Volume 1
Capítulo 30: Olhando Para Trás
“O Mandamento Dourado é…”
O significado não era complicado e a frase também não tinha nada muito profundo. Logo, apenas precisava interpretar da mesma forma que ouvia. No entanto, não conseguia estabelecer uma conexão entre o significado da oração com a sua habilidade, “Nove Olhos”. Algo não estava certo.
Assim como as direções “direita” e “esquerda”, devia haver algum significado oculto por trás do nome. Quanto mais pensava sobre esse assunto, mais complicado ficava de entender. No final das contas, passou a noite em claro.
“Eu não consigo descobrir.”
Não conseguia pegar no sono. Em certo momento, Seol cansou de ficar rolando de um lado para o outro na cama e decidiu adiar a investigação que fazia sobre aquele novo poder. Sabia que, melhor do que conseguir chegar a uma conclusão precipitada, precisava achar exatamente como o provérbio se relacionava com a cor dourada que agora era capaz de enxergar.
Imaginou dois jeitos para conseguir solucionar aquele dilema:
O primeiro era abrir a “direita”. Da mesma forma que a “esquerda” estava conectada com “inferior”, as chances de “superior” estar conectada com “direita” eram altas. Se pudesse descobrir quais eram as três cores restantes, talvez fosse capaz de desvendar o significado da dourada.
“Mas eu já comprei todas as Ambrosias…”
O segundo era por tentativa e erro. Ao ficar encarando o teto por um bom tempo, ele desistiu e se levantou.
Quanto mais tempo alguém ficasse na Zona Neutra, mais difícil era perceber o tempo passando. Além de não ter nenhum relógio naquele local, a maioria dos comércios ficavam abertos 24 horas por dia. O celular que recebeu no começo do Tutorial era a única ferramenta que tinha para se manter atualizado em relação ao horário e à data.
05:17
Nesse horário, a sempre tumultuada praça principal no primeiro andar estaria muito mais calma. Pensando na possibilidade de Yun Seora estar lá, ele decidiu descer até o saguão, mas acabou encontrando com outro conhecido.
“Yi Seol-Ah?”
Estava prestes a chamá-la, mas logo parou. A jovem estava analisando o quadro de avisos.
Não parecia que ela estava atrás da missão de corrida. Pela expressão de incerteza que tinha, era provável que ela estava pensando em pegar um pergaminho com uma dificuldade maior do que “Muito Fácil”.
Os ombros dela desabaram, dando a impressão de estar desapontada com alguma coisa, enquanto a cabeça balançava de um lado para o outro, descontente. Decidiu se aproximar.
— Senhorita Seol-Ah?
— Heukyahck?!?! — Quando a chamou, ela levou um susto. Logo virou o rosto para Seol. A expressão de choque se acalmou pouco depois.
— Orabeo-nim!
— Bom dia. Vai tentar a missão da corrida de novo? Tem um tempo já desde que a gente correu juntos. Topa?
— A-ah, bem. Vamos? — Aquela voz parecia relutante. Conseguiu perceber muito bem a hesitação presente na resposta.
— O que aconteceu? Tá passando mal?
— Ah, não! Eu tô bem. É só que não tô me sentindo muito confiante, sabe? Eu não tenho treinado muito nos últimos dias e tal… — respondeu com o rosto corado. O sorriso dela normalmente era do tipo puro e inocente, mas hoje parecia falso. As expressões da jovem também pareciam um pouco cansadas.
“Hmm?”
Com cuidado, analisou a aparência da amiga por um tempo e, por fim, balançou a cabeça. Agora que a observou com mais calma, pôde perceber algumas coisas estranhas. Havia passado pouco mais de um mês desde que as classes foram definidas, mas ela continuava usando o mesmo estilo de roupa. Como tinha encontrado com Shin Sang-Ah e Hyun Sangmin antes, esse detalhe ficou ainda mais evidente.
