Volume 1
Capítulo 36: O clamor do povo de Mioria
As muralhas de Aclasia continuavam em constante tremor, estavam sendo abaladas pelas bolas pretas que vinham flutuando do céu. Rachaduras começavam a se espalhar em rápido movimento. Estilhaços de pedras começavam a cair no chão.
Os Miorianos, ainda relutantes, tiveram que se afastar das muralhas, se não teriam seus corpos despedaçados.
Cada vez mais se aproximavam daquela densa névoa de poeira formada ao redor das batalhas que ocorriam.
O som das espadas entrando em choque ressoava com mais intensidade em seus ouvidos. O pavor da morte tomava conta de seus semblantes, possivelmente seus corações não resistiam antes que tivessem tempo de serem perfurados pela espada.
Alguns deles passavam mal quando olhavam para os corpos mutilados no chão, que deixavam jorrar sangue.
Aquilo era a guerra.
— Essas explosões... — Com as veias extrapolando o braço que segurava o ferro, Miomura forçava seu corpo a avançar para cima da muralha. — Acho que de alguma forma o meu livro falou delas.
Com esforço, ele conseguiu subir a muralha, lançando um suspiro ofegante ao ar enquanto observava deitado aquela névoa de poeira tomando cada vez mais conta do campo de batalha. O vento forte que soprava era o que mais contribuía para que a poeira se levantasse da superfície da terra.
— Mas o que eles pretendem lançando para a lateral das muralhas, o alvo não deveria ser o portão principal? — Miomura direcionava os olhos à lateral ao longe. Apesar de uma grande nuvem de poeira tomar conta, ele podia ver embaçado, estava tudo destruído. — Espera... — Seus olhos arregalaram ao contemplar uma frota de soldados que pareciam formigas, avançando em direção aos destroços. Eles contornavam o campo de batalha que ocorria no centro. Sua trajetória se assemelhava a um arco.
— Entendi, nesse caso, a batalha que ocorre aqui é apenas mera distração. A verdadeira invasão acaba de começar agora. Então, nesse caso, o meu alvo deixa de ser a princesa Helena? — Miomura se auto questionava enquanto observava aquela marcha dos soldados.
Em contrapartida, vozes chamaram sua atenção.
— Chegaram os reforços, abram os portões!
Ele imediatamente levantou seu corpo, direcionando os olhos mais para frente do portão principal. Naquela rota, uma frota de soldados com espadas, outros com arco em mãos, marchava. Os arqueiros desviaram do caminho retilíneo, seguindo a uma espécie de alavanca que servia para transportar os soldados para cima da muralha. Essa alavanca ficava à direita da muralha onde se encontrava Miomura, ou seja, eles veriam os corpos que Miomura havia derrubado no chão.
— Droga, o que eu faço?!
Miomura tinha que pensar rápido, mas sua mente estava uma confusão tão imensa que seu raciocínio muitas vezes era cortado.
— Ei, você... — Um dos arqueiros olhou para cima. Miomura direcionou os olhos para baixo. — Aqueles corpos, o que aconteceu com eles?
— Ehh, acontece que... Eles foram acertados por flechas e só eu sobrevivi porque trouxe um escudo, veja... — Miomura ergueu o escudo à vista dos arqueiros.
— Hum... — Os arqueiros continuaram avançando em direção aos corpos.
Miomura estaria em desvantagem caso tentasse eliminar aqueles arqueiros. De baixo, seria mais fácil se desviar e contra-atacar.
Os portões finalmente se abriram. Os olhos esperançosos de alguns Miorianos foram imediatamente direcionados aos portões, no entanto, para seu azar, eram mais soldados com espadas em mãos.
— O que esses escravos imundos estão fazendo aí parados, não deveriam estar lutando?
Um dos soldados franzia o cenho enquanto observava corpos mais adiante, mas nenhum que fosse dos escravos. Eles apenas tremiam, temerosos.
— Parece que teremos que dar um empurrãozinho a esses cadáveres ambulantes... — O soldado que liderava a linha de frente soltou uma risada maliciosa. O companheiro do lado ergueu sua espada e bradou.
— Matem todo escravo que não se movimentar!
Com espadas levantadas, os soldados seguiram marchando até àqueles Miorianos apavorados, que nada faziam, se não tremer e chorar.
— Só pode ser brincadeira... — Thomas arregalou os olhos, observando ambos os lados.
