Volume 1
Capítulo 48: Haramark
Continuar ou retornar para Zahrah?
Alex e Hugo debateram por um bom tempo sobre esse assunto. Como o acidente ocorreu no meio do caminho, era difícil tomarem uma decisão. Por outro lado, Seol Jihu não disse nada, pois sabia que tinha pouca experiência em assuntos do tipo, então achou melhor deixar a escolha para os dois veteranos que, após uma longa discussão, foram capazes de chegar a um consenso.
Ambos concordaram que seria melhor seguirem em frente ao invés de esperar por um outro Arqueiro ou uma outra carroça. Apesar de ter ficado um pouco preocupado com tal escolha, decidiu confiar nas habilidades de resistência que adquiriu na Zona Neutra.
— Certo. Nós vamos andando, mas antes é melhor tentar pegar qualquer coisa útil que tenha restado.
— Eu vou dar uma olhada naquela Arqueira, então vocês vão juntando o que conseguirem — falou Hugo.
— Eu vou pegar as adagas que as Toupeiras deixaram cair. Seol, por favor, dá um jeito no Maktan.
Sem muito receio, Alex também logo optou por qual tarefa faria. Assim, enquanto o Sacerdote ia recolhendo as armas do inimigo, Hugo arrastava o cadáver da ex-companheira dos escombros da carroça. Apenas nesse momento o Marca de Ouro entendeu o que estava acontecendo. Eles não estavam apenas pilhando os mortos, como também “roubando” os objetos pessoais deles.
O corpo do carroceiro estava com uma agulha grudada na nuca e os olhos bem arregalados. Sentiu dificuldades para conseguir tocar no corpo, não por medo ou desgosto da situação, mas sim por lástima. Afinal, aquele cara era alguém que havia conhecido há apenas um dia, então não carregava nenhum sentimento bom ou ruim contra ele. No entanto, esse homem continuou com o seu objetivo até o fim, enquanto Seol não cumpriu o que tinha como segurança.
— Hm? O que foi? Tá com medo? — perguntou o Guerreiro, sorrindo, enquanto caminhava em direção ao Marca de Ouro. — Aqui, aquela mulher tava cheia de coisa. Tinha muito mais do que só o arco! Vem cá dar uma olhada — falou, estendendo uma mão cheia de itens.
Por reflexo, pegou-os, mas logo fez uma careta. As flechas, o arco e alguns outros equipamentos defensivos eram úteis, porém viu que o companheiro também havia pegado as roupas íntimas da garota.
Pensando “Impossível”, decidiu se virar e olhar para a Arqueira. Quando o fez, teve a visão de uma mulher completamente nua, com as costas viradas para o chão. Fizeram o mesmo com o Maktan. Apesar do rigor mortis¹ dificultar a movimentação do cadáver, Hugo parecia conseguir lidar com isso com muita facilidade.
— Hugo.
— Hm? Ah, fala, Seol. O que foi?
— Precisa mesmo arrancar as roupas dos corpos? Inclusive as íntimas?
— Claro. Elas não devem valer tanto, mas cada centavo importa — respondeu, como se não tivesse entendido muito bem a pergunta.
— Mesmo assim…
— Mesmo assim o quê? Tá preocupado que um cadáver possa pegar um resfriado ou alguma coisa assim? — falou rindo da própria piada, mas logo depois concluiu o pensamento com um tom de voz mais sério. — Olha, cara. Você precisa ter uma armadura decente se quiser ser reconhecido como um Guerreiro. Quando você upa, precisa comprar equipamento novo, mas o preço aumenta tanto que chega a doer. Dinheiro não dá em árvore, irmão. Nós juntamos tudo que podemos para arcar com os custos das coisas que precisamos.
Agora que ouviu a explicação, até que aquelas atitudes faziam sentido. Porém, um pouco de hesitação ainda permanecia dentro de si.
— Não tem ninguém aqui pra te louvar por ser uma boa pessoa, Seol. O que você acha que vai acontecer se deixar os corpos intocados por aqui? Ou os itens serão danificados à medida que os animais selvagens comem o cadáver, ou alguém vai dar a sorte de encontrá-los e fará a mesma coisa que nós.
— Hmmm…
— Se você se sente culpado, pense desse jeito: você vende essas coisas e consegue uma arma melhor. Assim, quando encontrar Toupeiras da próxima vez, você mata todos. Essa é a melhor forma de acalmar a alma dos mortos. Entendeu?
Após continuar procurando, o Guerreiro conseguiu até achar a bolsa de moedas, o que provocou-lhe um sorriso. Dentre a mistura de cobre e níquel, havia uma única moeda de prata.