Quando olhou a Janela de Status de Yi Seol-Ah, percebeu que as aptidões não eram ruins. Mesmo que não pudessem ser classificadas como “Brilhante”, ele se lembrava da descrição de “coringa” ou alguma coisa assim.
— Já tomou café?
— C-claro!! E-eu comi ant…
Resmungo.
Com um timing perfeito, o barulho de estômago vazio ressoou.
— S-se eu quero comer, preciso completar as missões antes… — Muito diferente de antes, a voz da menina agora não tinha mais energia.
Quando desviou o olhar para o quadro de notícias, Seol pôde ver que ela não estava na sessão de “Fácil” e “Muito Fácil”. Os pergaminhos dessas missões já tinham acabado.
“Os irmãos Yi estão sempre ajudando a Seora…”
De repente, lembrou-se das palavras de Hyun Sangmin. Assim, tudo passou a fazer sentido. Não era como se os dois não tivessem PS suficientes. Eles simplesmente não conseguiam, pois estavam tomando conta de Yun Seora. No intuito de conseguir concluir um objetivo que recompense o suficiente para viver na Zona Neutra, é necessário que o sobrevivente tenha equipamentos e habilidades condizentes com a classe. Caso contrário, a morte é certa.
Ao diminuir a dificuldade, a recompensa também decai muito. Porém, em algum momento, torna-se possível conseguir uma quantidade razoável de pontos. O problema era que eles gastavam esses pontos cuidando de Yun Seora. Como consequência, acabavam em um caminho sem saída. Yi Seol-Ah saiu do Tutorial com apenas 46 pontos e Yi Sungjin com 114. Como não tinham nenhum suporte a mais, a situação de ambos deve ter piorado muito com o tempo.
“Merda. Eu não precisava fazer aquelas missões…”
Tinha decidido não cometer o mesmo erro na caça ao tesouro, mas mesmo assim o fez. Disse a si mesmo para se controlar, mas não adiantou. Só precisava prestar um pouco mais de atenção. Como podia ter falhado tanto ao pensar na possibilidade de prejudicar outros sobreviventes?
— Me desculpa.
Ao ouvir aquele pedido de perdão, os olhos da jovem se arregalaram. Era óbvio que ela também sabia. Não tinha como não ter ouvido os rumores de Seol do jeito que eles se espalhavam pela Zona Neutra.
— N-não precisa se desculpar!
— Eu errei. Fui eu quem terminou com todas as missões mais fáceis.
— Orabeo-nim, não diga isso. Aqueles pergaminhos não são meus nem nada do tipo
Vê-la tentando melhorar a situação fez com que o peso em sua consciência piorasse. Ela disse que não tinha treinado muito nos últimos dias, mas aquilo não era verdade. O mais provável era que estava muito ocupada tentando sobreviver.
— Eu ouvi dizer que vocês estão cuidando da senhorita Seora.
— Ah, i-isso, quer dizer… — A boca de Yi Seol-Ah abria e fechava. Ela não sabia o que dizer. Parecia que estava perguntando “Como descobriu?”
— Tem quanto tempo?
— B-bem, depois que entramos na Zona Neutra. A-acho que uns dez dias depois…
“Bem mais do que um mês.”
Ela podia ter pedido ajuda, pelo menos uma vez. Mas não falou nada, mesmo quando se encontraram na pista. Também não mostrou nenhum sinal de dificuldade. Se não o tivessem contado da situação, talvez nunca descobriria.
“O que é que eu faço agora?”
Mesmo sem ter dado uma resposta certa para Kim Hannah, já planejava ajudar. Pensava que não seria ruim retribuir à mulher que o convidou, pois tinha recebido muitos benefícios por ser um Marca de Ouro. Porém, não tinha pensado nos irmãos Yi. Claro, se começasse a ajudar Yun Seora, a situação dos dois melhoraria muito, mas era tarde demais. As outras pessoas estavam muito à frente. Será que os dois conseguiriam juntar 1000 pontos até o prazo?