Se ficasse parado, era morte, se avançasse mais, era morte.
— Parece que chegou o nosso fim — Jota lamentou.
Com os soldados próximos, todos os Miorianos começaram a correr em direção ao campo de batalha com suas armas brancas.
— Ahhh, vamos morrer! — O chefe aldeão clamava enquanto corria em direção ao campo de batalha com o coração na mão. — Eu não quero morrer agora! Por favor, não!
— Mirio, o que fizemos para merecer isso? — questionou Rymura, olhando para o amigo que contorcia seu semblante apavorado em profunda tristeza.
— Nascer Miorianos...
Mirio engoliu em seco, continuando a correr ao lado do amigo.
— O meu povo... — Miomura arregalou os olhos, observando de um lado os soldados Aclasianos avançando em direção ao seu povo e, de outro lado, seu povo avançando até o campo de batalha. Não, avançando a morte seria o termo correto.
Mordendo os lábios enquanto estreitava os olhos, Miomura empunhou seu arco, direcionando a flecha aos soldados Aclasianos que se aproximavam do seu povo.
— Foi como eu pensei...
Um gemido súbito saira de sua boca. Seus olhos logo foram direcionados aos arqueiros que haviam subido a muralha através da alavanca de transporte.
Eles apontavam suas flechas para ele.
— Você é o responsável por matar eles!
"Droga, tem esses caras ainda... "
Miomura apontou imediatamente as flechas para eles. Mas, antes que pudesse lançar, as flechas dos arqueiros já se encontravam a centímetros de perfurar seu rosto.
(...)
Vilarejo de Mioria
Por outro lado, vozes de lamentos não paravam de ressoar sobre os ouvidos de Maria, que ainda se encontrava no chão, vertendo lágrimas de seus olhos azuis.
— Por que... — Maria olhava para porta enquanto mordia seus lábios com amargor. — Por que...
De repente, um vento impetuoso entrou pela porta aberta, soprando suas madeixas e sua pele, provocando-lhe leves arrepios.
Aquele vento que soprava sobre seu corpo, trouxe a sua mente lembranças distantes, de quando ela ainda tinha seus pais consigo, quando ainda era feliz.
Ela estava sentada na mesa ao lado do seu irmão, Gabriel. Seu pai se sentava no assento de frente enquanto sua mãe terminava de servir a sopa quente em seus pratos.
Era noite.
Depois de um grande trabalho árduo, finalmente descansariam depois de uma bela refeição.
— Eba! Vamos comer! — Maria com a boca a salivar, atacou o prato com a colher em mão.
— Sim! — Seu irmão balançou a cabeça positivamente, com os olhos cintilantes para àquela sopa de feijão saborosa que sua mãe havia preparado.
— Esperem vocês dois... — Sua mãe guardou a colher na panela de barro e colocou a tampa por cima.
— Por que, mamãe? — questionou Gabriel, observando o vapor que saia da sua sopa subir ao telhado que mesclava bambu e palha. — A sopa não vai esfriar?
— Antes, temos que agradecer a Deus por mais um dia termos o que comer.
— A Deus? — Maria levantou uma das sobrancelhas finas.
— Sim, é graças a Ele que temos vida —Sua mãe puxou o banquinho e assentou-se. — É graças a Ele que mais uma vez podemos desfrutar de uma refeição em família.
— Mas onde está esse Deus? — Gabriel olhou para sua mãe com um semblante de indagação.
— Ele está no céu — respondeu seu pai.
— Céu, lá em cima das nuvens? — questionou Maria, elevando seus olhos curiosos ao telhado e depois a uma das janelas que ilustrava um céu cingido de lindas estrelas brilhantes.
Seu pai soltou um leve sorriso, balançando a cabeça positivamente.
— Sim, lá em cima das nuvens.
— Ohh! E ele consegue nos ouvir lá de cima?!
Um sorriso se formou nos lábios dela, enquanto seu pai concordava com a cabeça.
— Claro. Claro.
— Então, por que ele nos deixa sofrer?
Sua mãe sorriu, observando os olhos azuis da filha, olhos que deixam escapar um pouco de tristeza.
— É complicado de responder essa pergunta, mas é que aqui não é a nossa morada definitiva, sabe? Por isso Deus permite o sofrimento.
