Volume 1

Capítulo 34: Invasão do Vilarejo

— Lição número 7: antecipar os movimentos do inimigo. — Miomura que tinha os olhos fitados no livro, feche-o bruscamente e o guardou sobre a mesa feita de madeira.

Observou o céu estrelado da janela, era a noite do terceiro dia antes da data marcada para a invasão de Aclasia.

— Chegou a hora.

Miomura abriu sua sacola e começou a retirar algumas das armas que haviam ficado consigo. Uma espada, um pequeno escudo, um arco e uma aljava que continha ao todo vinte flechas.

Miomura vestiu rapidamente as roupas de soldado que havia ganhado em Aclasia e colocou a aljava nas suas costas. O pequeno escudo estava agarrado ao braço, a espada e o arco na extremidade da sua cintura. E então, subiu naquela mesa de madeira e, com as mãos postas na borda da janela, pulou. Era uma janela pequena, mas como o seu corpo era magrinho, conseguiu passar.

Miomura caiu no chão, causando um leve impacto. Levantou-se, sacudindo um pouco as suas vestes e começou a andar enquanto colocava a máscara no rosto.

— Chegou a hora…

Com passos lentos e calculados, Miomura se locomovia pelo vilarejo naquele breu. As tochas haviam sido apagadas com fortes rajadas de vento, o que era conveniente para ele.

Não tardou muito, depois daquela longa noite, o amanhecer havia chegado. Os passarinhos, novamente nos telhados, cantavam o hino do novo dia, despertando os Miorianos.

Yara, em seu quarto, esfregou os olhos depois de uma longa e reconfortante noite de sono. Esticou os braços ao alto enquanto bocejava.

— Que dia tão lindo… — Yara observava a luz do sol que atravessava a janela tombar no chão do quarto. Alguns passarinhos vieram cantar ao pé da janela. — Vocês também concordaram, não é?

Um sorriso emergiu nos seus lábios enquanto ela caminhava em direção à porta de bambu. Yara abriu a porta delicadamente, observando o pai nas primeiras horas da manhã sentado no banquinho, enquanto tomava um copo de água.

— Bom dia, pai.

Ah… — Rymura revirou o olhar para sua filha. — Não sei se a partir de hoje os dias serão bons.

— A guerra, não é? Faltam apenas dois dias.

— É. — As mãos do Rymura tremilacavam sobre a mesa. — Eu tive um pesadelo terrível essa noite…

— O que sonhou?

— Não, não foi nada de mais.

— Não é o que seu rosto aparenta.

Yara foi se aproximando do pai, mas se viu assustada quando a porta foi bruscamente aberta a chutes. Aquela porta velha e antiga, não resistiu, caiu ao embater contra a parede direita. Alguns dos bambus que compunham a porta saíram rolando ao encontro daqueles dois.

Perplexos, pai e filha direcionaram os olhos arregalados à porta, podendo contemplar soldados.

— Pelo decreto do rei, todos os homens de dezoito anos para cima devem vir conosco! — O soldado olhava severamente para aqueles dois. Levantou o braço. — Homens, procurem em todos os cantos dessa casa e, se houver algum homem a mais que aparente ter dezoito para cima, levem-no.

— Não… — Os traços de Rymura foram se contorcendo em uma expressão de pavor, seus olhos arregalados fitavam a porta do quarto do filho.

Yara correu imediatamente ao pai, todo apavorado, segurando seus braços.

— Por favor, não levem o meu pai!

As súplicas de Yara foram ignoradas, os soldados tomaram seu pulso abruptamente e a arremessaram. A boca de Yara abriu-se instintivamente enquanto pequenas gotas de salivas saltavam ao vento após a colisão contra a parede.

— Yara!

Rymura levantou-se do banquinho, cerrando os punhos enquanto movia sua mandíbula com tremor.

— Do que está a espera, imundo?

O soldado que estava na porta franziu as sobrancelhas.

Rymura mordeu os lábios intensamente enquanto seus traços se contorciam em uma expressão de tristeza. Ele queria bater naqueles soldados por terem tocado na sua filha, mas isso apenas colocaria a vida dos dois em perigo.

Então, com um último olhar e muitas lágrimas, Rymura despediu-se da filha, agora inconsciente. Caminhou em direção ao soldado com passos relutantes, enquanto os demais soldados vandalizavam sua casa.

— Por favor, só não façam nada com a minha filha…

— Não está em posição de me dirigir a palavra. — O soldado franziu a testa. — Ponha-se no seu lugar.

Ah… — Rymura lançou um suspiro pesado, seu coração gritava de desespero enquanto dava o último passo para fora de casa. E o que viu lá fora foi ainda mais desesperador. Pessoas correndo de um lado para o outro enquanto clamavam por paz, por liberdade.

Eram Miorianos suplicando para que não levassem consigo seus familiares. Milhares de soldados tinham suas espadas ao relento do vento, preparadas para usar contra quem quer que oferecesse resistência.

Em contrapartida, as pálpebras da Yara foram se remexendo. Seus olhos abriram-se para aquela realidade nua e crua. Seu pai, que há pouco estava ali, não estava mais. A mesa havia sido derrubada, a água escorria do copo, transformado em estilhaços.

Não parava por aí, ela podia ouvir o som de objetos quebrando na cozinha e no seu quarto. Os soldados estavam destruindo a casa, seu lar, todo trabalho árduo do seu pai estava sendo devastado.

— Parece que não tem ninguém…

Quando ouviu as vozes dos soldados, Yara fechou os olhos de imediato.

— Mas tem um quarto há mais.

— Bom, não importa — disse o soldado, levantando uma pulseira de prata. — E pensar que meros escravos possuíam algo tão valioso.

— Devem ter roubado, esses ladrões.

— É... Mas agora é nosso! — Os soldados passaram pela parede onde Yara estava estatelada, lançando-lhe um olhar de depravação. — Coitada, vai ficar órfão de pai!

— Que coisa terrível de se dizer — seu companheiro riu.

— É o que essas escórias merecem!

Os soldados começaram a rir, olhando um para o outro, enquanto caminhavam em direção à porta já quebrada. Yara abriu os olhos ligeiramente, observando os soldados dando seus últimos passos para fora.

— Eu quero…  — Yara bateu os punhos, enquanto franzia os dentes. — Eu quero muito matar eles!

Por outro lado, o caos se instalava no vilarejo de Mioria. Os soldados ganhavam cada vez mais terreno, recrutando Miorianos. Destruíam seus pertences no processo, vandalizavam tudo quanto encontrassem pelo caminho com a mera desculpa de que estavam procurando escravos que poderiam ainda estar escondidos.

A razão dessa invasão repentina é que, com a guerra próxima, o rei deu ordens aos seus soldados para que invadissem o vilarejo, tomassem todos os escravos à força e os reunissem em um único lugar.

— Hum… Hum… — Maria cantava enquanto varria sua casa toda alegre, no entanto, seu sorriso logo desapareceu quando a porta de sua casa fora aberta abruptamente. Ela arregalou os olhos, contemplando soldados com espadas nas mãos.

— S-S-Soldados??!

Sua mandíbula tremelicava.

— Isso mesmo, mocinha!

Os soldados soltaram leves risadas enquanto observavam a expressão apavorada que aquela mulher fazia.

— Vamos, companheiros, revistemos essa casa! — O soldado levantou a espada, seus companheiros seguiram entrando na casa, lançando um olhar perverso sobre aquela mulher assustada.

— P-P-Por favor, não podem entrar nessa casa assim…

— Escuta uma coisa, garota! — O soldado agarrou o pulso de Maria fortemente. — Nós entrámos como quisermos e quando quisermos, afinal, vocês são propriedades do reino!

Maria choramingou.

Naquele mesmo instante em que os soldados estavam zombando de sua irmã, Gabriel abria a porta do quarto. Seus olhos arregalaram de imediato, contemplando aquela cena, aquelas mãos ferindo o pulso da sua irmã, aquelas lágrimas no rosto dela… Era demais para o Gabriel ver aquilo. Ele franziu os punhos, enquanto cerrava as sobrancelhas.

— Soltem a minha irmã! — Correu em direção aos soldados, mas antes que chegasse a sua irmã, um deles, que estava um passo à frente, chutou seu abdômen. Gabriel caiu de joelhos, enquanto segurava fortemente sua barriga.

— Meu irmão! Meu irmão…!

Maria direcionou os olhos repletos de lágrimas para ele, que se contorcia de dor no chão, enquanto o soldado pisoteava seu corpo.

— Como ousa, escravo?! Acha que vai nos intimidar com essa carinha de lagarto, hã?! — O soldado continuou pisando em Gabriel continuamente, enquanto os outros riam.

— Pare, Gilber… — disse o soldado que ainda se encontrava na entrada. — As ordens foram para levar esses escravos vivos, não mortos. Desse jeito, ele não servirá para nada…

— Isso é verdade. — O soldado que segurava o pulso da Maria sorriu. — Afinal, eles servirão como escudo para nós!

— Certo…  — Gilber deixou de chutar aquele pobre rapaz que gemia, se contorcendo de dor.

— Por favor… — Maria fechou ligeiramente seus olhos, despejando lágrimas sobre o chão. — Eu imploro por misericórdia.

O soldado soltou seu pulso, sorrindo maliciosamente.

— Hoje é seu dia de sorte, vá.

Maria imediatamente deu as costas ao soldado, andando em direção ao irmão, porém, espantou-se quando se viu caindo no chão. O soldado havia lhe dado uma rasteira. Sua cabeça, por sorte, havia chocado no corpo do irmão, mas seus joelhos haviam sofrido pequenos arranhões, que por sorte não se transformaram em feridas abertas.

— Cara, você não presta — disse Giber, o que espancava Gabriel outrora.

— Desde quando escravos precisam de misericórdia?

— Ei, vocês dois… Esqueceram de que ainda temos mais casas para invadir? Não podemos perder tempo só com essa!

O soldado, ao lado do Gilber, pegou Gabriel pela gola, sua boca vertia um pouco de sangue, seu rosto estava repleto de arranhões.

— Maria…

— Irmão… — Maria, com rosto sobre o chão, direcionou os olhos ao irmão que era levantado pela mão do soldado.

— Vamos, ande! — O soldado chutou o traseiro de Gabriel com risos. — Seu molenga!

Os soldados começaram a caminhar enquanto chutavam Gabriel no traseiro, gritando:

"Ande, seu molenga!"

E entre outras ofensas. Maria observava aquilo tudo amargamente. Seu irmão sendo agredido, seu irmão indo embora. Ela vertia lágrimas enquanto observava por último as costas dele.

Não era daquela forma que ela imaginava se despedir do seu irmão. Soluçando, ela ergueu o rosto ao telhado, clamando:

— Deus, se o Senhor me ouvir, por favor… Salve o meu irmão, salve o meu povo!

Findo esse clamor, Maria começou a chorar desesperadamente.

Maria não era a única a padecer dessa dor que ardia em seu peito, em seu coração. Muitos Miorianos clamavam por seus familiares. Se Deus estivesse ali presente, clamavam para que por favor escutasse suas súplicas, para que desse fim àquele todo sofrimento.

— Parece que tudo foi em vão… — lamentou o chefe aldeão que caminhava ao lado dos seus conterrâneos. — Os treinamentos…

— Por quê?! — questionou Rymura, seus traços continuavam se contorcendo. Seus lábios cerraram. — Por que é que tem que ser assim? Eu... Já não aguento mais!

— Eles destruíram tudo...

Mirio cerrou os punhos, lembrando da chegada inesperada dos soldados. Foi tão aterrorizante, que sua mulher desmaiou.

— Os meus filhos... — Lembranças das suas crianças chorando ainda o torturavam.

— Parece que a nossa morte é eminente.

Tudo o que Melquiore havia feito, foi em vão. O recrutamento dos dez escolhidos, os treinamentos. Absolutamente tudo tinha sido em vão.

— Quem iria imaginar que eles... — disse Thomas, enquanto andava naquela multidão de Miorianos recrutados. — Que eles iriam nos pegar de surpresa?!

— Vamos mesmo morrer? — questionou Jota, perplexo.

Gabriel andava de cabeça encurvada, um vazio havia tomado conta de seu semblante. Aquele menino de apenas dezoito anos estava completamente destroçado.

Depois de muito tempo de caminhada, os Miorianos foram concentrados em seu local de trabalho. O local onde produziam blocos e muitas outras coisas.

— Muito bem, escórias. Meu nome é Tenente Reville! — Era um homem de meia-idade que possuía uma facha azul-escura, que ia desde a extremidade da sua cintura aos ombros. — Como devem saber, faltam apenas dois dias para a guerra. Com isso, o rei ordenou que vos recrutássemos abruptamente para que não tivessem tempo de se esconder e fugir. Bem, vocês serão colocados em frente às muralhas e...

Uma mão se levantou, era o chefe aldeão.

— Escrava insolente, como ousa me interromper?!

— Perdão, senhor! Mas... Por favor, pelo menos dê armas com as quais possamos lutar! É tudo que pedimos! — O chefe caiu de joelhos, encurvando a cabeça no chão.

— Armas? É claro — O Tenente Reville soltou uma risada maliciosa, enquanto olhava para os seus soldados que começaram a rir. — Tragam.

Dois soldados arrastavam uma sacola imensa em direção àqueles homens que sorriam esperançosos, mas quando os soldados despejaram o que havia na sacola, seus sorrisos foram abaixo. Pensavam que eram espadas, quando, na verdade, eram pequenas facas, galhos e alguns bastões.

— Aqui as armas que pediram.

Os Aclasianos haviam alcançado o ápice da perversidade. Os Miorianos arregalaram seus olhos, perplexos, mas não tiveram escolhas se não levarem aquelas armas. Bem, o plano desde o princípio era usar aquele tipo de armas, então não tinham muito que reclamar.

