Volume 1

Capítulo 3: A luz das estrelas

Uma voz ressoou em meio ao clamor do povo. Diferente das outras, essa despejava um grande ódio contra os capitães e todo e qualquer Aclasiano.

O povo, assim como os capitães e os soldados, ficaram espantados. Quem ousaria proferir palavras como essas para entidades reais? Era algo inconcebível. Pena de morte imediata recairia sobre tal indivíduo, qualquer um sabia disso. Muitos rebeldes serviram como exemplo ao longo do tempo.

No entanto, parece que mais um rebelde havia se levantado, este apresentava um olhar destemido e uma coragem de leão. Não aparentava temer a morte. Os soldados o olhavam com as sobrancelhas franzidas. O escravo em nenhum momento fraquejou, seu semblante estava possuído pela mais profunda das cóleras. Era como se o seu coração gritasse para que ele vomitasse tudo quanto tinha a dizer contra os Aclasianos.

E ele assim fez.

— Eu sou o Miomura Mioria!  — O jovem cerrou seus punhos fortemente, num semblante inabalável. — E estou farto dessa escravidão maldita!

Tão certeiro como uma bala, assim foram as suas palavras. Olhos arregalados, temerosos, vagavam pelo jovem. "Que coragem", murmuravam algumas pessoas, "coitado, vai morrer."

— Sua boca inunda o levará à tumba. Soldados! Do que estão à espera para executar esse verme dos vermes?

Dada a ordem, os soldados correram ao rapaz, as pessoas deram passagem aos soldados. No entanto, um homem com um porte físico forte colocou-se diante dos soldados que empunhavam as espadas e caiu de joelhos. Com as mãos fincadas no chão, suplicava pela vida do filho:

— Por favor, tirem a minha vida e não há dele! Ele não sabe o que diz!

Os soldados não ligaram para as palavras daquele homem e o chutaram no rosto. Um dos soldados pegou o garoto pela nuca e o fez cair de joelhos no chão, enquanto o companheiro preparava a espada para decapitar o rapaz que tentava resistir. Sua coragem estava prestes a transformá-lo em um cadáver.

— Para que todos vejam que não devem enfrentar os capitães! — A espada do soldado desceu rapidamente contra a nuca do garoto enquanto o pai observava com lágrimas aquela triste cena. Seu filho estava prestes a ser decepado. O povo havia se afastado para que o sangue não saltasse para suas vestes. Alguns cobriam os olhos, não querendo presenciar aquela cena grotesca acontecer.

No entanto, quando tudo parecia estar perdido, quando a espada estava a alguns centímetros de tirar a vida daquele jovem, outra espada interveio. Faíscas saltaram pelo atrito que aquelas duas espadas criavam.

— Melquiore, o que vem a ser isso? — questionou Valdes observando o irmão, era ele quem havia salvo a vida do jovem. Todavia, todo mundo ficou sem entender o porquê daquela ação, afinal o escravo havia enfrentado os capitães. Era justo que morresse.

— S-senhor, por que...? — O soldado removeu a espada, trêmulo, com os olhos arregalados. O povo murmurava com espanto sobre o que teria acontecido. O pai do jovem suspirou de alívio, não suportaria ver o filho perecer diante dos seus olhos.

Melquiore guardou a espada na bainha de sua cintura e olhou para o irmão que o lançava um olhar intimidador:

— Acho pouco a pena de morte para este verme — disse cuspindo para o garoto com o rosto voltado contra o chão. — Ele simplesmente iria morrer após ofender os capitães. Seria rápido, não sofria o suficiente. O melhor sofrimento é deixar ele vivo! Assim, com os seus olhos imundos, ele poderá presenciar os seus perderem suas vidas e depois a dele. — Chutou o garoto na face. Ele caiu no chão. — Eu mesmo vou me encarregar de colocar o pai dele e ele na linha de frente, assim morreram ambos de uma forma miserável! Serviram de meros brinquedos para os nossos adversários!

Melquiore cerrou o punho. Seu irmão o olhava seriamente, mas depois começou a rir. Os soldados estranharam a risada repentina de Valdes, mas logo o acompanharam.

— Dessa vez você se superou, Melquiore! Estou gostando de ver. Não tinha pensado no quão pouca a pena de morte seria para ele.

