Volume 1

Capítulo 10: Confronto com o soldado

Depois de uma longa caminhada, Miomura havia chegado perto das muralhas que faziam limite com o vilarejo. Havia lá um soldado sentado sobre uma cadeira a guardar o portão principal que dava acesso à cidade de Aclasia.

Miomura o observava a uma certa distância. Ele polia sua preciosa espada com um pano, enquanto movia a boca. Parecia estar falando sozinho, mas Miomura não sabia dizer o que era.

Com um soldado ali, ele não tinha como transitar a cidade de Aclasia.

— Droga! — Miomura franziu os lábios e cerrou os punhos. Seus planos de espionagem haviam sido frustrados. Ele ficou ali observando o soldado por algum tempo, enquanto pensava em algo para tirá-lo dali.

Não havia muito o que fazer. Ele estava desarmado e mesmo se estivesse armado, lutar contra um soldado resultaria em fatalidade.

— Esse povo... — Miomura segurou uma pedra gigante em mãos. Franzindo o punho, começou a esmigalhar enquanto cerrava os dentes. — Essas terras são nossas. Ladrões. Assassinos. — Erguendo o punho enquanto o observava de cenho franzido, Miomura decidiu fazer algo imprudente. Ele decidiu arremessar aquela pedra em direção ao soldado. A morte não mais o assustava, não depois da sentença de guerra que caiu sobre seu povo.

Naquele momento, ele percebeu que de nada valia ir à guerra sem preparo.

— A minha guerra começa agora! — Miomura arremessou a pedra. Ela percorreu o vento em uma rajada.

O soldado, que tinha os olhos postos na espada enquanto a pólia com um sorriso no rosto, percebeu a pedra tarde demais, quando diante da sua face. A pedra o acertou na testa e o sangue começou a jorrar.

— MAS QUEM FEZ ISSO? — O soldado gemeu de dor e levantou-se da cadeira enquanto pressionava a mão na testa.

Seus olhos vagavam pela área entorno, procurando o dono de tal pedra, mas nada avistava, se não alguns pedregulhos e um pouco de relvado.

— Um escravo? — Ele retirou a mão manchada de sangue da testa. — Apareça, imundo!

Como o proprietário não se pronunciava, o soldado decidiu iniciar uma buscar por aquela área.
Ele caminhava, a passos lentos, investigando aquela região com os olhos.

Ao passo que Miomura se escondia em um dos pedregulhos. Seu coração era tomado por altas batidas a cada passo que o soldado dava em sua direção.

Ele tomou a decisão de distrair o soldado, arremessando outra pedra para o lado direito.

Uma pedra percorreu uma trajetória retilínea, tombando no lado oposto ao seu. O soldado, percebendo aquele pequeno som ecoar de um dos pedregulhos, correu imediatamente para lá.

Neste mesmo instante, Miomura tinha em mãos um bastão de ferro enferrujado, ao qual, por mero acaso, havia encontrado sobre aquela areia. Enquanto o soldado se preparava para desvendar o culpado pelo galo na sua cabeça, Miomura levantava-se nesse momento e aproximava-se do soldado enquanto ele estava de costas.

No entanto, a tentativa de apunhá-lo pelas costas falhou miseravelmente. Miomura não conseguiu conter o som dos seus pés. No mesmo instante, o soldado virou-se e contemplou o rapaz de vestes em farrapos. Sua espada foi imediatamente direcionada ao ferro enferrujado. O punho de Miomura retrocedeu, e alguns estilhaços de metal desceram ao chão.

— Escravo imundo! — O soldado franziu o cenho. — Não teme a morte, não é?

— Estou apenas me preparando para a guerra! — Miomura retrocedeu e recuou o ferro. Observava o soldado a curtos metros.

Hahahaha! — O soldado riu, observando de baixo para cima aquele escravo corajoso. Era magrinho e não aparentava ser forte, e mesmo assim, ainda o desafiava. — Entendo. É só mais um desesperado. Se queria morrer de maneira honrada, escolheu a melhor forma! Eu me encarregarei de levar sua cabeça aos seus familiares.

Miomura segurou firme o ferro enferrujado.

— Seu miserável!

O soldado, com um sorriso no rosto, atacou Miomura. No primeiro contato, o ferro e o próprio jovem caíram. Não haviam resistido ao impacto da força. O soldado riu da cara dele, enquanto o observava de cima para baixo.

