Volume 2
Capítulo 58: Olho Por Olho, Dente Por Dente
Aconteceu sem algum aviso prévio enquanto Seol Jihu observava os companheiros pilhando os itens do enterro. De repente, a câmara antes banhada em um tom de verde, passou a ficar amarela e, segundos depois, vermelha. Em seguida, dando a impressão de que a dona da tumba estivesse se irritando, todo o ambiente começou a escurecer ainda mais.
Chocado com a situação, virou-se e deu de cara com Alex e Clara mexendo em alguns objetos próximos ao sarcófago esquerdo. Não pôde nem pensar direito na situação.
— O que vocês dois estão fazendo?!
Ao ouvirem aquela indagação, o Sacerdote logo hesitou, mas a Arqueira apenas encarou o jovem com uma expressão indiferente, voltando a encarar um colar que estava nas suas mãos poucos segundos depois.
— Clara!
— Argh, o que foi?! Não posso nem olhar? — Quando o amigo tentou pará-la, ela pareceu ficar um pouco irritada, mas logo demonstrou-se surpresa pelo que aconteceu em seguida. O Marca de Ouro correu na sua direção e agarrou o colar. Em seguida, o posicionou de novo próximo ao sarcófago. — Que porra você está fazendo?
— Eu é que te pergunto isso. — O tom de voz do jovem não era nem um pouco amigável. Ainda mantinha parte da cortesia ao falar, mas essa estava misturada com outros sentimentos de desaprovação.
— Você não viu o que estava escrito no papel lá em cima?
— Vi sim. E daí?
— Então por quê?
— O que que tem? — respondeu Clara, fazendo com que o Guerreiro Nível 1 semicerrasse os olhos. — Você não acha que está muito afobado, não? — indagou, cruzando os braços na altura do peito e formando um sorriso irônico. — Acho que você se confundiu. Samuel disse que, mesmo que a cerimônia desse certo, nós devíamos seguir a sugestão dele. Em nenhum momento ele mencionou em obedecer o que estava escrito no papel, mesmo que desse certo.
— Você quer muito morrer, hein.
— Vai se foder. Como você tem tanta certeza? Como você sabe que a piranha que está enterrada aqui é forte ou não?
— Então você não está satisfeita com as coisas que estão na parede. É isso?
— Sim, eu não estou. E se você não tiver mais nada para dizer, saia da minha frente. Ah, e um conselho pra você: é bom você saber o seu lugar — falou, encarando o jovem enquanto caminhava na direção dele, passando direto. — Garoto burro. Você tem noção do quanto vale um negócio daqueles? Um item do Império vai… — Enquanto falava, Clara estendia a mão para pegar novamente o colar, mas Seol Jihu logo agarrou o braço dela. — É melhor você me soltar — disse, com muita raiva. — Quer tentar a sorte mesmo?
— Não toque. — A voz do jovem estava ainda mais gélida do que antes.
— Hmph — bufou a Arqueira, conseguindo segurar o colar com a mão esquerda.
— Eu disse pra você não tocar! — A voz raivosa do jovem reverberou por todo o ambiente e, ao mesmo tempo…
— Aaaaahkk?! — Surpresa por ter sido arremessada para o chão, Clara demorou apenas alguns segundos para começar a sentir ódio do que estava acontecendo. — SEU!! — bradou em indignação ao Guerreiro. Apesar de ter caído com força no solo batendo os ombros e a lombar, ela não se daria por vencida.
— O que vocês dois estão fazendo? Parem, Seol e Clara! — disse Alex, tentando intervir. — O que está acontecendo?
Ao ouvirem toda aquela confusão, os outros membros da expedição passaram a prestar atenção no que estava acontecendo entre os três. Porém…
— V-Você tá maluco?! Como se atreve a tocar em mim!
— Cala a boca.
— Como é?! Quer lutar?! Então vem! — falou repleta de ódio enquanto se preparava para pegar o arco e as flechas que guardava nas costas.
— Acalme-se, Clara! — Muito surpreso com tudo, o Sacerdote apenas balançava os braços de um lado para o outro tentando amenizar a situação. No momento em que a mulher mirou para o jovem e puxou a linha…
ESTRONDO!!
A câmara começou a tremer. Com o “Nove Olhos”, pôde ver que todo o ambiente agora emanava tons de amarelo, laranja, vermelho e preto. Nunca esteve em uma situação na qual pudesse ver tantas cores com tal habilidade.
— O que foi isso? De onde esse som veio?
Dylan estava prestes a intervir na briga, mas logo parou para olhar ao redor. Em seguida, o Marca de Ouro olhou para trás e viu que o sarcófago esquerdo estava vibrando.
Sem pensar muito, apenas colocou a mão sobre a parte de cima do caixão e pensou “Me desculpe”. Talvez estivesse se simpatizando com o sofrimento da mulher ali enterrada, apesar da grande distinção entre o que ambos sofreram. Porém, em meio a tantas diferenças, podia enxergar um pouco de semelhança no fato de terem sido expulsos das próprias famílias, seja por ações próprias ou de terceiros.
Passou a sentir que não tinha mais um lugar na Terra e que, por isso, conseguia se simpatizar com a mentalidade da mulher, mesmo que um pouco. No entanto, o mais importante é que ela havia ficado mais calma e mostrado boa vontade apenas por terem feito uma pequena cerimônia, então não gostaria de trair a confiança que lhe foi depositada.
“Não vou deixar ninguém tocar.”
Como se os seus pensamentos fossem ouvidos, o sarcófago começou a parar de vibrar. Encarou-o por mais algum tempo antes de se virar. Clara também estava olhando para o túmulo com um rosto surpreso, mas logo desviou a atenção para o Marca de Ouro.
— Parece até que vocês têm alguma sincronia. Ei, garoto, pare de ficar se achando e vaza daqui.
— Você não tem o menor respeito pelos mortos?
— Me dá um tempo, vai. Essa é a sua motivação? — perguntou, rindo, e logo formando uma expressão mais séria com o rosto. — Deixe a sua moral longe do Paraíso. Agora vaza daqui se não quiser que eu te acerte.
— E se eu não quiser?
— Não vou poder fazer nada. Você que começou, então não me culpe depois.
— Está bom — falou, dando uma leve risada. Podia ter perdido a lança mágica, mas ainda tinha outra. — Se você realmente quiser o colar, vai precisar pegar ele por cima do meu cadáver — falou, apontando a sua arma para Clara e circulando mana por todo o corpo.
Quando ajeitou a postura para se preparar para atacar…
— Já chega — interveio Samuel, pulando nos meios dos dois.
— Clara, abaixe o arco.
— S-Samuel? Mas foi aquele bosta que começou!
— Foi você e o Alex que agiram como dois idiotas primeiro. Você sabe que aqui tem um espírito vingativo, então quem disse que você poderia tocar no que quisesse? Como planejava lidar com as consequências dessas ações?
A Arqueira mordeu os lábios e, hesitante, abaixou a arma, demonstrando o quão indignada estava.
— Seol, por favor, abaixe a lança também — pediu o Explorador após verificar que Clara já não estava mais em posição de ataque.
O Marca de Ouro também abaixou a sua arma, mas não moveu-se um centímetro para longe do sarcófago.
— Fuuuu… — suspirou o líder da expedição. — Eu vou ser direto com você. Na verdade, eu concordo com a Clara.
— Samuel.
— Sim, eu sei que a mulher que está enterrada aqui passou por coisas terríveis, mas isso é tudo. No final das contas, nós ainda somos terráqueos.
— E ela era uma Paraisense.
O Explorador passou alguns segundos estudando a resposta do jovem antes de continuar.
— Quanto tempo você já esteve no Paraíso?
— Não tem nada a ver.
— Você pelo menos sabe o motivo desse lugar ser chamado de Paraíso?
Surpreso pela pergunta, Seol Jihu apenas balançou a cabeça em negação.
— É simples. Apenas poucos escolhidos podem vir para cá e oportunidades podem ser encontradas em quase todos os lugares.
— Oportunidades?
— Estou falando sobre os itens do enterro que estão bem atrás de você no sarcófago. Se eu não estiver enganado, eles são do Império. — Quando o jovem tentou abrir a boca para falar, Samuel levantou a mão para que não fosse interrompido. — Sei que você queria ter me perguntado se esses objetos são mesmo tão valiosos assim. De fato, eles são incríveis. Não, são mais do que isso. O Império pode ter sucumbido aos Parasitas, mas mesmo assim, o nível de ciência mágica que eles desenvolveram foi o maior já visto em todo Paraíso. Itens dos reinos não servem nem para comparação.
Apesar de todo o discurso, o jovem não demonstrou sinais de que se moveria.
— Você ainda não entendeu? Vou ser direto mais uma vez. Apenas um objeto dali e todos nós seremos muito ricos.
— Não acha que está ficando um pouco ganancioso?
— Ganancioso, então. Se você me perguntar se não estou com medo de morrer, a resposta é, sim, eu estou pronto para correr o risco. Esqueça as moedas de bronze ou prata, nós podemos conseguir moedas de ouro aqui. Sabe quanto dinheiro na Terra você consegue com apenas uma moeda de ouro? — perguntou Samuel, com um sorriso irônico no rosto que se formou após pensar alguns segundos.
— Não, eu não sei. Mas também não estou interessado em saber.