— Até porque Deus nos criou livres para podermos escolher o nosso próprio caminho — acrescentou seu pai. — O próprio sofrimento é derivado da falta de amor com o próximo.
— Então se tivermos mais amor, o sofrimento acaba?
— Mas isso não depende só de nós — respondeu seu pai.
— É, Maria. — Gabriel direcionou seus olhos castanhos a irmã. — Tem aqueles homens malvados que não querem amar ninguém.
— Mas bom! — Sua mãe bateu as palmas com um sorriso. — Independente de tudo, Deus ama a todos. E no dia em que o nosso povo se juntar e clamar, quem sabe, o sofrimento do povo de Mioria não acabe, não é?
— Eu quero muito!
Maria elevou as mãos ao alto. Seu irmão apenas sorriu.
— Mas para isso temos que orar muito e muito! — disse seu pai com um sorriso no rosto. Sua mãe balançou a cabeça, concordando com as palavras do marido.
Maria piscou seus olhos ligeiramente, enfrentando novamente aquela realidade.
— Mas eu tenho orado muito e muito, mas esse sofrimento continua sem fim... E o número de pessoas que ainda acreditam em Deus, o Criador, tende a diminuir devido a essa escravidão sem fim. — Os traços de Maria se contorceram em uma expressão de profunda melancolia enquanto ela continuava observando aquela porta.
Seus olhos arregalaram quando um homem em vestes de panos um pouco semelhante às suas apareceu na porta. Os batimentos cardíacos do seu coração aceleraram em perplexidade do que poderia acontecer a ela naquele momento. Já que estava só e indefesa.
— Quem é você?
— Não tenha medo, Maria. Deus é contigo.
— Hã? — Maria ergueu uma de suas sobrancelhas finas, confusa.
— Levante-se, é momento de guerrear.
— Como? Eu não sei lutar! Eu mal sei empunhar uma espada... — Maria emitiu num tom baixinho, enquanto suas pálpebras se remexiam de tristeza.
— Mas sabe orar, não sabe?
Maria arregalou os olhos
— Sim, eu sei. Mas...
Suspirou pesadamente enquanto fazia aquela expressão cabisbaixa, porque pensara no quanto tinha orado e não via solução.
— Diga ao povo que ore.
Aquela voz fez soprar um vento impetuoso sobre o corpo de Maria. No momento em que ela havia piscado os olhos devido à pressão do vento, aquela pessoa havia desaparecido.
— Espera... — Maria levantou-se do chão, correndo até a porta. — Quem é você? Pelo menos me diga seu nome e onde mora, para que eu...
Mas seus olhos não conseguiram mais avistar a pessoa que falara consigo outrora, não tinha mais ninguém ao redor da casa.
— Entendi agora... — Maria ergueu os olhos ao céu, contemplando uma nuvem em formato de um pássaro. — Muito obrigado, meu Deus!
E então aquela menina começou a correr pelo quarteirão, dizendo a cada pessoa que encontrasse pelo caminho para que orasse. Não foi fácil, muitas pessoas a jogaram insultos na cara enquanto choravam e se lamentavam.
"Saía daqui! "
"Não me venha com essa!"
Essas e outras palavras eram como flechas cravadas no coração daquela pobre menina. Havia percorrido muitos quarteirões do seu vilarejo enquanto clamava como uma louca, mas poucas pessoas haviam realmente aceitado dobrar os seus joelhos sobre a terra e clamar ao Criador.
— Pessoal! Por favor, vamos orar!
E, mesmo assim, não cessou seu clamor pelas ruas do vilarejo de Mioria, ainda que as pessoas não lhe dessem valor, continuava. Seus traços se contorciam cada vez mais, formando uma expressão abatida. Lágrimas vertiam dos seus olhos.
Seus lábios cerraram enquanto olhava para o céu, cujas nuvens negras devoravam as nuvens brancas. Aquilo era um mau presságio. Ela precisava orar. Por onde quer que olhasse, contemplava pessoas desoladas, sem forças.
Tomada pela angústia e pelo desespero, Maria caiu de joelhos, em meio à praça central do vilarejo, onde muitas vezes seu povo se reunia.
— Ó Criador do céu e da terra, Tu que formaste o homem a tua imagem e semelhança, clamo a Ti, Ó Deus, que tenhas misericórdia do meu povo... — Maria continuava orando com os olhos e mãos voltadas para o céu. O clamor daquela menina trouxe aos poucos pessoas, que a observavam de longe, ali, de joelhos dobrados, clamando pelo povo.