Enquanto analisava a bagunça de pensamentos que tinha, pôde confirmar a classificação que recebeu como “Caótico” mais uma vez. Mesmo que achasse que conseguiria ajudá-los de algum jeito, uma parte de si não queria se envolver e apenas continuar a fazer as missões.
Deveria ajudá-los ou não? Com mais um dilema, decidiu fechar os olhos. Foi quando lembrou da cena de dois meses atrás.
“Vamos correr juntos!!”
A cena de uma garota indo o consolar depois de ver como ele estava abalado. Era uma garota que nunca tinha esquecido o seu salvador e que tentava o retribuir de todas as formas.
Então, também começou a pensar no verso bíblico que Kim Hannah disse.
Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles façam por vocês.
Começou a tentar encarar tudo a partir do ponto de vista dos irmãos. E se passasse por uma situação parecida a que eles, ou até mesmo Yun Seora está passando? Com certeza iria desejar ajuda.
“Eu nunca interpretei essas palavras como bobagem altruísta. Elas são muito mais próximas do conceito de ‘dar e receber”
Mesmo que por pouco, começou a entender de onde aquele sentimento vinha.
Talvez…
Talvez haja um futuro,um futuro no qual ele precisaria de ajuda de alguém. Será que a garota na sua frente seria esse “alguém”?
Não, aquilo não importava. O importante era como se sentia independente da vantagem que poderia ter. Não sabia o motivo, mas queria auxiliá-la.
Não estava lidando com um desgraçado como Kang Seok. Sabendo das dificuldades que alguém tão altruísta passava, não podia mais se fazer de cego.
“Não é como se eu estivesse passando necessidade também, né?”
Naquele momento, abriu os olhos e falou com ela.
***
Começaram a correr na pista.
Terminou o número de voltas primeiro e a esperou. Vendo que ela estava muito próxima da linha de chegada, ele acenou tentando encorajá-la. Ela conseguiu chegar mais perto, mas, logo antes de terminar o percurso, ela caiu no chão.
— São só 30 voltas. Não sabia que você era tão sedentária.
— Doping não vale!
— Já te disse que não é doping. — Enquanto se defendia, Seol lembrou de quando recomendou que ela comprasse a poção de Competência, mesmo que já suspeitasse das dificuldades que a jovem passava. A consciência pesou. — Como se sente depois de correr um pouco?
— Tô melhor. — Yi Seol-Ah deu um sorriso no chão e, ao mesmo tempo, tentava regular a respiração. Mesmo que ela tivesse sido forçada a entrar ali, parecia não estar zangada.
— Bem, posso fazer você se sentir melhor ainda?
— Como?
Na Zona Neutra, era permitido a transferência de Pontos de Sobrevivência. Decidiu mandar 200 para a conta dela.
— An?! 200 pontos?
— Você completou uma missão, certo? Tem que ter recompensa — disse em um tom de brincadeira, mas a expressão dela mostrava o quão surpresa estava.
A surpresa fez com que ele ficasse ainda mais nervoso. Por quantas dificuldades ela passou por ficar tão chocada com míseros 200 pontos?
— O que seu irmão tá fazendo agora?
— Ah, Sungjin? Deve acordar daqui a pouco, eu acho.
— Então vai atrás de um café da manhã bem bom pros dois. Com 200 pontos vocês devem conseguir pagar um.
— S-só um? Se eu guardar, acho que consigo fazer render por uns dez dias…
— Não, você não vai guardar. Vai gastar tudo de uma vez só. Todos os 200 pontos. — A cortou logo.
Por um tempo, ela não disse nada. Apenas o encarou com uma expressão confusa, já que ainda não tinha processado tudo.
— Depois que comer, vem com o seu irmão pro meu quarto. Ah, você sabe onde eu posso achar a senhorita Seora?
— O-orabeo-nim, por quê? — Ela se levantou do chão. Parecia que ainda não conseguia dizer se aquilo era um sonho ou não.
— Porque eu sou grato?