— Então, irmão... — Melquiore deu um sorriso forçado.

— Tudo bem, deixo esse garoto ao seu cargo. Faça-o morrer da forma mais cruel possível!

— Crueldade é o meu segundo nome — Melquiore sorriu. Poucos naquele momento haviam descoberto que por detrás daquele homem cruel estava um homem tentando ao máximo proteger aquele garoto. Por mais que suas palavras soassem duras, era o único jeito de o livrar da morte certa.

— Gostei. No entanto, eu não suporto mais o fedor dessa pocilga. Vamos logo embora daqui!

— É. Espero nunca mais voltar para aqui — disse Melquiore indo ao encontro do irmão mais velho. Os soldados o seguiram também, dando antes um sorriso maliciosamente para o garoto.

— Anotaram o nome daquele verme, não é, soldados? — questionou Melquiore olhando seriamente para os seus soldados. Um olhar gélido que surpreendeu o Valdes. Seu irmão nunca agiu assim. Sempre foi calmo e muito empático, no entanto, dessa vez, era como se Valdes visse seu próprio reflexo no irmão. Aquilo o deixava animado.

— Sim, senhor! Nunca nos esqueceremos do nome sujo que ousou proferir calúnia contra os senhores!

E assim, os capitães e os soldados saíram do vilarejo Mioria. Com a saída deles, uma voz levantou-se em meio ao povo. Era a de um homem na casa dos cinquenta, portador de alguns fios de cabelos brancos e dois pares de olhos castanhos. Ele era o responsável por liderar e representar os escravos em quaisquer coisas, no entanto, mesmo ele passava de um simples escravo.

— Precisamos fazer algo, meu povo! Isso não pode ficar assim! — Ele apontou o cajado ao garoto estatelado no chão. — Este garoto quase nos colocou em perigo, no entanto, ele falou o que muitos não tinham coragem de falar.

O chefe dos escravos era um dos poucos que havia reconhecido a coragem do garoto em enfrentar os capitães.

— O que sugere que façamos? Foi decretado! Não tem como... Nos resta apenas o fim — disseram alguns Miorianos com os rostos abatidos. De fato, não havia nada que se pudesse fazer, se não acatar as ordens do rei. O rei nunca gostou dos escravos, tão pouco os ouviria se o chefe dos escravos enviasse alguma carta para ele.

Em Aclasia, poucos escravos sabiam escrever, e as cartas de qualquer que fosse o seu pedido deveriam ser direcionadas a um oficial. Em seguida, o oficial avaliaria se a carta deveria chegar aos ouvidos do rei ou não. Este processo durava muito tempo, dependendo do humor do oficial.

— Eu vou pensar em algo. Não tem como escravos como nós participamos da guerra — disse o chefe dos escravos. O pouco de esperança que ainda havia estava depositada no chefe dos escravos. Ele havia livrado o povo de certos castigos do rei, como da vez em que sofreram um corte alimentício por não conseguirem cumprir a cota diária. Ele era bom em palavras, apesar de escravo.

O povo enfim se dispersou depois de algumas palavras de ânimo proferidas pelo chefe dos escravos. Poucos haviam restado ali. Miomura e o pai estavam ainda sobre o chão, refletindo sobre tudo o que havia acontecido há pouco.

O chefe aproximou-se do jovem e sentou-se ao seu lado. Cruzou as pernas e colocou a mão sobre os cabelos castanhos daquele jovem.

— O que você fez hoje quase colocou o povo em perigo e a sua vida também. Eu sei da tua coragem, meu jovem. Mas não volte jamais a ir contra os Aclasianos. Sua vida vale mais do que meras palavras de insulto.

— Mas...

— Sem mas...  — cortou o chefe, removendo a sua mão da cabeça do jovem. — Veja o seu pai — direcionou seus olhos marrons ao pai do jovem jogado no chão. Seu rosto manchado de areia expressava decepção.  — Veja como o deixou cabisbaixo.

— Desculpa.

— Vá pedir a ele. — O chefe bateu as costas do jovem. — Vamos, levante-se!

Miomura reuniu um pouco de forças que ainda lhe restavam e seguiu andando até o pai.

— Pai, eu...

— Vá para casa. Conversaremos melhor lá. — seu pai emitiu uma voz tênue e triste.