O jovem franzia o cenho, e cerrava os punhos.

— Primeiro, irei te fazer sentir um pouco de dor.

Quando o soldado estava prestes a direcionar a espada ao olho de Miomura, uma pedra acertou o punho que segurava a espada. A espada caiu, e o soldado gemeu de dor.

— Mais... Imundos... — O soldado obsevava dois jovens próximos, na correria dos seus pés. Ambos seguravam pedras extremamente duras. E não tardaram em atirá-las contra ele, dando início a uma enxurrada de arremessos de pedras.

O soldado colocou os braços cruzados contra o rosto enquanto era bombardeado por aquela enxurrada de pedras. Não havia espaço para pegar a espada, então ele buscava distanciar-se cada vez mais.

Ao passo que Miomura, que estava jogado no chão enquanto era acertado por algumas pedras, pegou a espada do soldado e levantou-se.

Por um instante, o soldado direcionou os olhos arregalados ao jovem que empunhava uma espada em mãos. Todavia, tarde demais, a espada havia sido cravada em seu abdômen.

Miomura arregalou os olhos. Trémulo pelo que havia feito, ele largou a espada cravada no corpo do soldado e se distanciou dele a lentos passos.

O soldado cuspiu sangue e caiu de costas enquanto segurava a espada.

— Miomura!

O jovem pôde ouvir o grito familiar. Ao virar, avistou sua irmã e seu melhor amigo.

Ao chegar perto do Miomura, um espanto tomou conta de seus rostos pela visão horrível que tinham.

— Ele está sangrando... — Chocado, Gabriel observava o soldado fechar os olhos. Miomura havia cravado fundo a espada. Pelo polimento que o soldado fazia, ela estava tão afiada que perfuraria com facilidade uma carne.

— Você está bem?!

Yara abraçou o irmão e chorou sobre os seus ombros.

— Imundos...  — O soldado fechou os olhos.

— Miomura... — Gabriel direcionou os olhos ao amigo que se via envolvido no abraço confortável da irmã. Miomura desprendeu-se daquele abraço e observou o soldado.

— Ele... Ele está morto?

Yara achegou-se ao peito do soldado e escutou alguns padum padum padum.

— Ele ainda vive.

— O que você tem na cabeça?! — gritou  Gabriel enquanto franzia o cenho para o  amigo. — Olha a emburrada que nos metemos por sua causa!

— Não tem jeito... — disse Miomura. — Deixemos ele morrer. Esses soldados mataram muito de nós. Eles... merecem também morrer!

Miomura, apesar de possuir um imenso ódio pelos Aclasianos, por algum motivo, estava mexido com aquela cena. Ele nunca tinha tirado a vida de alguém antes.

— Para começar, você não devia ter aberto essa boca para falar nada naquele dia! Custava ficar calado?!

— Muito. Custava muito! — Miomura cerrou o punho. — Eles fazem de nós objetos. Nos forçam a trabalhar. Quando bem entendem, nos batem, nos castigam e nos matam. Será que somos menos seres humanos que eles?!

— Nós não somos nada, apenas isso. Fomos destinados a isso, no momento em que nascemos — disse Gabriel em um tom baixo enquanto encurvava a cabeça.

Ao passo que, neste momento, Yara removia a espada encravada nas entranhas do soldado. Ele podia ser inimigo, todavia ela não o deixara morrer. Desde sempre sua mãe havia lhe ensinado que não importava o que acontecesse, uma vida continuava sendo uma vida. Toda vida era sagrada, e ninguém tinha direito de tirá-la.

— Deixe-o, Yara — disse Miomura.  — Se ele sobreviver, nós morremos.

— Assim você se tornaria um assassino, não?

— Eu não me importo. Na guerra... teremos de matar, de qualquer jeito. É uma escolha inevitável!

Yara terminou de retirar a espada e a colocou sobre o chão. Sangue escorria do ponto em que a espada havia penetrado; na região do umbigo. O soldado gemia, e seu corpo estava tremilicante.

— Vamos enterrá-lo — disse Gabriel. — Antes que... alguém chegue.

— Tive uma ideia melhor. Eu vou usar as vestes dele. —  Miomura olhou para o amigo, que lhe fazia um rosto abatido.