— G-grato pelo quê? E-eu não fiz nada…
— Como assim não fez nada? Você correu comigo há um tempo atrás. Não tá lembrando? — disse, coçando a bochecha enquanto a jovem ainda tentava balbuciar alguma coisa.
Apenas correndo com Yi Seol-Ah ele conseguiu entender toda a sua fraqueza. Daquele dia em diante, focou em ficar mais forte. De certa forma, foi pela intervenção dela que ele começou a treinar até ficar do jeito que está agora.
Ela ficou um tempo em silêncio. Os lábios se abriram e fecharam algumas vezes, mas nenhum som saiu.
— O-orabeo-nim. — Conseguiu falar.
— Sim?
— V-você pode ficar de costas só um pouco?
— Claro. Mas por quê?
— E-eu quero chorar, mas tenho vergonha.
Sorriu. Era o jeito que ela achou de demonstrar gratidão.
— À vontade.
Porém, no momento em que se virou, a ouviu chorar muito. Tomou um susto e logo se virou. Atrás dele Yi Seol-Ah agachada derramando lágrimas de gratidão.
“Ela tá chorando mesmo?!”
Dessa vez, foi ele quem entrou em pânico.
***
Depois de deixá-la em casa, decidiu ir para o quinto andar. De acordo com a explicação da amiga, Yun Seora passava a maior parte do tempo em um abrigo que ficava naquele piso.
No começo pensou que, como o local era chamado de abrigo, não seria tão ruim, mas…
— Puta que pariu…
Assim que chegou, teve de retirar o que disse. O ambiente era bem espaçoso e aberto, mas havia apenas cadeiras ali. Não conseguiu imaginar como aquele lugar ganhou tal nome.
Quando empurrou uma porta de vidro e entrou, conseguiu ver uma mulher sentada em um canto, toda encolhida, vestindo um capuz cobrindo a cabeça
“Aqui é bem frio.”
Enquanto se aproximava com passos fortes, ela não fez nem menção de se mover. Devia estar em um sono profundo.
Zzzzzz…
Ouvindo aquela leve respiração, abaixou-se para encará-la de perto. Ao ter uma visão mais clara do rosto da pessoa, ficou mudo. A aparência de Yun Seora também tinha mudado muito desde o tutorial, só que para pior.
As bochechas, antes pálidas e lisas, agora estavam amareladas e afundadas. A cintura era tão fina que quase conseguia ver os ossos.
— Senhorita Seora? — Chamou, colocando a mão no ombro dela. O corpo retesou um pouco. — Senhorita Yun Seora? — Quando a balançou um pouco…
— Ah-ahck! — De repente, ela respirou fundo, parecendo que estava tendo um pesadelo. Com pressa, escondeu o rosto com a mão esquerda e encolheu ainda mais.
— Que porra…? — Pensou que estava olhando para uma criança vítima de abuso tentando não ser mais violentada. Assustado, deu um passo para trás. — Você tá bem?
— Euheuhah…!
— Senhorita Seora?
— Uh, hmm? — Abruptamente, levantou a cabeça. Um par de olhos foscos o encarou. — Huuua… — Ela resmungou alguma coisa e voltou a se encolher.
Quando a chamou de novo, não obteve resposta.
“Ela tá inconsciente?”
Não, o estado de saúde era muito precário para poder falar que aquilo era apenas inconsciência.
Sem muito esforço, a levantou.
“Quanto será que ela emagreceu?”
Ao sair do abrigo do quinto andar, Seol foi direto para o seu quarto. Pensou que, como o lugar em que ficava era capaz de restaurar o vigor de alguém mais rápido do que o normal, lá era o melhor lugar que poderia ir.
Depois de colocá-la na cama, sentiu-se vazio. Não havia imaginado que a condição da amiga era tão ruim. Talvez até o superior que pediu o favor para Kim Hannah não soubesse da situação lamentável que ela se encontrava.
“Deixa eu conferir os status antes.”
Ativou o “Nove Olhos”.
— Fodeu…
Confirmou pela Janela de Status. As condições de Yun Seora eram péssimas.