Miomura inclinou a cabeça e saiu caminhando em direção à sua casa, todo cabisbaixo. O chefe dos escravos olhou aqueles dois e foi ter com o pai do jovem.

— Ei, pegue leve com ele. Qualquer um queria falar o que ele falou.

— Quase custou a vida dele e provavelmente há de muitos. E agora nossas vidas estão em perigo, certamente morreremos.

— Eu vou tentar fazer de tudo para aliviar o vosso fardo. Não se preocupem, eu pessoalmente vou ter com o capitão.

— Não acho que vá resultar, mas obrigado — agradeceu e levantou-se do chão. — Eu não sei o que seria do nosso povo sem a sua liderança.

— Faço o que for necessário para o bem-estar do nosso povo. Agora vá, Rymura. Vá tomar um banho e tenha uma conversa moderada com o seu filho — disse o chefe com um sorriso gentil. Rymura, acatando as ordens do chefe dos escravos, seguiu em direção ao rio Aclá onde refrescaria a cabeça.

O rio Aclá era um extenso rio que percorria todo o reino de Aclasia e transitava por todo o continente ao vasto oceano. Considerado o rio mais grande e extenso de todo o mundo.

Esse rio servia como principal fonte de abastecimento de água para todo o reino de Aclasia.

 

                                (...)

 

Por outro lado, Miomura havia chegado a sua casa com a cabeça toda a doer, seu corpo estava todo dolorido pela queda e pelo chute do capitão. Mal conseguia andar direito, o trabalho de escravo não o ajudava a ter uma condição física perfeitamente boa.

Sua casa, como a maioria das outras, era feita de palha e barro. A porta era constituída por bambus, podendo ser aberta facilmente. 

Miomura entrou na casa e observou a irmã mais nova bem no canto da parede. Ela estava polindo alguns utensílios feitos de barro. Se apoiava em uma cadeira feita de barro para chegar à estante por ser baixinha.

Oh! Miomura... — Yara desceu da cadeira de madeira e olhou para o irmão, enquanto segurava um pano castanho. — O que aconteceu lá fora?

Yara havia escutado o alvoroço lá fora, mas sequer se deu ao trabalho de sair. Não gostava se meter em confusão, possuía uma forte preferência em ficar no seu canto.

— Nada. — Miomura, de cabeça inclinada, seguiu andando ao seu quarto. Pelo tom de voz fria que o irmão havia usado para se expressar, Yara concluiu que algo havia acontecido, mas ele não queria contar. Deu os ombros e voltou a polir os utensílios, não era da sua conta mesmo. Quase sempre seu irmão chegava aborrecido a casa, algumas vezes reclamando dos trabalhos que exercia durante o dia. Estava cansado da maldita escravidão.

No entanto, aquele nem dia de trabalho era, não havia motivo para o seu irmão voltar aborrecido. Só por curiosidade, ela decidiu ir ao quarto retirar a resposta da sua boca à força.

— Conta para mim! — Yara sentou-se na cama em que seu irmão estava deitado. O colchão era feito de palha e algodão, enquanto a base era feita de madeira. — E esse machucado? — Yara observou o inchaço na sua bochecha, seu olho direito também havia inchado. Estava na tonalidade roxa.

— Não foi nada, eu disse.

— Não me diga que brigou com o Thomas novamente?! Caramba, vocês nunca mudam! — ela riu.

— Eu preciso dormir, só isso.

— Não brigou com o Thomas, né? Se não estaria reclamando aos cantos como sempre faz.

— Dá para me deixar em paz! — Miomura afundou o rosto no travesseiro. Yara deu um suspiro aborrecido e saiu do quarto, fechando a porta de bambu com força.

Após haver saído do quarto, Yara deu de cara com o pai. Suas vestes estavam todas encharcadas, gotas de águas pingavam sobre aquele piso feito de barro.

— Pai, por que suas vestes estão encharcadas? Não me diga que se atirou ao rio novamente?

— Como adivinhou?

Yara riu.

— É óbvio!

Seu pai riu, mas passados alguns segundos seu sorriso foi embora.

— Miomura... onde ele está?

— No quarto. Ele chegou aqui bem abatido, não sei o que deu nele hoje.

— O que deu é que ele quase morreu hoje.