— Essa menininha enlouqueceu, não é?
— Como se isso fosse resultar. Os nossos parentes estão lá morrendo e em breve seremos nós...
Entre o povo estavam muitos descrentes, que para eles tudo estava perdido.
— Pelo menos ela está tentando fazer algo. — Jeziel, que estava no meio daquelas pessoas, saiu e correu até Maria. Ela dobrou os joelhos, erguendo as mãos ao alto enquanto observava sua amiga orar.
— Que bom que chegou! — Maria cessou sua oração por um momento e direcionou os olhos à sua amiga.
— Conte sempre comigo — Jeziel sorriu, erguendo os olhos para o céu. — Essa é a nossa maneira de guerrear!
Maria sorriu, continuando com a oração.
E aconteceu que, no meio do clamor daquelas duas mulheres, um vento impetuoso começou a circular ao redor delas. Foi nesse momento em que aquela gente, que apenas observava para ver onde aquilo iria dar, arregalou os olhos.
— O que está acontecendo aqui? — questionou um Mioriano enquanto caia de joelhos, observando aquele vento arrebatador circular aquelas duas meninas. A medida que muitos joelhos se dobravam, o vento foi se expandindo pelos quatro cantos. — Que presença é essa?
— Então, esse todo tempo, Ele esteve nos ouvindo, o Criador...
Aquilo lhes serviu de sinal de que uma intervenção divina estava operando naquele momento. Deus havia ouvido dos céus seu clamor. Muitos, naquele momento, reconheceram que debaixo da terra, acima da terra e em todo o universo, há apenas um único Deus que está pronto a ouvir a todos que tem seus corações quebrantados.
Mais pessoas saiam da sua casa ao ouvir aquele clamor aos céus. Tocadas pelo ambiente, pela multidão de vozes, caíram de joelhos e começaram a orar.
A batalha espiritual havia começado.
(...)
Por outro lado, Miomura estava em maus lençóis, tinha quatro flechas a centímetros de estraçalharem seu rosto. Não houve tempo de reação, as flechas chocaram contra a máscara do Miomura, estraçalhando-a. Ele foi derrubado, caindo sobre o chão do muro. Sangue começou a verter da sua testa, percorrendo seus olhos fechados.
— Isso, derrubamos o traidor!
Os arqueiros cantaram vitória. Haviam vingado a morte dos seus companheiros.
— Agora, assistamos ao massacre que está prestes a acontecer. — Os arqueiros sorriam maliciosamente enquanto olhavam para aquele povo encurralado.
Alguns arranhões de espadas cruzavam sua pele, no entanto, o que parecia indicar para um cenário de morte, mudou drasticamente.
Os soldados Acacianos, subitamente, estavam ganhando mais terreno. Derrotavam agora seus inimigos com extrema facilidade. Alguns deles, sem oponente, avançavam até aqueles pobres Miorianos com suas espadas erguidas.
— Não! Não...! — Os Miorianos arregalaram os olhos com as mandíbulas em constante tremor.
Quando perto, fecharam seus olhos, mordendo seus lábios enquanto esperavam que aquilo terminasse rápido e sem dor. No entanto, os soldados Acacianos passaram pelos Miorianos sem lhes causar sequer um dano. Seus alvos, na verdade, eram aqueles soldados Aclasianos que erguiam sua espada contra aquele povo inocente.
— O que? — Thomas abriu os olhos, apalpando o corpo. — Eu não estou morto...
— Olhem...
O chefe aldeão, que havia virado, apontou o dedo para a batalha que acontecia a alguns metros dele.
— Impossível... — Mirio arregalou os olhos. — Eles estão lutando por nós?
— Só pode ser um milagre — afirmou Rymura, seguido de um Mioriano que compartilhava do mesmo espanto. — E dos grandes! O que está acontecendo aqui?
Gabriel arregalou os olhos e caiu de joelhos, com as mãos levantadas ao céu.
— Gabriel... — chamou Thomas, olhando para ele que nada dizia, apenas olhava para o céu com as mãos levantadas.
— Isso com certeza foi uma intervenção divina. — Jota caiu de joelhos.
No instante em que Gabriel olhava para o céu, lhe vieram aquelas palavras um dia proferidas pelo seu pai.
— Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido.