Volume 1

Capítulo 30: A dor de um amigo

— Ei!

Uma voz ressoou pelos ouvidos daqueles dois irmãos. Seus olhos foram direcionados para aquela pessoa que gritava por seus nomes enquanto corria pelo campo de treinamento, balançando a mão de um lado para o outro.

— Florento?

Miomura sorriu, observando aquele rapaz em um estado tão lastimável quanto o dele. Cheio de arranhões entorno da pele, com as vestes sujas e encharcadas de suor.

Quando finalmente alcançou aqueles irmãos, Florento suspirou, agarrando fortemente o joelho.

— Você está acabado.

Florento riu, erguendo sua cabeça.

— Não quero ouvir isso de você!

— E então, o que te traz aqui?

— Não é óbvio, idiota?! — Florento apontou o dedo para aqueles dois. — O capitão quer falar com vocês!

— O que será que ele quer?

— Deixa de perguntas e vamos logo, o capitão não gosta de ficar à espera.

— Certo. Certo. — Miomura assentiu e Yara balançou a cabeça positivamente, enquanto seguia aqueles dois por trás.

A essa altura, todos os arqueiros haviam deixado o campo de treinamento. Luzes amareladas provenientes de lamparinas foram tomando conta de campo, preenchendo aquele lugar escuro de luz.

Os olhos daqueles jovens cintilavam enquanto observavam aquele espetáculo de luzes acionado por quatro senhores que cuidavam dos campos de treinamentos.

Ao cruzar a porta que dava acesso ao campo de treinamento para espadachins, Miomura pôde contemplar o capitão Melquiore, concentrando seus conterrâneos à luz das lamparinas que cercavam o campo.

Melquiore revirou os olhos por alguns segundos, contemplando a chegada daqueles jovens. Miomura na sua caminhada, quase caiu por pisar em um dos bastões jogados pelo campo de treinamento. Sorte a dele que Yara, com o seu reflexo ágil, havia segurado seu braço.

Miomura suspirou. Florento riu de leve, colocando o punho direito sobre os lábios.

— Muito bem… — Melquiore observou àqueles dois irmãos e Florento se enturmando no meio dos demais Miorianos. — Como sabem, eu, Melquiore Aryane, capitão do exército de Aclasia, me propus a ajudar o vosso povo, permitindo a seleção de dez Miorianos. No entanto, com base no treinamento de hoje, percebi ter havido cometido uma falha ao fazer essa seleção.

Os olhos dos Miorianos arregalaram, um gemido saiu de suas bocas. Estavam perplexos com as palavras proferidas pelo capitão.

— Me perdoem pelo que direi, mas vocês não estão aptos para a arte da espada. Um treinamento de espada dura em média seis meses, e a guerra começará em breve. Sendo assim, não tem como vocês aprenderem tudo sobre a espada em tão pouco tempo e ainda assim, transmitirem ao seu povo.

— Então… — Miomura cerrou os punhos. — Por que nos chamou sabendo disso?

Miomura questionou o que todo mundo ali presente não tinha coragem de questionar.

— Muito bem colocado. — Melquiore sorriu de leve. — De fato, mesmo estando ciente disso, eu optei por esse caminho. A verdade é que eu tinha esperanças de que um milagre pudesse acontecer e vocês logo no primeiro dia mostrassem um progresso significativo, apenas isso.

— Mas, capitão… — disse Florento. — Esse é o primeiro dia dos doze dias que temos. Dê tempo ao tempo e quem sabe eles melhorem.

— Não, boa parte dos soldados percebeu o quão novatos eles eram. Infelizmente, se isso continuar assim, não tardará a suspeitarem que vocês são intrusos.

— Nos dê pelo menos mais dois dias! — disse Miomura. — Nesses dois dias provaremos o nosso valor!

— Acham mesmo que em dois dias podem provar o seu valor?

— Sim! — Dessa vez, um uníssono se fez ressoar pelos ouvidos de Melquiore. Ele pôde ver nos seus olhos, determinação. Todos agora estavam dispostos a dar seu melhor, juraram para si que passariam noites afincos treinando.

— Certo. Se depois desses dias, eu não notar nenhuma melhora, voltarão para as suas casas. — Dito isso, Melquiore deu meia volta, começando a caminhar em direção à saída.

— O que estou fazendo?— Melquiore se autoquestionava enquanto se distanciava cada vez mais daquele grupo. Eles eram apenas escravos, não havia motivo para ajudá-los. — E mesmo assim sigo ajudando-os. — Colocou a mão sobre o seu olho direito, soltando um leve suspiro.

Ufa! — Os Miorianos finalmente puderam soltar o seu tão ansiado suspiro. — Pensei que fosse morrer!

— Não aguentava mais ficar sério — disse Thomas, caindo sobre o chão enquanto sacudia a gola da sua vestimenta, buscando ar.