Yara arregalou os olhos, um espanto havia tomado conta do seu semblante.

— Como assim? Hoje não era suposto ser o dia de folga, dia de paz.

— Era, mas não é mais.

— O que aconteceu, pai? Me explica.

— Aconteceu que estamos em guerra.

Aquela declaração fez o coração de Yara desabar. Ela sentou-se e tomou um pouco de água enquanto o pai lhe contava sobre o motivo do seu irmão quase ter sido morto. Detalhe por detalhe, deixando Yara chocada a cada relato.

— Entendi. Acho que isso é uma forma de diminuir a população para evitar futuras retaliações — emitiu Yara. Ainda jovem, ela apresentava uma boa capacidade de analisar e assimilar uma dada informação, mesmo naquelas condições precárias em que a educação era escassa. Era por essas e outras que os tiranos não queriam que o povo aprendesse a ler e a escrever. Sabiam dos perigos que isso poderia trazer ao seu reino, uma inevitável destruição.

— Também pensei nisso. Mas o ódio desse rei por nós é imenso. Acho que isso é mais algo pessoal por aquilo que aconteceu há anos.

— Pode ser.

— Bom, eu preciso conversar com o seu irmão agora. Se quiser pode sair, assim não terá que escutar os altos berros — disse Rymura.

— Eu vou ficar. Somos uma família, não quero que nada se resolva em pancadarias.

— Não vai.

— Eu vou ficar e não se fala mais nisso. — Yara sorriu e foi até o quarto chamar seu irmão, no entanto, recebeu roncos como respostas. Ele estava dormindo e ela achou por bem não o acordar naquele momento. — Acho que essa conversa ficará para depois.

— E pensar que ele ainda tem a coragem de dormir depois de tudo. Intragável!

— Não fale assim, pai. Miomura sempre foi assim, revoltado. Desde sempre ele teve uma boca afiada.

— Só que hoje eu vou cortar de uma vez por todas essa boca afiada. Somos escravos, nossas vidas estão nas mãos deles. Não podemos fazer nada! Absolutamente nada! Custa entender isso? — Rymura encostou o rosto na mesa, lágrimas fluíam dos seus olhos. A dor de quase ter perdido um filho o coroia por dentro, mas a dor era maior por pensar na morte certa para ambos durante a guerra. Como ficaria Yara? Ele não queria pensar nisso.

 

                            (...)

 

A noite, quando a noite chegasse, o vilarejo de Mioria era iluminado por tochas reluzentes. Na maioria das vezes, devido ao cansaço dos Miorianos, a noite trazia um grande silêncio ao vilarejo. No entanto, desta vez seria diferente. Altas vozes perturbavam o profundo silêncio mantido na maioria das noites.

— Miomura, o que fez hoje quase te matou! Tem noção do que fez?! — Rymura repreendia o filho duramente pelo ocorrido de hoje. No entanto, Miomura parecia não dar muita importância às palavras do seu pai.

— Eu só falei o que estava entalado na garganta de todo o povo de Mioria!

— Do que adianta coragem... Se no final viraria apenas um cadáver! Hã?! — Rymura bateu com a mão na mesa, a fazendo balançar. Algumas gotículas de saliva que saíam da sua boca eram jogadas ao vento por tanto gritar.

— A gente vai morrer mesmo... — Miomura olhou severamente para o pai.  — Se não for de escravidão... Será pela guerra! Eu fiz o certo, diferente de muitos de vocês que aceitam a escravidão como algo normal!

— Não! Não! Não! — Rymura contestou com o cenho franzido. — Não! Ninguém aceita a escravidão como algo normal aqui! Nós escravos não podemos fazer nada, entenda isso!

— A mãe fez o certo em fugir dessa vila imunda. Queria que ela tivesse me levado junto!

Aquelas palavras soaram como ingratidão aos ouvidos de Rymura. Colérico, ele pegou um copo de barro e atirou contra o rosto do filho. O copo de barro quebrou ao acertar a testa de Miomura. Rymura suspirou ofegante, deixando seus dentes a mostra.

— Não ouse falar daquela mulher! Ela abandonou a família!

— Viu só?! — Miomura passou a mão na testa, sentindo um galo bem no meio. — O quão tolos vocês são!

Nesta altura, Yara acabava de entrar pela porta com um pote de água em suas mãos. Seus olhos verdes enfrentavam ambos, pai e filhos. Yara observava seus rostos carregados de cólera, o ar estava pesado. Aquilo não acabaria bem se ela não interviesse.

— Ei, poderíamos resolver isso como uma família, sem brigas, por favor!

— Yara... — disse Miomura olhando para sua irmã. — Diga ao pai que eu tenho razão. Devemos nos rebelar de uma vez por todas, se vamos morrer na guerra. Devemos empunhar as espadas e nos aliar aos nossos adversários com um único objetivo!

— Para... Para com isso! — gritou Yara, deixando cair o pote de água. O pote quebrou em estilhaços de barro, a água começou a escorrer pelo chão. — Quem você pensa que é... Hã? Um escravo! Cresça! Você não é mais criança para não entender em que posição nós estamos!

— Mas até quando vamos sofrer? Temos que dar um fim nisso!

— Você ainda não entende. Nós nascemos escravos e morreremos escravos. Essa é a dura realidade, aprenda a conviver com ela!

Yara jazia em choro:

— Não podemos nada contra um exército!

Miomura em profundo silêncio, enquanto seus olhos esverdeados eram consumidos por lágrimas, correu a porta de bambu e saiu por ela sem fechar.

— Ei! Para onde você vai?! — Rymura gritou, olhando para porta aberta que ilustrava a escuridão noturna.

— Deixe ele pai. Um dia ele com certeza alcançará maturidade suficiente.

— É tarde demais, vamos morrer...— Rymura cobriu o rosto e seguiu andando para o seu quarto. — É tarde demais.

— Pai... — Yara sentou-se num dos bancos, esfregando os olhos numa tentativa falha de frear as lágrimas de saírem. — Mamãe, por que nos abandonou? Se por acaso estivesse aqui... Talvez não chegaríamos a esse ponto.

Yara sentia falta da sua amada mãe, fazia bastante tempo que ela os havia abandonado.

 

                            (...)

 

Na beira do rio Aclá, Miomura enxugava o rosto com as dóceis águas daquela correnteza. Seu rosto todo enrugado foi ficando cada vez mais macio, assim como sua raiva passava aos poucos. Miomura cogitava em sua mente voltar para casa e pedir desculpas ao pai por tudo quanto disse.  Ele percebeu que estava errado e sua imaturidade quase o havia levado à morte.

"Certo! Decidido, eu vou me desculpar!"

Quando estava prestes a sair da beira do rio, Miomura sentiu uma cutucada no ombro. Instintivamente, virou-se para contemplar quem era a pessoa que o tocava. Tomou um susto ao vislumbrar uma máscara de águia assustadora e caiu ao rio com o coração disparado.

Buuuu!

— Quem é você? — Miomura observava a pessoa que o havia assustado. Possuía longos cabelos castanhos e um vestido marrom. Presumiu que fosse uma mulher devido ao longo cabelo e ao vestido.

— Não conhece mais a minha voz? — A menina retirou a máscara assustadora em forma de águia do rosto e relevou a sua aparência ao Miomura que flutuava sobre água.

— Jeziel, é você... — disse Miomura num tom não tão surpreso. Jeziel há anos gostava de o surpreender, mas nunca tinha usado aquela máscara contra ele.

— Eu mesma! — sorriu.

— O que você faz aqui?

— Eu é quem deveria perguntar.

— Como assim  é você quem deveria perguntar? Eu perguntei primeiro!

— Mas quem te viu primeiro fui eu.

Ah, me tira logo daqui então. — Miomura esticou uma das mãos ao alto.— Depois eu te conto tudo.

— Certo. Certo. — Jeziel sorriu. Agachou-se e esticou o braço ao Miomura. No entanto, com um sorriso travesso, ele a arrastou para dentro do rio, ambos afundaram. As águas salpicaram.

— Seu idiota! Por que fez isso? — Jeziel emergiu das águas, balançando os seus cabelos de um lado para outro. Suas madeixas encharcadas espalhavam água para ali e aqui.

Miomura cuspiu água da boca e suspirou.

— Eu? Idiota? Foi você quem começou!

— Então é olho por olho, né? — Jeziel soltou um sorriso malicioso e arremessou ao Miomura um bocado de água que havia reunido nas suas mãos. — Então toma uma enxurrada de água!

