Volume 1

Capítulo 46: Eu sou uma guerreira!

      Meses depois daquele incidente

Na beira do rio Aclá, em meio ao som das águas escorrendo, uma menina, envolvida em sua armadura platina, estava deitada sobre a face da terra. Ela balançava os pés de um lado para o outro enquanto fitava as letrinhas negras daquela página dourada.

— Justo quando o protagonista apareceu para salvar a donzela, é que acaba! Que final ridículo! — Helena reclamou, fechando o livro com força. — Preciso imediatamente da parte dois!

Suspirou, olhando para aquela correnteza de água com seus olhos verdes.

Ah…

Um vento soprou-lhe, balançando o rabo de cavalo tecido por suas madeixas douradas.

— Que dia mais chato…

Helena voltou a suspirar, mas logo passos de uma pessoa se aproximando roubaram sua atenção. Ela imediatamente deu um salto, assumindo uma postura ofensiva contra a pessoa que se aproximava, contudo, voltou a sua guarda baixa por ver de quem de fato se tratava.

— Você?

— Parece que nos encontramos novamente.

Era o rapaz que havia conhecido há alguns meses quando havia saído da capital para procurar por um ex soldado acusado de tráfico de armas.

Ele estava envolvido em uma túnica azul com cardaços envolvendo a altura do peito, enquanto um cinto largo circundava sua cintura. Suas calças eram negras, em contraste as suas sandálias castanhas.

— Se não estou enganada, você vive lá no fim do mundo. O que veio fazer aqui, Sr. Odeia livros?!

— Que coisa terrível de se dizer, princesa Helena… — Léo encurvou a cabeça, cabisbaixo. — E pensar que você ainda guarda ressentimentos sobre algo que aconteceu há meses.

— Pois guardo. — Helena cruzou os  braços. — Não é algo que passe do dia para a noite.

— Desculpa. Eu não queria ferir seus sentimentos.

— Mas feriu.

— Então, o que eu faço para você me desculpar?

— Espera um pouco aí… — Helena soltou um leve sorriso convencido. — Não me diga que você saiu da sua cidade lá no interior para vir se desculpar comigo. Foi isso, não é?

— Por que eu faria algo assim?

— Vai saber, afinal, eu sou uma princesa. — Helena passou o dedo por cima do nariz.

Léo lançou um suspiro aborrecido, apontando o dedo para aquela princesa presunçosa.

— Para sua informação, eu estou aqui para passar o fim de ano com a minha família. Foi pura coincidência eu te encontrar nesse rio. Pura coincidência!

Ah, nesse caso, bom para você então. — Helena o deu as costas, contemplando aquele rio cristalino. — Agora me deixe em paz.

— Você, por caso, está zangada?

— O que te parece?

Ah… princesas… — suspirou profundamente. — Tudo bem, eu faço o que você quiser. Isso é o bastante?

— Sim! — Helena virou com um sorriso maroto.

— É impressionante como você muda de humor tão rápido.

— O que eu peço… O que eu peço… — Helena colocou a mão no queixo. Léo levantou uma de suas sobrancelhas enquanto contemplava aquela princesa mimada, pensando no que pediria.

— Vai me pedir para virar soldado?

— Não, isso vai ser uma decisão sua. O convite já está feito.

— E, então, o que seria?

— Se importa de ir ao baile de hoje à noite comigo?

— Quê? Por quê?

— É que hoje é o meu aniversário de quinze anos e minha irmã vai organizar um baile. — Helena suspirou, continuando: — E tem muitos pretendentes querendo me noivar, então eu queria que você fingisse ser o meu parceiro para afastá-los.

— Um mero plebeu como eu, parceiro de uma princesa como você?

— O que tem?

— Serei esmagado pelos nobres. E, para começar, eu não sei dançar.

— Eu também não.

— Como uma princesa não sabe dançar?

— Acontece.

Léo suspirou novamente.

Ah, então simplificando: você está me convidando para passarmos vergonha juntos?

Hum, vejo que você tem facilidade em entender as coisas.