— E você… — Gabriel olhou para Miomura e o deu uma palmada na
cabeça. Miomura reclamou de dor. — Qual é o seu problema?

— Doeu, Gabriel! — disse, afagando a cabeça.

— É para doer mesmo. Aquele é jeito de falar com o capitão, e se ele ficasse de mau-humor e mandasse todos nós para a forca, hã?

— Não exagere, Gabriel!

Yara e Florento soltaram leves risadas ao observar aquela clássica cena entre amigos.

— Ele é um suicida — afirmou Florento.

— Mas era o que todo mundo queria saber, não é pessoal?!

Miomura olhou para seus conterrâneos.

— Um dia, sua cabeça ainda vai parar na guilhotina — disse Thomas e o seu companheiro ao lado balançou a cabeça positivamente. — Acha que estamos onde? Para falar o que te der na telha.

— É, Miomura. Não abuse da bondade dos outros, uma hora ela acaba — declarou Jota. Miomura foi recebendo um monte de repreensão por parte dos seus companheiros durante um bom tempo.

Depois disso, tiveram que regressar ao acampamento, porque os senhores que cuidavam dos campos de treinamentos já queriam fechá-lo.

— Miomura e mascarada, preciso falar com vocês — disse Gabriel, ele que havia se afastado dos outros para se juntar ao Miomura e à Yara. Os demais, seguiam caminhando ao acampamento a passos largos, guiados por Florento que falava mais sobre a cidade de Aclasia para os Miorianos cujos seus olhos vislumbravam aquela arquitetura linda, que os seus antepassados haviam feito.

— Yara… — pronunciou Gabriel, roubando um gemido dela.

— Como, digo — Yara tossiu, engrossando a sua voz. — Digo, está me confundindo. Eu sou o Yazar!

— Ele já sabe, Yara. Não adianta fingir.

— Aquilo não era fingimento, era apenas uma brincadeira. — Yara retirou a sua máscara, seus cabelos haviam sido cortados, terminando em seu pescoço.

— Como o chefe aldeão pôde permitir que você viesse a Aclasia? — questionou Gabriel. — Ele por acaso tinha noção do que estava fazendo?

— E... é verdade! — Miomura começou a analisar Yara de baixo para cima, enquanto colocava a mão no queixo.

— Bem, eu vou explicar tudo.

                           (...)

   
      Há aproximadamente um dia


  
Tudo começou naquele dia. Depois de Yara dar um abraço no pai, ela seguiu para o campo de produção agrícola que havia no vilarejo de Mioria. Lá, haviam variedades de plantas, mas as que ela queria eram as chamadas plantas medicinais, que muitas vezes usava para o tratamento de pacientes escravos.

Yara, então, colheu a mão aquelas plantas que se apoiavam na terra. Elevou-as aos seus olhos, contemplando suas raízes e folhas. Retirou umas cinco delas e seguiu caminhando para sua casa, saudando algumas de suas vizinhas que encontrava pelo caminho.

Ao chegar em casa, Yara foi direto para a cozinha. Uma cozinha pequena; repleta de utensílios feitos de barro, outros a bambus e madeira.

Os Miorianos confessionavam tudo quanto a criatividade lhes permitisse produzir com os materiais que tinham em mãos.

Yara pegou um pequeno pilão e colocou as folhas verdes e frescas dentro dele. Com o pilador, feito de madeira, pilou com força. O som trouxe à cozinha seu pai, que parou na porta, observando-a.

— Filha?

Yara virou-se abruptamente, seus longos cabelos negros balançando de um lado para o outro.

— Pai?

— O que está fazendo?

Uhm... Eu estou...  Eh, é assunto de mulher, pai. Homens não podem saber!

— O que? Agora existe assunto para mulher? — Rymura riu e sua filha balançou a cabeça positivamente. — Tudo bem, vou te deixar a vontade.

Yara suspirou, pressionando a mão contra o peito. Moveu sua cabeça um pouco mais para a lateral, conferindo se seu pai não estava lhe espreitando. Confirmado, nenhum sinal dos seus olhos por perto. Com um sorriso de satisfação, Yara continuou seus afazeres.

Esmagou as folhas e adicionou um pouco de água ao pilão, um líquido verde havia se formado.

Yara, então, colocou aquele líquido verde num pequeno frasco feito de barro e o selou com uma tapinha de madeira que entrou pelo buraco do frasco.

— Pronto!

Yara sorriu, guardando o frasco no bolso do seu vestido castanho. Em seguida, caminhou em direção ao quarto e abriu o famoso "baú do tesouro" que a outrora era de sua mãe. Retirou dali papéis bem antigos e uma pena com tinta.

