Volume 1

Capítulo 1: O Portão da Desilusão



Quem, seis séculos atrás, poderia imaginar que a escolinha da sonhadora Hélène, que aspirava a se tornar maga, um dia se tornaria uma academia mágica de semelhantes proporções e de tamanho prestígio?

O Legado de Santa Hélène de Draconville, volume I, Ágnes del Rubio.

Se um dia tiver a oportunidade de conhecer Sainte-Hélène, garanto que não esquecerá da pitoresca visão das suas sentinelas; militares da Guarda Provinciana, os famigerados «presas solitárias». São dragões-azuis em pessoa.

Uma Viagem pelo País dos Paladinos, Stefan Weber.


Diante daquele conhecido portão, guarnecido por um par de sentinelas da Guarda Provinciana, com suas extravagantes fardas auriazuis e imponentes alabardas, sentiu seus pés hesitarem. Estava plantada. Atravessar aquele portão não era uma escolha simples; significava não somente abdicar de sua liberdade, como também de sua dignidade.

O outro lado do portão era, para qualquer outro da sua idade, um paraíso sem igual. Nada mais, nada menos que a famosíssima Real Academia Mágica de Sainte-Hélène, o sonho da juventude de todo nobre carimeano. Mas ela não pensava assim. Não mais.

Um ano atrás, havia, de fato, chegado à Academia com a mesma expectativa dos demais. Afinal, por que não? O lugar era um enorme complexo estudantil, cujo tamanho rivalizava com o de uma pequena cidade. Sua grandeza era cantada até mesmo nas longínquas florestas dacianas. E, embora não passasse por dificuldades financeiras, não teria que se preocupar com gastos, pois todas as despesas eram cobertas pela Coroa Helenesa e pelas doações dos devotos de Santa Hélène de Draconville.

Havia sido aprovada em primeiro lugar no exame de admissão, uma conquista tão gloriosa como matar uma serpente flamejante. Em verdade, seria impossível esquecer, após tamanha ansiedade, da sensação de cruzar o portão de entrada pela primeira vez. Seria, mesmo. Ainda mais com aquele incômodo fedor do alho pendurado nas paredes para espantar espíritos malignos ou com o frio que fazia por conta das chuvas de verão.

Na recepção, depois do desgastante aguardo na fila para receber a chave do quarto e algumas instruções, quase riu do decurião. Seu chapéu a lembrava da crista das galinhas hazianas, caída apenas para um lado, sobre o olho. Foi trabalhoso encontrá-lo, mas satisfez-se com o resultado. Era um quarto bem melhor do que o seu antigo. Pelo menos, aquele era atingido pela luz solar e não lhe faltava ar fresco.

Bons tempos eram aqueles. Atravessando o portão pela segunda vez, percebeu que nada havia mudado. O alho, o frio, a chuva, o céu nublado, as andorinhas, as sentinelas... As coisas não estavam diferentes. E, mesmo assim, nada mais possuía seu antigo brilho. Havia sofrido com uma desilusão semelhante a de quando se lê seu conto de fadas preferido depois de dez anos.

A maldita braçadeira branca em seu braço lembrava-a diariamente do seu fracasso. Da sua irrelevância. Da insignificância de sua presença naquele ambiente. Não pertencia àquele lugar, embora fosse obrigada a frequentá-lo. Deixou-se cair com um baque em sua velha cama e cobriu os olhos com as mãos.  

— Mais uma vez, tudo de novo...

Isso porque era o 21° dia de Salaciarius, e o seu segundo ano letivo estava prestes a começar. Havia chegado já vestida no uniforme da Academia, que consistia em uma minissaia e uma blusa de mangas longas azul-marinho, com uma gola puritana dourada. Ele era complementado por um par de meias-calças e um par de sapatilhas pretas.

Ao redor de sua cabeça estavam espalhados seus cabelos longos, negros e ondulados, formando uma espécie de auréola. Eles alcançavam seus cotovelos em comprimento, e havia um lacinho escarlate preso à sua lateral esquerda.

— Preciso ir. Se eu me atrasar para a cerimônia de abertura, aqueles velhos passarão o dia me importunando...       

Era essa a sua sina. A sina de Ágnes de Los Rosales. A única da Academia incapaz de utilizar magia, uma deficiência observada em uma a cada centenas de crianças nobres. Inaptidão. Rezava aos espíritos para que o que os sábios hispanianos não conseguiram consertar no passado, os professores da Academia conseguissem. O resultado? O tratamento que recebia dos seus colegas e a cor de sua braçadeira falavam por si próprios. 

Levantando-se da cama, Ágnes saiu do quarto e desceu a escadaria do Dormitório Nêmesis. Ela seguiu pelas numerosas calçadas de granito, rumo ao Anfiteatro. No caminho, ela avistou um estábulo, atravessou por entre os dormitórios masculinos e o espaço recreativo Le Marigot, passou por outro estábulo e, enfim, pelo dormitório dos funcionários.

O Anfiteatro era uma estrutura oval, composta por duas fileiras de arcos vazados, que eram intercaladas por pilares cobertos de travertino. Sobre a fileira superior de arcos havia uma parede de dois metros, decorada por altos relevos de seres mitológicos e campeões do passado.

Por dentro, as arquibancadas tinham capacidade para comportar a espantosa quantidade de cinco mil espectadores. O local estava tumultuado. Aproximadamente quatrocentos estudantes estavam dispersos pela arena, conversando após o retorno das férias de fim de ano.

— Oh!

Os olhos amendoados de Ágnes, verdes-escuros como duas esmeraldas, arregalaram-se enquanto ela investigava os arredores. Eles se fixaram em uma menina esbelta, de pele branca e olhos gentis, da cor do mel. Seus cabelos longos eram castanho-claros, reluzentes e chamativos.

— Ei! — Ágnes acenou.  — Aqui, Adél! 

Adélaide veio em resposta ao seu chamado:

— Ágnes! Há quanto tempo!

Saltando nos braços da amiga, Ágnes a abraçou e sorriu. Devido à considerável diferença de altura, ela mais parecia uma criança nos braços da mãe.

— Estava com tanta saudade de você! Como passou os últimos meses?

— Eu também estava com saudade de você! Passei bem, mas estava preocupada sobre como você poderia estar...

— Eu não sou mais criança, sabia?

— Humpf. Você sempre será minha criança, Ágnes.

Adélaide sorriu e colocou a mão sobre a cabeça de Ágnes, acariciando seus cabelos fofos. Ágnes corou, e suas bochechas inflaram como um baiacu.

Clap clap clap!

As palmas vieram do palco de madeira montado para a cerimônia de abertura. Segurando um cajado de teixo, um homem de cabelos grisalhos estava de pé com a coluna ereta e o peito estufado. A atenção dos alunos havia se voltado para ele.

— Saudações, caros estudantes da Real Academia Mágica de Sainte-Hélène. Eu sou Gerárd Duguay, diretor desta Academia. É uma honra imensurável recebê-los para mais um ano letivo. Gostaria de relembrar que temos altas expectativas em cada um de vocês. Desejamos, sinceramente, que tenham um excelente aproveitamento neste novo ano.

Clap clap clap clap clap clap!

Uma salva de palmas para a introdução do diretor Gerárd.

— Até parece... — Ágnes cruzou os braços e sussurou. — Quais seriam as expectativas que a Academia teria em mim?

— Não seja tão pessimista. Certamente os professores têm um plano para lhe ajudar a despertar sua magia.

— Tanto faz. É que esse fingimento me dá nos nervos.

O diretor continuou discursando, mas Ágnes não deu importância. Escondida por trás das costas de Adélaide, ela brincava com um ioiô de madeira que tinha trazido para passar o tempo.

Quando ele terminou sua fala e os alunos foram dispensados, Ágnes guardou o brinquedo. Foi nesse momento que, ao levantar a cabeça...

— Hum?

...Seus olhos de esmeralda se encontraram com um par de olhos de safira. Eles pertenciam a um rapaz de cabelos ondulados, escuros como ébano, que ultrapassavam sua escápula. Ele era quase dois pés maior do que Ágnes e tinha uma constituição atlética.

Tum-tum. Tum-tum.

Os dois estavam separados por um espaço de apenas três metros. O corpo de Ágnes reagia à visão do garoto como o formigueiro em que ela, quando criança, havia derramado alumínio derretido pelo bem da ciência. As formigas disparavam pelos seus nervos e bagunçavam seus sentidos... Entretanto, o contato visual foi interrompido por uma maré de estudantes. Eles retornavam, agora cabisbaixos, para seus quartos. O motivo? Certamente o retorno às aulas.

Quem era aquele garoto? Ei, por que você está tão agitado?! ela perguntou para si mesma, levando a mão ao peito. Inalou profundamente e suspirou.

Já no seu quarto, Ágnes colocou um livrinho sobre a mesa de cabeceira e deitou na cama. «A Torre da Melancolia Solitária — 1», era o que se lia na capa. Sozinha em um ambiente hostil, sendo tratada como um animal exótico e servindo de entretenimento... Parece-me que Eleonora e eu não muito somos diferentes...

A luz violeta da lua, filtrada pelo vidro da janela, iluminava seu semblante puro e delicado. Se alguém mais estivesse presente no quarto, poderia ter visto os raios lunares se refratando em seus olhos inchados. Contudo, sua única e leal companheira era a solidão. Precisaria emprestar a força de vontade de Eleonora para suportar outro ano naquela prisão.



Comentários