— Para... O que? — perguntou Gabriel.

— É muito arriscado. — Yara rasgou um pouco das vestes do soldado e enrolou em massa nas mãos. Em seguida, pressionou o pano sobre a ferida. — Eu não vou permitir.

— Não me diga que...

Percebendo o que Miomura tinha em mente, Gabriel arregalou os olhos.

— É isso mesmo, eu vou usar as vestes do soldado para me infiltrar na cidade de Aclasia. Assim eu conseguirei espadas e armas para o nosso povo!

— Não seja louco! — gritou Gabriel. — Chega! Chega de se colocar em perigo! Se não tem amor pela sua vida, tenha pelo menos pela dor deles!

— Eu não quero perder tempo discutindo contigo, Gabriel. Se não percebe o próprio rei nos sentenciou a morte. —  Miomura se dirigiu ao amigo e tocou em seu ombro, bruscamente, com um olhar intimidador. — Ou acha que na linha de frente a alguma chance de sobreviver sem espadas!? Hã?? Seremos como gados entregues ao matadouro!

Confrontado com aquelas palavras, Gabriel retirou as mãos de Miomura do seu ombro.

— Faça o que você quiser. Eu não me importo mais com nada. Na verdade, eu não sei mais de nada.

Miomura passou pelo Gabriel. Ambos entreolharam-se entristecidamente.

— Me entenda, Yara... — Miomura caiu de joelhos e tocou o ombro da irmã, que tentava estancar o sangue do soldado, desesperadamente. — Eu preciso fazer isso. Lembra do mago do livro que eu costumava ler?

— Isso é a realidade. Aquilo ficção. — Yara cerrou os lábios, continuando a pressionar o pano contra a ferida do soldado. — Não confunda as coisas.

—  Ele se sacrificou pelos seus amigos para dar a eles alguma chance de vitória.

— Você não pode estar falando a sério. — Os olhos de Yara começaram a lacrimejar. — É sério. Quem você pensa que é para servir de sacrifício?

— Alguém que tenta ser diferente. Grandes pessoas são lembradas por suas diferenças.
Mamãe que disse.

— Mamãe não está aqui. Não tome as palavras delas como coragem para se suicidar por... Nada.

— Mas quem falou em suicídio?

Yara parou de pressionar o pano e olhou para o irmão.

Hã?

— Eu vou sobreviver. Custa o que custar, eu vou sobreviver. Eu vou desafiar as correntes da morte!

— Irmão tolo...

Convencida pelas palavras do irmão, Yara deixou os primeiros socorros para mais tarde e começou a despir as vestes do soldado.

Após a retirada da roupa do soldado, deixando-o apenas com sua cueca íntima, Miomura despiu suas vestes e colocou as vestes daquele soldado. Por sorte, ele estava quase na altura daquele soldado e o seu corpo também, era comparado ao do mesmo, então a roupa do soldado lhe assentaria como uma luva.

Uma túnica avermelhada, articulações revestidas de estilhaços de metal, couraça de prata e um cinto largo que cercava a sua cintura, tudo isso era o que compunha a armadura que Miomura trajava agora.

— Eu estou indo... —  Miomura sorriu. E sua irmã o abraçou fortemente enquanto deitava algumas lágrimas dos seus olhos verdes.

— É melhor você voltar vivo. Ou eu, vou a sua atrás até onde quer que esteja!

Ah, promessa é dívida! — Miomura sorriu, desprendendo-se daquele abraço.— Eu voltarei com muitas armas para o povo!

— Só que... — disse Yara, esfregando seus olhos. Gabriel ainda estava parado ali com o rosto desfalecido. — Podem estranhar o tanto de arma, se você as trouxer... Digo, não só o povo, os soldados também.

— É só usarmos no dia da guerra!

— Isso ainda tem suas falhas. Mas vai lá, eu vou confiar — Yara riu. — Acho que estou virando a Maria! Cheia de fé!

— Bom, é melhor eu ir — disse Miomura, direcionando os olhos ao Gabriel. — Peço que por favor, ajude Yara a esconder o corpo em um lugar bem longe! — E começou a correr. — E também, cuide dela!

— Louco — declarou Gabriel.

E assim, numa longa correia, Miomura atravessou o portão que dava acesso a cidade de Aclasia.



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