— Aqui, toma. — Hugo pegou a moeda de prata e, após analisá-la, jogou-a para Seol.
— Essa é… — Era a moeda que deu a Maktan pela corrida.
— Ei, pode pegar. Ele nem tá vendo.
— Mas…
— Relaxa — disse, enfiando a moeda no bolso do jovem. Então, colocou o dedo indicador entre os lábios e fez “shhhh” com um sorriso no rosto. — E eu também consegui de volta o pagamento que dei pra aquela mulher quando estávamos nos divertindo! Ehehe — riu e, após alguns segundos, completou dizendo que Seol agora também era um cúmplice e que devia manter isso em segredo do Alex.
Em seguida, o Guerreiro virou-se para ir embora. O Marca de Ouro estava prestes a segui-lo, mas logo parou. Ficou um pouco receoso ao ver o corpo nu de Maktan.
“Esse mundo…”
Com cuidado, se aproximou e removeu a agulha. Depois, fechou os olhos do homem morto. Ouviu os outros dois o chamando, então foi em direção a eles.
Hoje, descobriu mais um pouco sobre o que é o Paraíso.
***
Em determinado momento conseguiram sair da floresta e continuaram a seguir em frente. Porém, andar por um dia todo nunca seria uma experiência muito boa. Quando a noite chegou, Seol Jihu acampou naquele mundo pela primeira vez e também ficou de guarda, a última vez que tinha feito isso foi antes de sair do exército.
Na manhã seguinte, acordou todo dolorido. Não havia passado por tamanha dificuldade desde que saiu da Zona Neutra. Falou para si mesmo que isso era algo no qual devia se acostumar e continuou a caminhar sem fazer nenhuma reclamação. Tornar-se amigo de Hugo pelo caminho foi um bônus inesperado. Apesar de parecer irritadiço e esquentado, ao conhecê-lo melhor, o Guerreiro se provou alguém tão amigável quanto Alex.
Por outro lado, Hugo também estava gostando de Seol Jihu. Ele acreditava que Guerreiros deveriam ser fortes, então acabou gostando do jovem que nunca reclamava, mesmo quando a caminhada aumentava de ritmo. Além disso, quando ficava entediado e começava a falar sobre assuntos aleatórios, ele ouvia tudo com muito interesse.
Dessa maneira, o tempo passou e, quando o quarto dia estava quase chegando ao fim…
O trio saiu da área mais montanhosa que se encontravam e passaram para uma região mais plana. No final, podiam ver uma cidade que, apesar da distância, já demonstrava toda a imponência que tinha por meio das suas imensas paredes de pedra.
Era Haramark.
Assim como Maktan havia dito, chegaram lá em quatro dias.
— Assim que chegarmos, vou direto pra parte do “beber, cair e levantar”. E vocês? — gritou assim que viu o destino se aproximando ainda mais. Em seguida, fez o gesto de estar bebendo um copo imaginário.
De cara, Alex disse que precisaria descansar.
— Por quê?! Nos separarmos depois de beber é a melhor despedida possível.
— Você deve ter energia sobrando, já que é um Guerreiro, mas eu sou um Sacerdote. Além disso, preciso ir para o templo fazer um relatório.
— Hã? Não é como se a gente estivesse em uma expedição, então por que o relatório?
— Toupeiras apareceram próximas à Haramark. Isso é algo que precisa ser dito aos outros o mais rápido possível.
— Ahh, tinha esquecido. Verdade — falou, massageando a testa e mudando o olhar para Seol.
— Seol e vo…
— Essa é a sua primeira vez em Haramark, não é? — Interrompeu Alex, antes mesmo que Hugo pudesse terminar.
— É sim.
— Tomar uma gelada não é má ideia, mas a parte do “beber, cair e levantar” não parece ser muito do seu estilo.
— Do quê você tá falando?
— Ah, é só um pub. Um pub com várias funções, se é que você me entende. Mas acho que você só vai descobrir mesmo se for lá ver. De qualquer forma, se também quiser descansar eu posso te recomendar uma taberna que conheço. As pessoas vão lá para descansarem a noite, então até que é bem quieto. Não é lá essas coisas, mas acho que deve ser o suficiente pra você.
— Muito obrigado.
— Não precisa me agradecer. Vamos continuar.
— Hmm… — Hugo fez uma careta.
Seol acabou rindo com a situação. Era engraçado ver um homem tão grande agindo como uma criança mimada.
Ao chegarem em Haramark, o trio se despediu e se separou. Hugo deve ter ficado triste, porque apenas disse adeus e saiu andando por conta própria. Alex grunhiu com a atitude e guiou o Marca de Ouro até a taberna que indicou.
— Estou preocupado com o Hugo.
— Não esquenta. Ele faz o que quer, mas não é do tipo que guarda rancor. Pague uma bebida pra ele depois e eu garanto que ele vai ficar todo feliz.
Após ouvir aquelas palavras, um sorriso formou-se em seu rosto.
Agora que finalmente havia chegado à cidade, queria dar uma olhada em volta, mas estava muito cansado para isso. Ao invés de ficar vagando por aí, queria muito descansar e dormir.
— Bem-vindo a Haramark, meu amigo. — Os dois se cumprimentaram e, por fim, o Sacerdote disse as palavras de despedida. — Espero te encontrar de novo no futuro.
Agora sozinho, Seol Jihu entrou na taberna. Uma senhora, que dormia atrás do balcão, abriu os olhos.
— O que você quer?
— Alguém me recomendou esse lugar, então…
— Sozinho?
— Sim.
— Um quarto de solteiro custa 10 moedas de bronze por noite. Se quiser um lugar melhor, temos quartos especiais, mas esses custam 20 moedas de bronze por noite.
— Me dá o quarto especial.
Após pagar o valor combinado, recebeu uma chave e, guiado pela senhora, acabou no andar superior.
O quarto especial era bem pequeno, mas bem arrumado e limpo. No topo da mesa de cabeceiro, tinha até um pequeno jarro de planta que auxiliava na recuperação do hóspede. Também gostou da mesa de madeira embaixo da janela e das duas cadeiras próximas. Mesmo que não fosse um local tão sofisticado quanto as acomodações na Zona Neutra, o ambiente não era nem um pouco ruim.
Colocou a sua bolsa na cama e, por algum tempo, encarou o teto envelhecido sem fazer barulho algum. Havia passado por problemas para chegar até ali, mas tinha conseguido concluir a viagem sem outras grandes intercorrências. Lutou com estranhos, ficou amigo deles e se separou.
“Mas eu ainda acho que a gente vai se encontrar de novo algum dia.”
Sentia-se um pouco vazio e, ao mesmo tempo, encarava aquilo como parte de uma aventura na qual deveria se acostumar.
Enquanto a cama rangia com o seu peso, foi fechando os olhos. Aos poucos, lembrou da sensação do chão frio abaixo do próprio corpo quando precisou dormir a céu aberto, o que fez com que aquela acomodação se tornasse a melhor possível. Pouco tempo depois, adormeceu.
***
Acordou quando o Sol já estava no meio do céu.
Pensou que despertaria ainda pela manhã, mas acabou perdendo a hora devido à fadiga acumulada dos últimos dias. Contudo, agora sentia-se mais leve e preparado apesar da fome.
Quando abriu a janela, uma leve brisa soprou. Ficou alguns segundos se banhando em ar fresco e olhando para a cidade de Haramark. Enquanto Scheherazade era cheia de construções coloridas, a Cidade do Crime possuía estruturas com poucas cores, que variavam do branco até o cinza e o amarronzado.
“O que eu faço agora?”
Passou algum tempo pensando qual seria o próximo passo até que colocou a bolsa na mesa e sentou-se em uma das cadeiras. Abriu-a e percebeu que haviam algumas coisas diferentes ali dentro.
“Isso aqui. Ele disse que eu conseguiria um dinheiro bom vendendo, não foi?”
O arco tinha sido feito para a guerra — era o item mais valioso de toda a pilhagem que fizeram. Hugo queria tê-lo, mas Alex o ofereceu para Seol como uma forma de consolar o jovem pela sua primeira viagem a Haramark. Além disso, pôde ver que lá dentro ainda tinha cinco adagas, a jaqueta de couro que a Arqueira vestia e uma moeda de prata.
De repente, lembrou-se do fato de Hugo ter dito que aquela mulher tinha três moedas de prata com ela.
“Os Elixires e o Estigma Divino. Será que eu também devo dar uma passada no templo?”
Se dependesse apenas do Estigma Divino, não precisaria fazer essa parada, já que era um item de nível alto. Tal objeto é capaz de marcar o usuário com um traço divino, permitindo que a pessoa receba uma benção, o que pode desbloquear classes especiais e árvores de habilidades. Porém, o indivíduo precisaria passar por testes e desafios enviados pelo deus.
No entanto, não podia ficar parado por muito tempo. Kim Hannah o disse para encarar todo esse processo como um jogo. Se isso fosse mesmo verdade, o que deveria fazer?
“Colher informação.”
Pegando a bolsa, desceu as escadas para o primeiro andar. Antes de sair, devolveu a chave e perguntou à senhora o caminho para a praça principal.
— Quando você sair da taberna, vá para esquerda. Em pouco tempo, irá encontrar uma grande rua. Siga em frente a essa rua e você vai chegar na praça central.
Seguiu as direções que ela indicou, achando a rua indicada logo que saiu daquele estabelecimento.
Sentiu o coração começar a palpitar ao pensar nos tipos de desafios que encontraria em Haramark. Por outro lado, sabia que as coisas funcionavam de um jeito diferente, podendo não funcionar do jeito que esperava.
***
Algumas áreas de Haramark eram completamente diferentes de Scheherazade. Se a capital era considerada vívida e energética, então a Cidade do Crime era, no mínimo, caótica. Se precisasse explicar o motivo dessa descrição, o melhor argumento que poderia oferecer era a pela falta de restrições vigentes em tal lugar.
Várias estruturas foram construídas por toda a extensão do município, mas eram erguidas de maneira tão desorganizada que o deixavam tonto. Em razão dessa falta de padrão, muitas vezes não conseguia se localizar direito. As ruas eram desproporcionais e desconfiguradas, além de muito imundas. Poças de lama podiam ser vistas em quase todo lugar.
“Vou ter dificuldade em me localizar nesse lugar.”
O mais importante era que a atmosfera ali era diferente. Talvez porque tinham lhe dito que o local também era conhecido como “A Cidade do Crime”, a impressão que construiu era a de que todas as pessoas dali possuíam um certo ar sombrio.
Pouco tempo depois de pensar sobre a arquitetura local, passou por uma parede toda rachada e, enfim, chegou a um espaço aberto. A área era circular e estava lotada de pessoas. Os barulhos de conversas apenas lhes deram a impressão ainda maior de caos e confusão. Quando descobriu um quadro de avisos no meio da praça central, os seus olhos brilharam.
“Também tem um desses aqui.”
Caminhou em direção ao quadro sentindo-se feliz sem razão aparente. Quase por instinto, olhou o pergaminho de missão pregado bem no topo de estrutura.
Toupeiras foram vistas próximas a Haramark.
Abaixo de tal solitária linha de texto, havia uma marca de identificação. Nela, estava escrito “Templo da Luxúria, do Sacerdote Investigativo Alex.”
No entanto, quando viu o aviso abaixo desse, ficou chocado.
“Então a senhorita Cinzia também está em Haramark.”
Analisou os outros avisos abaixo, mas não importa qual escolhesse, precisava de completá-los em time. Tentar concluir qualquer missão fora da Zona Neutra sozinho era suicídio.
Não foi difícil encontrar anúncios contratando integrantes. Tinham tantos papéis colados naquele local que um se sobrepunha ao outro.
Requerimento de Sacerdotes Nível 2 ou maior. Recrutamento de Guerreiros Nível 3 ou maior.
“Então eles fazem requisição por Sacerdotes e recrutamento para Guerreiros.”
Contratamos carregador.
“Tinha até mesmo vaga para carregadores?”
— Hmm…
Eram tantos anúncios que o Marca de Ouro chegou a ficar com dor de cabeça. Achar uma missão que pudesse concluir também era algo muito difícil.
Por fim, ativou os Nove Olhos. Não teria problemas em ler todos os pergaminhos, mas seria muito mais fácil com a habilidade.
O quadro de avisos emitiu várias coisas. A coisa que mais lhe chamou a atenção era que a maioria dos brilhos emanados indicavam certo perigo. A cor mais proeminente foi o amarelo, mas também pôde ver papéis laranjas. Tinha até mesmo um pergaminho brilhando em vermelho.
Lambeu os lábios e continuou a procurar. Porém, em determinado momento, hesitou. As suas mãos pararam em um pergaminho que estava escondido abaixo de alguns outros. Quase não o percebeu, pois achou que a cor refletida era amarela, mas logo o brilho emitido por tal pedaço de papel se revelou.
De fato, era um brilho muito bonito.
“Dourado!”
O Mandamento Dourado.
Não esperava encontrar um da cor dourada.
Ficou surpreso quando leu o conteúdo.
Nota:
1 – Rigor mortis (Do latim rigor, rigidez e mortis, morte) ou rigidez cadavérica é um sinal reconhecível de morte que é causado por uma mudança bioquímica nos músculos, causando um endurecimento dos músculos do cadáver e impossibilidade de mexê-los ou manipulá-los.