Como uma escrava possuía tudo aquilo? A verdade é que aquilo tudo era fruto dos antepassados da sua mãe, uma relíquia de família.

Yara passou um pouco de tempo tentando escrever algumas frases naquele papel, mas com esforço conseguiu.

"Letra horrível" , pensava ela. Mas era melhor que nada.

Yara então levou consigo os papéis que havia escrito e seguiu para fora da casa. Fechou a porta de bambu, caminhando em direção a casa de sua amiga Jeziel, que ficava a poucos passos da sua.

Ao chegar perto de casa, encontrou os dois irmãos da Jeziel brincando juntos, eram gêmeos. Uma menina e um menino.

— Como estão, Saara e Marsh?

—  Bem. E você, maninha Yara?

— Bem. Quero pedir um favor a vocês. — Yara esticou a mão que continha o papel antigo. — Entreguem isso a Jeziel.

— Mas ela está em casa.

— Eu sei, mas entreguem a ela.

As crianças, confusas, levaram o papel  e correram para dentro de sua casa entregar o papel para Jeziel.

Nesse curto momento, Yara correu para se esconder por detrás de uma das casas.

— Yara? — Jeziel, que acabara de sair da casa, direcionava os olhos aos arredores, procurando sua amiga.

— Mas ela estava aqui — disse Marsh e Saara balançou a cabeça positivamente, dizendo:

— É verdade, mana Jeziel.

— Ela não acha que está um pouco velha demais para fazer isso?  — Jeziel voltou para casa e tomou consigo sua máscara. Com acenos e sorrisos, despediu-se de seus irmãos e começou a caminhar para o lugar que o papel que terá recebido de Yara indicava.

Em contrapartida, Yara a seguia por trás com os passos bem calculados para que ela em hipótese alguma, pudesse descobri-la. Ainda mais quando ela tinha o costume de sempre olhar para trás quando andasse pela rua.

— Esse é o local. — Jeziel fitava um rio cristalino escorrer enquanto um forte vento balançava seus cabelos.

— Obrigada por vir, Jeziel.

Jeziel direcionou imediatamente os olhos a menina que se aproximava, uma baixinha de olhos verdes e cabelos negros.

— Que brincadeira é essa, hein? Não é do seu feitio fazer isso.

— Foi necessário.

— Hã? Como assim?

— Preciso que me dê sua máscara.

— Quê? Para quê você quer?

— Eu preciso usar.

— Quero motivos, caso não, não te darei.

— Eu não queria ter que recorrer a isso... — Yara começou a caminhar em direção a Jeziel lentamente, ao passo que Jeziel tentava se distanciar mais da Yara.

— Você está estranha. Tem certeza de que está tudo bem com você?

—  Eu quero garantir que Miomura não se meta em mais loucuras, por isso preciso da máscara.

— Como assim? Me explica isso direito!

— Não há tempo. — Yara apressou os
passos e Jeziel tropeçou em uma pedra, caindo no chão. Gemeu de dor enquanto observava Yara tombar de traseiro sobre sua barriga. Sua boca abriu e Yara despejou o líquido que continha no frasco na boca de Jeziel. — Me desculpa, Jeziel. Por favor, não me leve a mal.

— O que você fez... — Os olhos de Jeziel se fecharam e ela tomou das suas mãos uma máscara em forma de águia.

— Por favor, quando acordar, guarde o meu segredo.

Dito isso, Yara saiu da beira do rio com o semblante todo entristecido. O líquido que ela havia dado era uma das ervas medicinais que se podia encontrar, especialmente no vilarejo de Mioria, ela tinha um efeito tranquilizante. Usadas muitas vezes para tranquilizar escravos com problemas mentais quando sofressem convulsões.

Yara colocou a máscara quando, próximo de certas casas do vilarejo, seu alvo era o chefe de aldeão. As portas de sua casa, elevou sua mão a porta, batendo nela vezes sem contas.

Uma de suas filhas, abriu, era sua filha casula.

Ahhhh! — recuou de susto, colocando a mão sobre o peito. — Que susto! — suspirou de alívio ao observar aquela pessoa de baixo para cima.

— O chefe aldeão está? — Yara engrossou a voz.

— Não, sinto muito.

— Sabe me dizer para onde ele foi?

— Para casa de um tal de Thomas. Mas quem é você?

Yara nem respondeu, começou imediatamente a correr em direção à casa do Thomas, que ficava a alguns quarteirões de sua casa. Correu, sem parar. E nem precisou chegar à casa do Thomas, pois encontrou o chefe aldeão pelo caminho. Estava acompanhado de alguns rapazes.

Yara gesticulou as mãos de um lado para o outro a fim de chamar a atenção do chefe aldeão. Como o chefe aldeão conhecia a linguagem dos mudos, percebeu imediatamente que aquela pessoa queria falar consigo.

