição, laranja a da Encantação, amarelo a da Invocação, verde a da Restauração, azul a da Alteração, índigo a da Adivinhação e violeta a da Ilusão.

— E branco a da Inaptidão.  

— Uhum.    

Ágnes piscou o olho, balançando a cabeça em afirmação. Até que ela é bonitinha. Henry pensou, um pouco desconcertado pela atitude fofinha de Ágnes.

Combinaram de se encontrar às duas horas, no Pátio dos Ipês. Ágnes lhe passou as instruções de como chegar, de modo que seria impossível se perder no trajeto. Sorridente, Ágnes estendeu a mão a Henry. Ele apertou sua mão, mas não retribuiu o sorriso.

Após tomar um banho, Henry vestiu o uniforme da Academia. Lembrando-se das instruções de Ágnes, ele se dirigiu para o Pátio dos Ipês. Em seu trajeto, nas alamedas das calçadas, anus-brancos, bem-te-vis e sabiás o cumprimentavam.

Henry paralisou e ficou boquiaberto ao ver os muros da Ala Amarela. Havia ouvido Ágnes mencionar, mas ver era crer. Os raios solares reluziam naquelas paredes revestidas por um valiosíssimo metal, cuja cor era a mesma do céu; seu nome era zana para os elfos e ouro para os humanos.

 

Ágnes estava deitada na grama, com a face na lama, sob a bota de Leonard. Mais dois rapazes o acompanhavam, usando braçadeiras vermelhas e laranjas. 

— Por que está pedindo ajuda? Pensei que não precisasse lamber a bota de ninguém. O quê? Por que não tenta me parar com sua riqueza?

— Vá para a merda, Draculescu.

— Bem, devo admitir que é corajosa. Insulta uma classe inteira e ainda tem peito para andar por aí, sem nenhuma preocupação? Tsc.

— Ugh!

A pisada de Leonard enfiou o rosto de Ágnes de volta na terra úmida. Os dois capangas precisaram segurar o riso. Leonard, no entanto, não parecia nada feliz. Não com aquela expressão rígida e enojada... A mesma de quando se pisoteia uma barata asquerosa.

— Aprendeu a lição, coelhinha? De agora em diante, tenha mais respeito pelos seus colegas, entendido? Uf!

— «Respeito»? Como assim «respeito»?

Um braço bem desenvolvido apertava a garganta de Leonard em uma gravata, e ele lutava para conseguir respirar. Seus amigos estavam em estado de choque. Balbuciando coisas incompreensíveis e guinchando como um porco, Leonard se debatia nos braços de Henry. Até que, de súbito, o garoto foi solto.

Com o ímpeto, Leonard caiu de cara em uma poça de lama e inspirou o mais fundo que conseguiu. Sujo e atordoado, recuperava, vagarosamente, os sentidos. Henry encaminhou-se na direção de Ágnes e parou ao seu lado.

— A-Atwater?!

Ao entender o que tinha acabado de acontecer, Ágnes levou as mãos à cabeça.

— O quê... o que você fez? Está louco?!

Henry a ignorou. Fixava Leonard como uma águia fixava um macaco. Não se era possível ler nada em sua face. Não havia contrações musculares. Apenas indiferença.

— Miserável...! Você vai pagar por isto!

— Quem vai cobrar?

— E-Eu lhe desafio para um duelo!

Huh?! Ágnese os amigos de Leonard tiveram um sobressalto. Devido à sua natureza perigosa e infrutífera, duelos eram estritamente proibidos na Academia.

— É uma oferta tentadora... mas eu recuso.

— Como?! Depois de me agredir covardemente, o senhor planeja fugir como se nada tivesse acontecido? É isso mesmo? Seu paspalhão!

— Nossa, como você é chato. Tudo bem. Você propôs um duelo. Eu proponho uma luta. Chame seus amigos mais habilidosos e teremos o que deseja.  

— Ora, seu... considere feito. Aqui, no Pátio dos Ipês, às cinco da tarde! Já que você é um inapto, serei complacente e permitirei que use qualquer arma de seu agrado.

— Não precisarei. Lutarei de mãos vazias.

— O quê?!

Leonard exibiu seus caninos para Henry e o fitou nos olhos. Contudo, em vez de intimidá-lo, ele mesmo acabou desviando o olhar. Ao longo dos seus dezesseis anos de vida, havia observado diversos tipos de olhares, assustadores ou encantadores. Mas nunca tinha visto um tão vazio, tão indiferente antes.

Nenhum ser humano normal teria um olhar daqueles. Nem mesmo um animal selvagem. Apenas as bonecas de Rozalia conseguiam olhar para alguém daquele jeito, com aquela malícia silenciosa. Era por isso que tinha medo de bonecas.  

— Se eu vencer, você nunca mais encostará um dedo em Ágnes. Isso parece razoável?

— Que seja. Você vai se arrepender de ter mexido comigo, novato. Vai se arrepender...

Henry deu de ombros e virou as costas, aproximando-se de Ágnes. Os amigos de Leonard, até pouco tempo atrás imóveis, pegaram-no pelos braços e o ajudaram a dar o fora.   

Os olhos esverdeados de Ágnes tinham um brilho vacilante, e seus lábios pequenos estavam entreabertos. Henry se abaixou e, puxando um lenço do bolso, limpou sua face. Durante isso, Ágnes olhava para ele de forma fixa, com as pupilas dilatadas.  

— Vamos, senhorita Los Rosales.

— Vamos? Para onde?

— Para o seu quarto. Você precisa tomar um banho.  

— H-hã? Meu quarto?

Henry concordou com a cabeça e estendeu a mão. Hesitante, mas nem tanto, Ágnes a segurou. A diferença de tamanhos era comparável à de uma criança e à de um adulto. «Pela espada do bravo cavaleiro Lorenzo de Venezia, a princesa cativa, Eleonora, foi salva, pela primeira vez, de seus terríveis algozes». Ágnes citou, em sua cabeça, uma linha do livro «A Torre da Melancolia Solitária — 1».



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