Miomura colocava o braço contra os olhos para que nenhuma das gotículas de água arremessada pela Jeziel chegasse a entrar em seus olhos.

— E dente por dente! — Miomura arremessou um bocado de água reunida em suas mãos a Jeziel. Ambos trocaram arremessos de água por um longo tempo e depois se cansaram.

— Chega. Vamos ficar doentes se continuarmos nas águas. — Jeziel começou a nadar em direção à terra firme. O rio era fundo e espaçoso, mas com um pouco de esforço eles chegaram à superfície.

— Eu não me importaria de ficar doente, sabe. Talvez assim não comparecesse ao trabalho amanhã.

— Não fala isso nem brincando — riu Jeziel, exprimindo a água que havia se amontoado nas suas vestes em plena superfície.

— E então... Vai falar o que veio fazer aqui? — Miomura removeu a camisa do corpo. Assim, era mais fácil exprimi-la.

— Eu vim observar as estrelas. Sabe, tinham uns vizinhos gritando bem alto e eu não conseguia apanhar sono.

— Esses vizinhos são um incômodo, não é?

— Muito. Noite é hora para dormir e não para discutir.

— Eu sei bem quem são esses vizinhos— sussurrou Miomura, colocando de volta a camisa. Em seguida, ambos se sentaram sobre a areia e observaram as numerosas estrelas do céu.

— Sabe? Ah! Você ainda não disse o que veio fazer aqui.

— O mesmo que você.

— Entendo. — Jeziel cruzou as pernas e agarrou os joelhos. — Ei, posso te fazer uma pergunta?

— Pode.

— Qual é o seu sonho?

Os olhos de ambos deixaram de admirar as estrelas e se encontraram.

— Eu quero ser livre.

Jeziel riu.

— Acho que todo mundo quer isso, Miomura! — suspirou. — Mas enfim... O que vai fazer depois de alcançar a liberdade?

— Partir em uma jornada louca em busca da magia! — Miomura levantou o punho com um sorriso, mas cada vez mais seu sorriso foi desaparecendo enquanto descia os punhos. — Ou pelo menos era o que eu queria quando criança, mas agora eu almejo construir um reino sem escravidão, um reino no qual todos possam ser livres e felizes.

Hum, então posso te acompanhar nessa jornada muito louca?

— O que? Não, eu disse que era o meu sonho no passado, agora não quero mais.

— Isso não é verdade. — Jeziel tocou no peito do jovem. — Tá se engando a si mesmo, Miomura.

— Eu já falei! E quer saber, agora é sua vez! Qual é o seu sonho?

— Mudando de assunto, hein?

— Apenas responde.

— Bem, eu não tenho nada de tão interessante como sair em uma busca de magia ou construir um reino, eu só quero ter uma vida boa. Uma vida em que não precise trabalhar como escrava. Em que eu possa comer aquelas comidas dos nobres, sabe? Deve ser algo bom.

— Que ambição fraca.

— Eu disse que não era tão interessante, mas ainda assim, acho uma ambição bem normal para uma escrava.

— Eu não gosto desse termo" escrava". Não combina contigo.

— Mas é o que eu sou. É o que todo Mioriano é.

— Pode escrever: um dia eu te farei virar uma rainha como você merece, Jeziel! — Miomura bradou às estrelas. Jeziel corou e deu um sorriso.

— Claro. Mas para isso, você precisa parar de jogar a sua vida fora. Fiquei muito decepcionada com o que você fez hoje. Maria e Gabriel ficaram tristes.

— Eu sinto muito — disse num tom baixinho, seus traços se reuniram em uma expressão triste.

— Nunca mais volte a se colocar em perigo. Hoje foi um milagre divino, mas amanhã pode não haver um.

— Eu prometo que nunca mais! — Miomura uniu as duas mãos como um símbolo de promessa. — Nunca mesmo! Eu não voltarei a me colocar em perigo!

Jeziel sorriu e voltou os olhos as estrelas brilhantes naquele céu noturno.

— Bom menino.

A noite foi passando. Jeziel e Miomura continuaram conversando por um longo tempo. A amizade desses dois jovens era a única coisa que os escravizadores não podiam roubar.



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