— Como eu ia dizendo... — O Tenente tossiu com o punho na boca, continuando seu discurso. — A partir dessa noite, vocês e uma frota de soldados farão vigília no portão da frente. Não sabemos quando os Acacianos irão atacar, então vocês ficaram por lá até o dia previsto para a guerra. Entendem?

Um silêncio se fez sentir.

— Hum, escravos... — dito isso, o Tenente Reville retirou-se do balcão que haviam montado para ele discursar.

— Pelo menos poderemos colocar em prática tudo que aprendemos, menos mal — Thomas suspirou de alívio.

— Isso é verdade — Jota assentiu, observando a faca que tinha em mãos. — Mas isso contra uma espada, com certeza é suicídio.

— Pois é. Falando em suicídio, onde será que está aquele boca afiada?

— Deve estar por aí — disse Jota.

— Mas é estranho... Porque o pai está ali sozinho.  Não só, todos os seus vizinhos. — Thomas observava aqueles Miorianos sentados, todos com os rostos abatidos.

— Gabriel, sabe de alguma coisa?

Jota olhou para Gabriel, mas nenhuma resposta saiu de sua boca.

— Bem, não é hora para pensar nos outros, pensemos antes em nós — disse Thomas.

— É, afinal, dentro em breve estaremos diante da morte. Na guerra...

Chegado o entardecer, todos os Miorianos com idade de dezoito anos e superior foram levados para fora das muralhas. Ali ficaram fazendo vigília desde o entardecer ao anoitecer, com direito a pequenas migalhas que o povo de Aclasia chamava de refeição.

Não havia dúvidas por parte daquela gente de que o rei pretendia se livrar do povo de Mioria de uma vez por todas.

A lua caiu, o sol nasceu, o dia previsto para a guerra havia chegado. Na terça parte do dia, os soldados e o povo de Mioria puderam observar com os seus olhos... Era o povo adversário, o povo de Acácias. Uma nuvem de poeira acompanhava seus passos, não pareciam tantos assim, mas possuíam espadas, armaduras e escudos em suas mãos.

— Chegaram... — Os jovens Miorianos agarraram fortemente suas armas brancas, engolindo em seco, enquanto observavam aquela nuvem de soldados vindo em sua direção.

— Vamos morrer...

— Eu não estou preparado!

Seus corações disparavam.

Seus peitos ardiam.

Suas mentes vagavam por pensamentos de morte. Alguns começavam a refletir sobre a morte e a vida.

O que vem depois dela?

Há vida pós-morte?

Qual é a sensação de morrer?

O desespero tomava conta de seus corações, o medo corroía seus corpos.

De repente, ouviram uma voz, era a do capitão Melquiore. Era uma ordem que dizia:

"Ataquem!"

Seus corpos foram abruptamente agredidos com a correria dos soldados. Eles não ousavam dar um passo sequer, o que deixava os Aclasianos irritados. Com as sobrancelhas franzidas, os Aclasianos empurravam os Miorianos apavorados que caiam em pleno chão.

Desistiram, eles mesmos indo ao ataque.

Por outro, no alto das muralhas, haviam soldados arqueiros que estavam em prontidão para lançar suas flechas contra  seus inimigos. Todos estavam mascarados, com o arco apontado para o campo de batalha, aguardando o momento exato para lançar suas flechas.

Ah, seus covardes... — Miomura sussurrava, franzindo o cenho. — Vocês pagaram bem caro por isso!

Repentinamente, algumas lembranças vieram à sua cabeça. Lembranças de quando acompanhou Florento para fora do acampamento, aproveitando o momento para lhe fazer algumas questões.

— O quê? Você quer saber sobre o exército de Acácias?

— Sim, pelo que li no meu novo livro, é importante conhecer bem os inimigos.

— Faz sentido — Florento riu, coçando o queixo. — Mas bem, o exército de Acácias é liderado por duas mulheres. Você acredita?

— Duas mulheres?

— Sim. Sim. — Balançou a cabeça positivamente. — Uma delas é a própria princesa Helena, capitã do exército de Acácias, e a outra... — Florento ficou puxando pelo nome, mas não lhe veio à cabeça. — Acho que não conheço o nome, mas creio que seja tão habilidosa quanto a capitã, porque ela é a vice-capitã.

— Entendi.

Miomura centralizou sua flecha para a batalha que acontecia no meio da guerra, a principal e a mais importante de todas, a batalha dos capitães.

— Se eu quiser que o meu povo seja livre, terei que me aliar a ela. — Um leve sorriso escapou do seu rosto.  — Você é o meu alvo, princesa Helena!



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