Volume 1
Prólogo: Quem Sou Eu?
Quem sou eu e o que estou fazendo neste lugar estranho? Talvez eu tenha, de fato, esquecido a resposta para essas perguntas.
Desde que vim para cá... desde que este pesadelo começou, não há um único dia em que eu não me lembre da minha casa. Sempre antes de dormir a saudade esfaqueia meu peito e me perco nas longas e complexas espirais que são as memórias do passado.
Henrique Almeida de Moulin desaparece a cada novo amanhecer nesta terra onde o céu é dourado e a lua tem sete cores. Isso quer dizer, então, que "Henry Atwater" não sou eu? Sendo assim, quem sou eu, afinal? Espero encontrar essa resposta antes que seja tarde demais. Contudo, não me surpreenderia caso não conseguisse. A vida é uma merda. Tudo que pode dar errado, dará; e da pior forma possível.
Como um soldado especial do Batalhão Negro, não posso usufruir das liberdades de uma pessoa comum. Além disso, sou sempre uma das primeiras opções para comandar as mais perigosas missões. Por essa razão, passei a viver como uma máquina, um autômato, um golem.
Após abrir mão das minhas preferências, logo parei de me importar com gostos e prazeres pessoais. Também não tenho mais passatempos, embora há muito tempo não os tivesse. Resta-me apenas a tediosa e repetitiva rotina de um soldado.
Meus serviços são remunerados, é claro, apesar do soldo não ser expressivo. Obrigam-me a viver no quartel, em uma cela de dez pés por sete, e me alimentam com três refeições por dia; deliciosas, quase como a terra molhada. Apesar disso tudo, não faço exigências. Foi a corporação que me salvou quando eu estava à beira da morte; mesmo que eu não lhes seja grato, devo pelo menos compensá-los pelo favor.
Toc-toc.
Estava deitado no colchão, confortável como uma pedra, quando bateram na porta. Que pena. Suspirei. Mais uma missão? A guerra mal terminou...
— Quem vem lá? — perguntei sem ânimo algum.
— Soldada Walker, sir — respondeu uma jovem que, pela voz, deveria ter entre dezesseis e dezoito anos. — Vim lhe prevenir de que a tenente Bridget mandou o chamar ao seu gabinete.
— Ela disse o que deseja?
— Não, sir. Só fui ordenada a lhe dar o recado.
Hm... O que será que Bridget quer comigo? Ela não me convocaria para uma missão comum. Seria mais uma tarefa suicida?
— Okay. Bom trabalho, soldada. Dispensada.
Não posso fazer nada. Levantei com preguiça e calcei as botas polidas. Arrumei a farda verde-negra em frente ao espelho e penteei os cabelos. Depois disso, segui o familiar caminho para a torre sul do quartel-general. Que calor... Ah, como eu odeio a primavera.
Subi os degraus em espiral e bati à porta.
— Está aberta — declarou Bridget com frieza. — Entre.
A sala era espaçosa; as únicas mobílias eram uma escrivaninha e um sofá dos tempos do Império. Bridget estava sentada, de braços cruzados, trajando o mesmo uniforme que eu.
Orgulho-me que minha instrutora seja semelhante beldade. Os dois pequenos sóis aprisionados em um par de olhos imponentes só me chamavam menos atenção do que seu busto opulento.
Fui cumprimentado pela incômoda saudação imperial e respondi com uma continência. Não era um gesto apreciado por todos, mas não costumavam fazer questão. Acerquei-me da minha querida superior e me sentei no sofá, tomando cuidado para não o destruir com meu peso.
A onça fixou em mim seus olhos amarelos. Pela aparência — e somente por ela — Bridget poderia ser descrita como perfeita. Porém, quem a conhece sabe que não é normal. Longe disso. A mulher é ainda mais mecânica do que eu.
— Salve, sargento-mor Atwater — disse Bridget com sua voz quase sintética.
— Salve, ma’am — respondi da mesma forma. — Por acaso mandou me chamar?
— Decerto. Imagino que já tenha noção do motivo.
— Não me alegro com isso, ma’am.
Bridget permaneceu inalterada diante do gracejo. Dei de ombros e me encostei no sofá.
— Estou ciente de que não lhe desperto boas memórias, sargento. — Abriu a boca após um instante. — Porém, peço que me ouça com atenção.
Mantive-me em silêncio e assenti com a cabeça. Bridget entrelaçou os dedos da mãos sob o tampo da mesa e começou:
— Recebemos um certo pedido no mês passado. Um valioso parceiro solicita o auxílio do nosso reino e nós, como nação leal que somos, concordamos em ajudar. — Fez uma pausa para examinar minha feição. Acontece, ma’am, que como seu aprendiz, também dominei a técnica da poker face. — Tal atribuição acabou por cair nos ombros do Batalhão Negro e, por isso, cá estamos.
Estou curioso para saber onde esta conversa irá parar. Será que terei de assassinar algum nobre estrangeiro? Raptar alguma princesa inimiga? Escoltar um espião aliado? São tantas possibilidades que não consigo conjecturar.
— Sei que soará leviano, mas o serviço que ofereço é o de guarda-costas, sargento Atwater. Para ser precisa, guarda-costas de uma estudante da Real Academia Mágica de Sainte-Hélène.
— O quê?! — Deixei transparecer o espanto. — Como? Guarda-costas? Em uma academia mágica? Ma’am, desde quando virou comediante?
— Não é uma piada. Esse trabalho terá grande impacto nas relações entre Eastland e Hispania.
— Pois sim? E por acaso passei de militar a diplomata?
— Não seja idiota, garoto. — Bridget semicerrou os olhos. — Estou falando sério. Não me faça repetir isso novamente.
Endireitei a coluna no sofá e coloquei as mãos nas coxas, fitando a tenente no rosto. Não posso acreditar que recebi uma oportunidade como essa.
— Por que eu? — Arrisquei-me a investigar. Deve haver um motivo por trás da minha escolha. O Batalhão Negro dispõe de centenas de militares; por que logo eu? — Os demais recusaram o trabalho?
— Dói-me o coração dizer isso, sargento — Bridget disse e suspirou —, mas você é o nosso ás. O comando da corporação se reuniu e analisou dezenas de candidatos com base em critérios objetivos. Você pontuou a nota máxima, garoto.
Quer dizer que todo o meu esforço e toda a minha dedicação produziram resultados. Quanta felicidade!
O que poderia ser melhor do que uma simples e pacífica missão de guarda-costas em uma academia mágica guarnecida por dezenas de guardas? Pouco me importa quem devo proteger ou do quê; meu objetivo finalmente está um passo mais próximo de ser alcançado.
— Muito bem — declarei fazendo esforço para parecer indiferente. — A senhora me convenceu, ma’am. Conte-me os detalhes da missão.
— Que ótima notícia. Todavia, sinto lhe informar que os detalhes que deseja são confidenciais. Todas as informações de que precisará serão entregues no seu quarto no decorrer da semana. Quanto a sua nova rotina, terá aulas de helenês, lhe será ensinado etiqueta nobre e iniciará um tratamento hormonal.
Irrelevante. Faria qualquer coisa para me adequar a esse trabalho. E não será difícil, creio eu, readaptar-me à vida estudantil.
— Isso é tudo, ma’am? — indaguei a ponto de transbordar de satisfação.
— Há mais uma coisa, sargento. — Bridget separou as mãos e as apoiou na mesa para se levantar. — Não pense que será um trabalho fácil. Não seja arrogante e não abaixe a guarda. As expectativas do reino e da corporação em você são altas.
Tsc. E o que pode dar errado? Sou um espadachim formado no Batalhão Negro; um bandidinho vai descobrir o que é bom para a tosse se entrar no meu caminho.
— Levante-se e venha até aqui — Bridget ordenou.
Apesar de estranhar o comando, fiz o que ela me pediu. Bridget contornou a escrivaninha e parou ao meu lado. Era quase da minha altura e me olhava de baixo para cima com um calor incomum.
— Abaixe-se um pouco.
Obedeci, um tanto encabulado. No momento seguinte, meus pelos se arrepiaram; duas protuberâncias macias se comprimiam contra o meu peito. Ainda que fosse musculosa como um homem, Bridget me abraçava com a delicadeza de uma mulher.
— Não reaja. — Ela acariciou meu cabelo com ternura. — Viajarei hoje à noite e não o verei pelos próximos dois anos, pois terá partido antes de eu voltar. Sentirei sua falta, garoto. Não me decepcione e, acima de tudo, não morra. — Encostou a testa na minha e fechou os olhos.
Eu estava embasbacado. Tanto que deixei os dois anos citados por ela passarem em branco. Sempre achei que Bridget não tivesse sentimentos... Retribuí, sem segundas intenções, o abraço da minha superior.
Após alguns minutos, Bridget me soltou e tocou com a ponta do dedo indicador no meu peito.
— Seu serviço será vital para duas nações — disse levemente ruborizada. — Não faça besteira, garoto. Entendido?
— Sim, ma’am. Não os decepcionarei. — Influenciado pela situação, deixei-me levar pelos sentimentos. — Prometo.
— Alivia-me ouvir isso da sua boca. — Bridget curvou os lábios em um sorriso. Aquela foi a primeira vez que a vi sorrir; estava tão linda que meu coração quase derreteu. — Aqui, leve isto como um amuleto. — Entregou-me na mão um pequeno crucifixo de alumínio que tirou do próprio pescoço.
Aceitei no impulso, ainda me sentindo deslocado pela súbita mudança de comportamento da tenente. Bridget retornou a sua cadeira e se deixou cair sentada com um baque.
— Isso é tudo, sargento. Dispensado.
— Eu... obrigado por tudo, ma’am. Espero que nos reencontremos de novo. Não se atreva a morrer.
Damn, por que é que estou agradecendo a pessoa que me torturou por tantos meses? Por que estou sendo tão passional? Por quê?
Bridget sorriu outra vez e acenou com a cabeça. Tenho certeza de que meus olhos estão cintilando neste momento. Fiz minha tradicional continência e me retirei sem olhar para trás. O crucifixo estava no meu bolso e eu ainda decidiria o que fazer com ele. Por ora, desejava somente chegar ao meu quarto.
Entretanto, subi a escadaria e parei na sacada da torre, coberta por um telhado rústico, para contemplar o horizonte. As memórias que eu guardava daquela paisagem não eram as melhores, mas eram as minhas memórias e, de certa forma, especiais para mim.
Nunca gostei deste lugar e, no entanto, agora que me dão a possibilidade de ir-me embora, começo a me sentir assim. O que há de errado comigo? Poderia eu ter me apegado a esta espelunca? Costumam dizer que nós só percebemos o valor das coisas quando as perdemos...
É verdade que estou contente com a minha nova missão. Também é verdade que estou deprimido com a ideia de me afastar do quartel. Henrique e Henry têm sentimentos divergentes. E quem está certo? Conto com essa missão para me ajudar a descobrir quem é o meu verdadeiro "eu".