Volume 1

Capítulo 9: Duas semanas antes

                  Vilarejo Mioria

O sol nasceu no vilarejo de Mioria. Os escravos acordavam para mais um dia de trabalho, ainda não crentes da informação que os capitães haviam lhes transmitido. De que eles em breve entrariam em guerra, pior, alguns deles estariam na linha de frente.

Com o desânimo no rosto, a vida não fazia mais sentido, os Miorianos perambulavam o vilarejo em direção aos seus campos de trabalho. No entanto, ao chegarem em seus respectivos trabalhos, nenhum oficial com chicote em mãos se encontrava lá. O esperado era que os oficiais, os responsáveis por supervisionar o trabalho dos escravos, estivessem lá, mas não estavam, sequer um.

— O que será que aconteceu? — perguntou Miomura enquanto segurava uma enxada em mãos.

Próximo a ele, estavam alguns dos seus companheiros de trabalho e amigos. Thomas, um rapaz de olhos negros, que possuía um cabelo que misturava as cores castanho e preto. Usava uma camisa castanha que deixava seus músculos a mostra. Ele era o jovem que sempre andava em desavenças com  Miomura desde sua tenra idade.

Ao lado de Thomas se encontravam dois jovens. Um deles se chamava Germine. Possuía olhos negros e uma pele cheia sardas, que o destacava dos demais. Agora o outro, se chamava Jota. Tinha cabelos negros e de longe era o mais calmo e calado, mas isso se devia aos seus dentes que assemelhavam aos de coelhos.

E por fim, lá estava Gabriel segurando sua enxada enquanto os seus olhos castanhos recaíam sobre o seu amigo Miomura.

— Os oficiais não vieram, burro — emitiu Thomas, trocando olhares com o seu maior rival.

— Até isso eu percebi, seu peixe.

— Então não pergunte, idiota.

— Ei! Não comecem vocês dois — disse Gabriel, que estava no meio; entre eles, segurando seus peitorais para que não entrassem em choque.

Hum... Se tivessem te decapitado ontem, eu ficaria feliz. Assim, não ouviria mais essa língua cumprida destilar o veneno.

— Digo o mesmo. Estar morto é melhor que encarrar esse seu rosto feioso!

— Repete! — gritou Thomas, pegando a mão do Gabriel que estava encostada no seu peito. Os dois amigos do Thomas apenas gritavam, com as mãos ao redor da boca, em apoio ao seu amigo.

— Ei, chega! — gritou Gabriel, empurrando os dois com suas mãos fortes. Ambos retrocederam, caindo sobre o chão ao escorregarem no lamaçal.

— Bem feito! Será que vocês não percebem que a guerra pode ter começado?! E eles não disseram nada.

Gabriel cruzou os braços. Seus olhos severos desceram sobre aqueles dois e contemplaram as manchas enegrecidas tomar conta das vestes marrom deles.

— Acho pouco provável. — Miomura se levantava enquanto coçava seus cabelos. O marrom escuro se misturava com o marrom-claro de seus cabelos. — Se não teriam vindo nos buscar.

— Pois é, o idiota tem razão — disse Thomas enquanto se levantava. — E agora fiquei sujo!

— Então... O que faremos? Voltamos para casa? — questionou Miomura, limpando a lama das mãos na sua calça.

— Aguardemos mais um pouco — disse Gabriel. — Talvez eles estejam apenas atrasados.

Então os rapazes aguardaram. Alguns dos Miorianos começavam agora por voltar como não havia nenhum oficial por perto. Depois de tanto tempo de espera, Miomura e seus amigos decidiram retornar as suas casas. No entanto, Miomura teve a louca ideia de espreitar o que estava acontecendo na cidade de Aclasia para os oficiais não comparecerem.

— Louco! — afirmou Gabriel.

— Demente! — assentiu Thomas.

— Suicida!— confirmou Germine.

— É... Louco? — repetiu Jota.

— É só uma espreitada! — insistiu Miomura. — É só para conferir o que aconteceu para os oficiais não virem ao trabalho.

— Você quase morreu ontem! — gritou Gabriel enquanto franzia o cenho. — O que tem nessa sua cabeça? Hã? Não basta o teu nome estar na lista negra dos capitães!

Ah, se eu vou morrer mesmo... — Miomura olhou seriamente para Gabriel. — É melhor fazer o que eu bem entender mesmo!

— Gabriel, o seu amigo tem os parafusos na cabeça? — perguntou Thomas.

— Eu acho que... Que algo o possuiu. Não é impossível... — Germine arregalou os olhos. — Ele não teme a morte.

Jota assentiu com a cabeça enquanto lançava um olhar estupefato para Miomura.

— Digam o que quiser... — Miomura saiu correndo dali. — Mas eu vou!

— Miomura! Espera! — Gabriel tentou correr, mas Thomas segurou seu braço fortemente para que ele não seguisse seu amigo. — Me solta, Thomas!

— Seu amigo já era... — disse Thomas. — Ele já tem a vida sentenciada pelos capitães. Não importa o que faça, não poderá fugir da morte. Deixe-o ter o fim que ele quer ter.

— O que você diz...?

— Se você for atrás dele, morrerá.

— Ele é... Ele é o meu amigo. Eu não o posso deixar.

— Pense na Maria, Gabriel! Você quer mesmo deixá-la sozinha?! — continuou. — Escuta, pelo menos temos chance de sobreviver nessa guerra, já ele não.

— Me solta — a voz do Gabriel ressoou baixinho. Thomas o soltou. Gabriel ficou estático. Ele sabia que Thomas estava certo. Não havia nada que ele pudesse fazer para salvar a vida do seu amigo, não depois das palavras proferidas pelo capitão.