— Sim?

Yara havia conseguido a atenção do chefe aldeão, eles estavam a sós entre algumas casas de barro.

— Sr. Chefe aldeão, quero que o senhor me leve junto. — Yara foi clara e objetiva, sequer tentou engrossar a sua voz.

— Uma mulher? Quem é você?

— Eu sou a Yara Mioria, filha do Rymura.

— Entendi. Seu irmão não lhe explicou que essa seleção é apenas para homens?

— Eu tenho habilidades e conhecimentos mais do que qualquer um desses que o senhor recrutou. Se eu for lá, terei como aprimorar as minhas habilidades.

— Muito presunçosa, não?

— Minha mãe me ensinou que mentir é errado. Estou apenas fazendo uso da verdade.

O chefe aldeão riu.

— Alura, é? Não duvido que ela tenha te ensinado tantas coisas, afinal, por muito tempo os seus antepassados lideraram o vilarejo de Mioria.

— Até que os seus antepassados tomaram o nosso lugar, não é?

— Não fale do que não sabe. Apenas volte para casa, eu não quero arranjar problemas com o Rymura.

— Eu não queria ter que recorrer a métodos tão baixos quanto esses, mas vejo que não terei escolha.

Hã?

— E se eu falasse para o vilarejo, o quão corrupto o senhor tem sido durante esses últimos anos? O que eles iriam pensar? Na quantidade de coisas que ganha vendendo o nosso povo — disse Yara. — Ah, é mesmo. Isso é do feitio da sua linhagem.

— Não sei do que você está falando, menininha. Vá agora e eu esquecerei essa sua falta de educação.

— Em quem você acha que eles vão acreditar? Numa simples e humilde escrava ou num chefe como você, com um histórico não tão limpo. Não é segredo para ninguém nesse vilarejo que você tem conexões profundas com os oficiais.

O chefe aldeão franziu os dentes, estava sendo confrontado com a verdade.

  — Se procurássemos na sua casa agora mesmo, encontraríamos muitas porções de alimentos, joias e muitas coisas vindas de Aclasia. Tudo isso por debaixo dos panos, tudo isso pela venda do nosso povo.

— Alura… aquela maldita... — O chefe aldeão cerrou suas sobrancelhas.  — Ela com certeza estragou seus filhos.

— Meça a língua quando for se dirigir à minha mãe, seu lobo em pele de cordeiro.

O chefe aldeão fechou os
olhos ligeiramente, suspirando.

— A verdade é que a balança humana tende a inclinar-se para a corrupção. Essa é a nossa verdadeira natureza. E com os seus antepassados não foi diferente.

— Balança?  Você simplesmente é uma pessoa podre. Não faça das suas atitudes um padrão para o comportamento humano.

— Você foi longe demais.

— Vai me levar junto ou não?

O chefe aldeão franziu os dentes, suas sobrancelhas estavam cerradas. Ele havia sido colocado contra a parede por uma menininha que ainda nem havia alcançado metade da sua idade.

                             (...)

— E foi isso que aconteceu. Depois, ele me deu essa máscara de um ex-arqueiro Aclasiano que acabou virando um oficial. — Yara elevou a máscara aos olhos daqueles dois.

Ahh, eu que pensei que o chefe fosse uma boa pessoa, afinal era tudo falsidade — Miomura suspirou, lembrando-se do rosto de Maísa. — Por que esse mundo está cheio de pessoas falsas?

— No que você estava pensando quando fez isso tudo, Yara? — questionou Gabriel, com um semblante de seriedade.

— Na família.

— Eu não sei o que mais faço com vocês dois. — Gabriel soltou um suspiro aborrecido. — Por caso, o vírus da loucura pegou em vocês? Porque as coisas que vocês fazem não são de uma pessoa normal!

— Eu tenho bons motivos — disse Miomura, direcionando os olhos a sua irmã. — Agora essa rebelde...

— Eu não podia ficar simplesmente parada. Você tem que admitir que todas as nossas ações, mesmo tendo sido arriscadas, nos trouxeram aqui.

— Ela tem razão. — Miomura balançou a cabeça positivamente. — Além disso, Gabriel, não adianta remoer o passado. O presente é o que mais importa.

— Vocês pensam que isso é um livro de aventura, não é? Em que vocês fazem o que vos dá telha e saem ilesos como os heróis da história. Lamento informar, mas isso é a mais pura realidade. E eu... temo que essas vossas atitudes impulsivas possam vos levar pelo caminho da morte.

Yara apenas colocou a máscara. Miomura tentou tocar no ombro do Gabriel, mas ele deu as costas e começou a caminhar.

— Gabriel...

Miomura havia esticado sua mão ao relento do vento. Aqueles dois perceberam naquele momento que, haviam machucado o Gabriel com suas palavras e ações.



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