— Sendo honesto, eu gostaria muito de acatar o seu pedido em qualquer outra circunstância. Claro, os objetos das paredes valem muito, mas os itens do sarcófago valem muito mais — falou Samuel, estalando os lábios ao perceber que o jovem não seria convencido com tanta facilidade.
— O que significa que vocês vai pegá-los não importa o que aconteça.
— Por favor, me escute até o fim. O que estou tentando dizer é que, enquanto eu estou disposto a correr o risco e pegar todos esses itens, você não quer se arriscar, então pretende levar apenas o que foi permitido. Acredito que nenhum dos dois esteja errado.
O que ele pretendia? Seol Jihu não baixou a guarda e continuou encarando Samuel.
— Portanto, proponho que façamos uma votação.
— Uma votação?
— Exato. Como nenhum de nós está errado, deixemos a maioria decidir.
— E se eu não quiser seguir o resultado da votação?
— Isso não será permitido — respondeu, balançando a cabeça. Enquanto fizer parte dessa expedição, devemos agir como um, você gostando disso ou não. Haverá momentos em que você terá de fazer coisas que não quer, precisando recuar independente dos princípios que segue. Caso insista em fazer o que quiser, não poderei continuar reconhecendo-o como membro da expedição. — Em seguida, o Explorador desviou o olhar de Seol Jihu, indicando que não iria discutir mais com ele. — Claramente Seol é contra. Clara, você é a favor, certo?
— Lógico.
— Um voto a favor e um contra. Vamos começar. Eu sou a favor.
— Hmm, eu também — disse Alex, levantando uma das mãos enquanto evitava olhar para o Marca de Ouro. — M-Me desculpe, Seol. Mas é que… — O Sacerdote abriu e fechou a boca algumas vezes antes que desistisse de falar.
— Como Samuel é a favor, eu também serei — falou Grace, dando de ombros.
— Quatro votos a favor e um voto contra.
Apenas mais um voto a favor e a discussão estaria encerrada. Então, o Explorador passou a encarar as quatro pessoas que ainda não haviam se pronunciado.
Seol Jihu fechou os olhos, entendendo que a situação estava caminhando para uma conclusão inevitável. Todos os tipos de pensamentos passaram por sua mente. Será que deveria lutar? Ou escapar sozinho? Será que devia revelar a verdade do “Nove Olhos” e tentar mudar a opinião do grupo? Não importava qual fosse a decisão, precisava tomá-la logo.
— Sou contra. — Uma voz grossa ressoou por todo ambiente. Era Hugo.
— Contra?
— Eu não quero tocar no túmulo daquela mulher, se puder evitar. É tudo — respondeu à pergunta de Clara. Era uma resposta curta e que combinava muito bem com a sua personalidade.
— Hmm. — Dylan coçou um pouco o queixo antes de votar. — Contra.
— Dylan, você é contra? — indagou Samuel, surpreso.
— Hmm. Eu entendo o seu ponto de vista, mas concordo com a dedução que Seol fez. Quando penso no destino do time do Kahn, concordo que a ideia certa seria não tocar o túmulo.
— Ahhhh, aí você me complica. Merda. — Ao ouvir a declaração do Arqueiro de Precisão, Chohong começou a coçar a própria cabeça. Depois, encarou o sarcófago por alguns segundos e, em seguida, desviou o olhar para Seol. — Merda. Eu também sou contra.
Então, haviam quatro votos a favor e quatro votos contra. Todos os membros do Carpe Diem haviam concordado com Seol Jihu. Não esperando aquele resultado, os membros do time de Samuel ficaram muito surpresos.
Restava apenas um voto.
Ian permaneceu em silêncio até aquele momento, mas logo começou a falar.
— Lá fora, esse camarada aí falou sobre cálculo inverso. Posso entender tal pensamento até certo ponto, mas isso ainda está baseado na minha hipótese e, portanto, não pode ser confirmado como um fato. — Em seguida, ele encarou Samuel. — Porém, Samuel…
— Sim?
— Você tem noção de quantas vezes durante a expedição revelou o quão apressado estava?
— Eu? — perguntou o Explorador, não entendendo a situação.
— Uma vez logo depois da batalha com os Lioners e outra vez logo depois. Outra vez quando a Caneta de Pena Consciente foi usada e, finalmente, quando discutia com o nosso jovem amigo.
— Não, eu só estava…
— Ao invés de você mesmo se julgar, o julgamento de terceiros, normalmente, é muito mais preciso. Ponderei por muito tempo, pensando se deveria mencionar esse fato ou não. A razão pela qual me mantive calado foi, primeiro, porque respeito a sua autoridade como líder da expedição. Segundo, porque não queria roubar essa autoridade de você. Terceiro, porque sei da sua situação.
Quando a palavra “situação” foi mencionada, o Explorador não conseguiu dizer mais nada.
— De fato, o que aconteceu foi algo lamentável. Eu me simpatizo com os esforços de tentar revitalizar o seu time enquanto ele passa por águas muito turbulentas. Porém, da maneira que enxergo, parece que você não aprendeu nada com a morte “dela” e está tentando repetir o mesmo erro que cometeu no passado.
Samuel continuava em silêncio.
— Não me estenderei mais. Acredito que podemos retornar com o que conseguimos até agora e ficarmos muito satisfeitos com as recompensas que nos esperam, não havendo razão para nos arriscarmos mais. Portanto, sou contra.
— M-Mestre Ian.
— Teremos outras expedições no futuro. Torço para que você não aposte tudo nesta.
Aquilo era algo que Seol Jihu já havia ouvido do líder.
O Explorador cerrou os punhos e se virou. Clara estava muito surpresa e Alex estava com uma expressão de dor no rosto. Grace, por sua vez, não parecia ligar muito. Todos encararam Samuel por um tempo, mas ele logo abaixou a cabeça.
— Entendo.
— Um líder confiável é aquele que sabe quando recuar. Você fez a escolha certa — declarou o Mago, dando um sorriso.
— Vamos sair daqui. Já coletamos tudo o que podíamos das paredes, afinal — falou o líder da expedição, dando um leve sorriso.
— Hmm.
Samuel e Ian caminharam em direção à saída com poucos passos. Outros membros do grupo também se viraram para sair, mas Seol Jihu permaneceu parado no mesmo lugar até o fim. Não tinha ideia se alguém discordaria da votação, então acho melhor se mover apenas quando todos já estivessem saindo.
— Você deve estar muito feliz — disse Clara, com um olhar raivoso. — Sim, você deve estar muito feliz agora que pôde manter essa porra de princípio seu.
— Ei. Já deu. — Quando uma maça moveu-se na direção em que estava, a Arqueira assustou-se e deu alguns passos para trás. — Ch-Chohong? Você também?
— A decisão já foi tomada. Pare de reclamar.
— Por que você só está falando isso pra mim?!
— Porque você é a única que continua arranjando problemas — respondeu a Guerreira Divina com o seu característico olhar gélido.
— Chohong. Por favor, pare — pediu o Marca de Ouro.
— Não, calma. Eu só estava…
— Eu sei, eu sei, mas ela não é digna do seu esforço.
— Como é que é?! Hah, você acha que não vai ficar parecido com ela no futuro?! — falou Chohong, após ouvir aquela resposta inesperada do jovem.
— Espere e verá. Em dois anos, não, um ano, você vai se arrepender amargamente por hoje — rosnou de raiva Clara.
— Se você está fazendo previsões, eu também tenho uma. — Deu um sorriso irônico e continuou. — Se você continuar agindo sem prudência alguma assim, vai acabar morrendo mais cedo do que pensa.
— O-O quê?!
— Você devia agradecer o Samuel quando tiver a oportunidade. Não consigo nem imaginar o motivo de um cara como ele deixar alguém tão descontrolada quanto você solta assim.
— P-Pare de me fazer rir! O que você sabe?! Você é só um noob de Nível 1 — provocou a Arqueira após alguns segundos abalada com as palavras que Seol Jihu lhe dirigiu.
— Veremos. Eu acho que contribuí muito mais nessa expedição do que você. — Essas palavras emitiam uma grande frieza, surpreendendo até mesmo Chohong. Ela sempre pensou que o jovem era do tipo comportado, mas aquela foi a primeira vez em que o viu tendo uma atitude assim.
— Pau no seu cu! — gritou Clara, correndo para a saída.
— Ei, Chohong…
— Hã?
— Obrigado.
— Hmph — bufou, virando-se.
Enquanto a Guerreira Divina caminhava para fora do ambiente, deu mais uma olhada para trás e viu o jovem encarando o sarcófago.
“Ele também tem aquele jeito?”
“Feito.”
Havia conseguido manter a promessa com o espírito da mulher.
Seol Jihu colocou o colar de volta no lugar em que estava antes. Em seguida, tirou um pouco da poeira que se acumulava na lápide e saiu.
— Me desculpe por toda a comoção. Se conseguir, volto para te visitar mais uma vez. — Por fim, deu um sorriso, sentindo que um grande peso havia sido removido das suas costas.
Não era como se não entendesse o que Samuel queria dizer. Contudo, levando em relação as cores que enxergou com o “Nove Olhos”, a situação pareceu melhor a situação ter terminado desse jeito.
Dinheiro e fama? Claro, elas soam bem. Todavia, nada podia ser comparado ao valor próprio que conseguiu reconquistar depois de tanto esforço.
Plop.
Caminhou em direção à saída e fechou a porta.