— Ei! — uma voz feminina gritava. Era uma baixinha com longos cabelos bagunçados, que se aproximava a passos lentos. Ela balançava o braço de um lado para o outro, tentando chamar a atenção dos rapazes com o rosto abatido.

— Coitada da irmã — disse Thomas com um olhar de pena. — Vai perder o pai e o irmão de uma só vez.

— Cala boca, Thomas...

Enfim, depois de tanta andança, Yara havia finalmente chegado ao seio dos rapazes.

— Por que estão com cara de peixe morto?

Gabriel permaneceu em silêncio. Tentava reunir palavras para dizer a Yara que o seu irmão havia partido a cidade Aclasia.

— O Miomura, onde ele está?

Ela varreu seus olhos verdes por aquele espaço e não o encontrou.

— Morto — declarou Thomas. Aquela simples palavra foi o suficiente para abalar o coração de Yara. Ela caiu de joelhos e Gabriel partiu em agressão ao Thomas por proferir uma palavra tão dura quanto essa.

— O que pensa que está fazendo? — Gabriel, que havia derrubado o Thomas no chão, agora estava prestes a esmurrar seu rosto enquanto lançava uma respiração acelerada sobre a face do garoto.

— O meu irmão... — sussurrou Yara, vertendo algumas lágrimas dos seus olhos verdes.

— Ele está vivo! — disse Germine, tocando um dos ombros da Yara em um gesto de conforto.

Yara ergueu os olhos esperançosos, encontrando os de Germine.

— Não por muito tempo. — Thomas olhava para Yara, que estava de joelhos. Gabriel estava quase perdendo a paciência com as palavras que Thomas proferia. Mas sabia que, no fundo, ele estava certo. Com a restrição de que nenhum escravo podia entrar na cidade de Aclasia, a não ser a trabalho, era morte certa para Miomura.

— Verdade? — perguntou Yara, recolhendo as lágrimas. Usava a gola de sua camisa para as limpar.

— Sim — assentiu. — O Thomas só falou aquilo porque o Miomura foi a cidade de Aclasia. E todos sabemos o que acontece com quem coloca os pés por lá.

— Eu vou atrás dele! — Yara recolheu os joelhos e colocou-se de pé.

— Você é a única da família que não foi sentenciada a morte, Yara. Por que desperdiçar essa oportunidade de viver? Além do mais, mulheres nem estarão participando da guerra — argumentou Thomas. — Tenho que admitir que até eu te invejo neste momento.

— Cala boca, Thomas! — Yara cerrou os lábios enquanto despejava algumas lágrimas sobre o solo. — Cala a boca!

Thomas ficou em silêncio. Yara correu em perseguição ao seu irmão.

— Não! — Gabriel saiu de cima de Thomas e perseguiu Yara. — Espera, Yara!

Yara não queria parar, suas lágrimas voavam ao som do vento. Gabriel gritava com a mão direita esticada ao vento, enquanto corria, tentando impedi-la de perseguir seu irmão.

— No fim, todos vão virar cadáveres — emitiu Thomas, levantando-se do chão. — Bando de idiotas suicidas!

— Quando isso foi ficar assim? — indagou Germine em choros. — Quando?

— Quando nascemos nesse mundo, germine. Quando nascemos Miorianos... — Thomas lamentou. Jota acompanhou o Germine em seu choro melancólico. Ambos choravam pelos seus amigos, temendo a sua provável morte logo que adentrassem na cidade de Aclasia.

                               (...)

Ao passo que, neste momento, Miomura se aproximava das grandes muralhas que estabeleciam fronteira entre o seu vilarejo e a cidade de Aclasia.

— Já que eu vou morrer mesmo, é melhor conseguir umas espadas... Para pelo menos eles puderem se defender! — declarou Miomura. A correria havia lhe feito transbordar suor. Suas vestes, além de sujas, estavam encharcadas. — Custa o que custar!

Por outro lado, enquanto Miomura se aproximava cada vez mais das muralhas de Aclasia, Gabriel alcançava Yara numa corrida incessante. Ao mesmo ritmo que os seus pés, Gabriel segurou um dos braços da garota. Yara travou, tentando correr. A mão de Gabriel segurava tão forte que chegavam ao ponto de deixar uma marca em seu pulso.

— Me solta! — bradou Yara, movendo a boca ao punho de Gabriel, que segurava  seu braço.

— Me escuta primeiro!

Yara parou de resistir. Gabriel soltou seu braço, e ela caiu de joelhos.

— O meu irmão... Eu não posso deixar ele morrer.

— Eu também não posso deixar o meu melhor amigo morrer — emitiu Gabriel, mordendo os seus lábios com um semblante desfalecido. — Mas não podemos agir com impulso tal como ele.

— O que sugere que façamos então?

— Primeiro devemos limpar nossas lágrimas e parar de correr. — Gabriel passou a mão em seus olhos. — Imagina entramos na cidade de Aclasia desse jeito, na correria. Seremos facilmente pegos.

— Você tem razão. — Yara enxugou as lágrimas com o braço e levantou-se. — Assim está melhor?

— Muito! — Gabriel sorriu.

— Agora precisamos nos apressar para alcançá-lo. Se não, o pegaram... — Yara reprimiu as lágrimas que insistiam em jorrar dos seus olhos.

— Eu não vou deixá-lo morrer. Aquele idiota... Ele tem esperança de que seremos livres, mais do que qualquer um. Ele vive me iludindo com essa esperança, mas às vezes eu chego a acreditar! — emitiu Gabriel.

— Vamos resgatá-lo então!

E assim, Yara e Gabriel partiram ao resgate de Miomura. Dessa vez, com passos cuidadosos e bem calculados.



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