— E como vou entrar no castelo então?

— Vou enviar uma das minhas servas para vir te buscar, é só me mostrar sua casa.

Léo suspirou mais uma vez. Havia se metido onde e com quem não deveria. Pressentiu naquele momento que problemas estavam por vir na sua vida ao se envolver com aquela princesa.

                             (…)

O sol caiu, a noite chegou, trazendo consigo inúmeras estrelas que pairavam sobre o azul noturno do céu. Era noite de lua cheia, a cidade de Acácias havia sido tomada por lamparinas que emanavam luzes amareladas por quase todas as ruas em que houvesse postes de iluminação.

No palácio de Acácias, um espetáculo de luzes atravessava as janelas à vista de quem estava fora. Seu interior estava tão reluzente quanto a luz do dia. Era dia de festa, dia em que a princesa de Acácias fazia anos.

O salão em que se dava a festa estava perfeitamente ornamentado. As mesas que carregavam consigo as melhores iguarias de Acácias estavam bem colocadas. O palco para dança estava montado, um chão prateado perfeitamente polido. Os convidados iam chegando pouco aos poucos, sendo recebidos pela rainha em pessoa, que as cumprimentava cordialmente.

Depois de algumas horas, o centro daquela festa havia chegado. Os olhos de milhares fitavam aquela princesa que desfilava pelo tapete carmesim, encantando a todos com sua beleza. Seus olhos jades reluziam diante daqueles candelabros. Suas madeixas douradas estavam especialmente soltas, algo que não acontecia com tanta frequência. Naquele dia, Helena foi obrigada pela Clementina, serva pessoal da rainha.

Na verdade, havia sido obrigada a se produzir para a festa. Se fosse ela própria, nem haveria festa. Não havia nada de tão interessante. Ela quase não tinha amigos. Muitos tinham medo de se aproximar dela por ser da realeza e pelo trabalho que exercia. Helena deu um suspiro aborrecido enquanto segurava as partes do seu vestido prateado. Com uma facha que mesclava as cores azuis e braco e ia desde seu quadril esquerdo até o ombro direito.

Após cumprimentar a quase todos, ou pelo menos os convidados mais importantes, Helena seguiu em direção a uma cadeira real que havia sido preparada para ela. Havia cortado seu bolo, tendo milhares de aplausos e felicitações, mas ele ainda não havia chegado. As músicas começaram a tocar, um som tão calmo de piano, um som tão envolvente quanto o de uma harpa.

As danças começaram, cada convidado com sua acompanhante. Muitos nobres se achegavam a Helena para convidá-la para a dança, mas ela se recusava com desculpas esfarrapadas. No entanto, mesmo aquelas desculpas estavam prestes a acabar.

Ela já não tinha mais criatividade para inventar nada que afastasse aqueles nobres jovens, cujas intenções eram, naquele dia, lhe fazer um pedido de noivado.

— Tudo bem, eu—

Quando Helena finalmente iria aceitar o pedido de dança daquele nobre, que não deixava a desejar na aparência, a porta antes fechada fora aberta. Um menino acabara de entrar, acompanhado de uma serva. Aquele menino… era ele. Os olhos de Helena brilharam intensamente.

— Perdão, mas o meu acompanhante chegou!

— Mas princesa…!

Helena correu imediatamente em direção àquele rapaz desnorteado, que suspirava ofegante enquanto observava aquela multidão de pessoas elegantemente vestidas, dançando de um lado para o outro ao som daquela sinfonia.

— Ei! — Helena acenou, atraindo os olhos castanhos escuros de Léo. Quando próximos, Helena franziu as sobrancelhas enquanto preenchia suas bochechas de ar.

— Quanta ousadia sua fazer uma dama esperar por tanto tempo.

— Foi mal, é que, na verdade, tive um imprevisto.

— O que vai inventar?

— Na verdade, quando contei à minha mãe que a princesa Helena havia me convidado para o baile, ela surtou e disse que eu não poderia vir de qualquer maneira ao palácio para não envergonhar o nome dos Raias, então ela me fez andar toda a cidade a procura de uma boa roupa para usar.

Hum… — Helena colocou a mão no queixo, rodeando o Léo, analisando aquela vestimenta. Um terno azul medieval deverás elegante, com bordas florais entorno da gola. — Sua mãe tem muito bom gosto. — Bateu no ombro do Léo. — Parabéns!

— Obrigado.

Helena esticou a mão.

— O que agora?

— O meu presente. Cadê?

Ah, droga! Eu pensei tanto na roupa que acabei esquecendo de comprar um presente para você!

Léo fez uma cara de desespero, que fez Helena rir.

— Estou brincando. Vem comigo, vamos dançar! — Helena o puxou.

Muitos dos nobres que haviam sido recusados olharam com hostilidade aquele rapaz que havia ganhado a atenção da princesa. Havia chegado atrasado, não era conhecido entre os nobres e mesmo assim ganhou a atenção de Helena.

Seus punhos cerraram na taça de vinho que carregavam. Sua fúria era palpável enquanto observavam aquele plebeu sendo arrastado pela princesa até a pista de dança.

— Pronto para passar vergonha? — questionou Helena, sorrindo para Léo.

— Já que estou aqui. Por que não?

— Esse é o espírito!

Helena segurou nas pontas do vestido e encurvou sua cabeça ligeiramente enquanto sorria. Léo encurvou sua cabeça enquanto colocava a mão no peito. Não era assim como se começava uma dança, mas aqueles dois pouco se importaram com aquilo, mesmo diante dos murmúrios, sorriam um para o outro.

Com as mãos entrelaçadas, começaram a dançar desordenadamente por aquela pista de dança, atraindo o olhar de muitos para aquela dança peculiar.

— Estão olhando para nós… — Léo se sentiu intimidado por aqueles olhares hostis. Podia ouvir alguns sussurros, como:

"Aquele plebeu sequer sabe dançar como deve ser."

— Quem se importa?! Vamos dançar, dançar e dançar!

Léo sorriu, continuando a dançar. Algumas vezes pisavam o pé um do outro, mas continuavam a dançar com um sorriso cintilante.

— Rainha — chamou Clementina, olhando com pavor para aqueles dois que não dançavam como os outros, sua dança era invulgar.

— O que foi? — Sophia olhou para sua serva que estava ao lado dela, enquanto se assentava em uma cadeira real.

— Aquela dança… Não deveria mandá-los parar?  

Sophia riu.

— Do que está rindo, rainha? Eles estão passando vergonha!

— Olhe bem para eles, Clementina.

Clementina semicerrou os olhos, olhando com precisão para o rosto daqueles dois. Eles sorriam sem parar enquanto dançavam.

— Conseguiu ver?

— A princesa Helena está se divertindo…

— Eu estava preocupada, achando que essa festa seria um fracasso, vendo Helena rejeitar todos aqueles nobres, mas, na verdade, ela já tinha seus próprios planos.

— É a primeira vez que vejo a princesa Helena se divertindo com alguém que não seja o seu irmão e os seus livros.

— É, ela encontrou uma boa pessoa.

— E a vossa majestade?

— Vou fingir que não ouvi essa pergunta.

Clementina sorriu. Sophia era tão fria quanto a esse assunto que passava longe da ideia de um dia ter que encontrar o futuro rei de Acácias.

— Helena… — Léo chamou, atraindo aqueles olhos esverdeados enquanto dançavam. — Eu andei pensando sobre o seu convite… E fiz as contas… bem, na verdade, andei pesquisando qual é o salário de um soldado e fiquei surpreendido.

— Eu disse, não disse? — Helena sorriu, convencida. — Um soldado ganha bem!

— E então, eu queria te perguntar se você me aceitaria como seu aprendiz.

— Será um prazer. Mas é só pelo salário que deseja virar um soldado?

— Na verdade, é porque a minha família não está numa situação financeira favorável.

Ah, então temos quase o mesmo propósito!

— Como assim?

— Eu virei capitã para proteger a minha família e você quer virar soldado para proteger sua família da pobreza, não é lindo? — Helena sorriu. Léo suspirou e deu um sorriso constrangido.

— Eu não colocaria assim, mas se encaixa.

— Então… — Aqueles dois tropeçaram no pé um do outro novamente, mas dessa vez acabaram por ficar próximos ao rosto um do outro, como se suas faces estivessem prestes a se tocarem. Seus olhos arregalaram. Logo desentrelaçaram suas mãos, se afastando um pouco um do outro.

— Dança não foi feita para nós, não é mesmo?

— Tenho que concordar. — Helena sorriu, seu coração acelerava só de pensar naquele momento. — V-vamos comer algo.

— Sim. — Léo balançou a cabeça positivamente, tocando no peito enquanto observava Helena caminhar, apressadamente, em direção à mesa de comida.

— Por que o meu coração bateu tão forte naquela hora? — Helena se auto questionava enquanto pegava uma maçã naquela mesa, seus olhos por um momento foram direcionados para aquele rapaz que se aproximava dela com um sorriso.

                              (...)
     

                         Atualidade

— Se eu não tivesse feito aquele convite daquela vez... — Helena mordeu os lábios com amargor, enquanto contemplava aquele sangue carmesim que fluía dos corpos dos seus companheiros. Todos estavam mortos e aquele com quem ela tinha mais contato não estava mais entre os vivos. Apenas lembranças haviam ficado, dos momentos felizes e tristes, momentos que lhe traziam arrependimentos.

— Fui eu que te levei pelo caminho da morte, Léo... — Os olhos de Helena fecharam ligeiramente, despejando lágrimas sobre o chão. Uma dor no peito a corroía como se tivessem lhe cravado uma estaca.

— Princesa Helena!

Uma voz ressoava pelos seus ouvidos. Helena ergueu os olhos, cujas pupilas estavam dilatas, em direção ao mascarado.

— Eu sei que está padecendo de dor, mas por favor! Peço que me empreste sua força para juntos derrotarmos esses vilões!

Helena arregalou os olhos, pequenos fragmentos de suas lembranças passadas passaram por sua mente. Trajada de sua armadura, ela estava sentada em um banco ao lado de um homem de quimono, descansando seu corpo cansado, repleto de suor e arranhões.

Era mais um dia após um duro treinamento em um campo de areia rodeado de pilares, que ficava no interior do palácio.

— Helena, você sabe que na guerra não existe uma utopia militar, não é?

— Estou ciente disso, mestre.

— Então, se por acaso se deparar com a morte de companheiros, o que fará?

— Eu vou... — Helena hesitou por alguns instantes, mas emitiu com confiança no final. — ...  Continuar lutando.

— Falar é fácil. Não é tão fácil encarar a morte de alguém que gostamos, não importa o quão frios sejamos. Se gostamos de alguém, não teremos como impedir a dor de vir. Porque emoções são sentimentos que não dependem da razão.

— Eu compreendo isso melhor do que ninguém.

— É por isso que ser um guerreiro não é para todos. Porque só os guerreiros podem suportar a dor e, ainda assim, avançar.

                              ...

— Eu sou uma guerreira... — Com gritos de dor, Helena tirou as flechas cravadas em suas mãos e pés. Então, as jogou para o chão. Valquires apenas a observava, enquanto estava deitada no chão.

Helena pegou sua espada no chão e se levantou, ainda sentindo a dor das flechas que haviam atingido os pés. Por sorte, não haviam perfurado tão fundo, então ela ainda estaria em condições de se locomover, mas com dificuldade.

Com os pés ensanguentados, ela revirou os olhos para aquela mulher de cabelos brancos estatelada no chão.

— Não pense que esqueci de você... — E direcionou os olhos para aquela fonte onde estavam aqueles cinco encapuzados, apontando sua espada. — Enquanto eu, Helena Acácias, continuar balançando essa espada, jamais perderei para monstros como vocês!



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