Volume 1

Capítulo 2: Declaração de Guerra

Passados alguns minutos de tanta espera, o rei pôde contemplar a abertura da porta. Por ela entravam dois homens de armaduras prateadas e cabelos castanhos que chegavam na altura do pescoço. 

Pararam a poucos metros do trono e encurvaram a cabeça, voltando os seus olhos finos e amendoados ao chão prateado enquanto colocavam o punho contra a couraça da armadura.

O rei balançou a cabeça ligeiramente. Os dois levantaram a cabeça. 

— Meu rei, a que se deve o seu chamado? — emitiu Melquiore com os seus olhos azuis postos no rei. Observava o seu rosto, não era um dos melhores que o rei havia alguma vez feito. Claramente algo teria acontecido, mas o que seria? Melquiore logo saberia. 

O rei apontou para um dos pilares. Aqueles dois homens direcionaram seus olhos para ali, podendo contemplar uma bola feita de papel.

— É melhor que vocês leiam a carta.

Ah... Certo. — Melquiore caminhou para o pilar e pegou a bola de papel, retornando para o pé do seu companheiro.

Valdes sorria maliciosamente enquanto observava Melquiore desembaraçar aquela carta toda amassada, as letras parecendo cada vez mais tortas.

Tendo terminado de deixar a carta legível, Melquiore colocou seus olhos azuis naquelas letras escritas a tinta preta.

Saudações, rei Araque Aclasia. Primeiramente, quero desejar-lhe um bom dia. Não tenho muito a dizer, então preste bem atenção. Eu, a rainha do reino de Acácias, o reconheço como um perigo eminente ao meu reino, não só, à humanidade também. Você mancha a coroa que usa com as suas ações. Sequer deveria possuir o título de rei, não lhe merece. Estou declarando guerra contra o senhor! Dentro de duas semanas invadirei o seu reino. Prepare-se! 

— Essa rainha está louca?! — O rosto de Melquiore jazia em fúria. A carta que ele havia colocado tanto esforço em deixar em boas condições agora estava sendo amassada por suas mãos ásperas. — Declarando guerra sem motivações aparentes! 

— Com certeza ela deve achar que é uma rainha absoluta com força suficiente para subjugar Aclasia — comentou Valdes a respeito da carta. 

— Eu nunca pensei que aquela mulher pudesse reunir coragem de ir contra mim. Ela não gostar de mim, já sabia, mas declarar guerra é algo que eu não esperava — emitiu o rei. Lembranças desagradáveis da última reunião que teve com a rainha vieram à sua mente.

— Senhor, tem certeza de que essa carta é mesmo da rainha Sophia?! Eu não vejo motivos para entrarmos em guerra — Melquiore ainda estava incrédulo quanto à declaração de guerra. Ele não via motivo algum para a guerra. Cogitava em sua mente muitas coisas, mas não encontrava nada que levasse a uma declaração de guerra. Talvez fosse a escravidão, mas pouco provável, visto que a rainha teria mantido a aliança com o reino de Aclasia mesmo sabendo disso. 

— A letra é dela. O selo cravado na carta também evidência. Não há dúvidas. 

Originalmente, as cartas oficiais, escritas pela corte real, eram seladas por um anel real que apenas os reis tinham em mãos. Assim, evitava qualquer risco de uma carta aleatória ser enviada em nome do rei, sendo que não. Embora houvesse risco de roubarem o anel, o que era pouco provável. 

— Mas assim ela está quebrando um acordo de paz de anos. Assim... 

— Assim ela é uma mal-agradecida — concluiu Valdes.

O acordo de paz havia sido firmado há anos depois da horrenda partilha da terra de Mioria e este perdurou até a atualidade. O acordo de paz empunha algumas regalias aos participantes, como: o livre acesso a ambos os reinos. Livre exportação e importação de produtos. Ajuda mútua em caso de algum problema que o reino não pudesse resolver. No entanto, isso tudo foi quebrado com uma simples carta que enunciava uma declaração de guerra. 

Valdes via a afronta da rainha como um sinal de ingratidão, visto que o reino de Aclasia havia lhe feito muitos favores durante esse acordo de paz. Favores esses que o reino de Acácias ainda não havia retribuído. 

— Essa não é mais uma razão para nos questionarmos o porquê disso tão repentinamente? — perguntou Melquiore novamente, ainda não lhe vinha à realidade a declaração de guerra. Guerra é uma palavra muito forte. Uma palavra que na maior parte das vezes significava desgraça, fome e morte. Sim, isso é o que a guerra trazia, destruição. 

— É nisso que dá colocar crianças como governantes — afirmou o rei. 

— Meu rei, mesmo ela tendo iniciado o reinado ainda nova, não há justificativa... Ela tem conselheiros — disse Melquiore. 

— O rei é a lei, a ordem. Se ele diz algo, não há o que contrariar — emitiu o rei. Valdes assentiu em conformidade. No regime monárquico, o rei detinha poderes absolutos. Se determinasse algo, nada o podia parar, se não, a morte. 

— Uma afronta dessas não deve ser tolerada, meu rei — disse Valdes olhando para o rei com o semblante em profunda seriedade. — Vamos desmantelar o seu reino e tomar o seu povo como escravos. 

— E assim faremos, Valdes — confirmou o rei. — Farei questão de deixá-la viva para presenciar toda minha glória! 

— Meu rei, peço que me deixe viajar a Acácias. Tenho a certeza de que essa declaração pode ser revertida. Guerra é algo pesado, muitas vidas se perderão — emitiu Melquiore. Seu coração pensava no povo e nos seus soldados. Ele achava uma banalidade vidas se perderem por uma simples carta. Não havia motivo para guerra. 

— Um rei não volta atrás em suas palavras — declarou o rei. — Além disso, eu mesmo não quero que essa declaração seja revertida. Ela me desafiou, então pagará bem caro por isso. Dá pior forma possível! 

A fúria estava nítida nos olhos do rei. Seu punho desceu contra o braço do trono com imensa força, gerando um leve som que ressoou por toda a sala.

— Como desejar, meu rei — assentiu Melquiore. Ele percebeu que contestar o rei faria ele duvidar da sua lealdade e obediência. — Meu rei, peço humildemente a sua permissão para evacuar o povo que vive nas proximidades para um lugar seguro. 

— É claro, eu planejava fazer isso. 

— Obrigado, meu rei! 

— Eu só acho que eles nem conseguirão adentrar ao reino. As muralhas nos dão vantagem, precisamos apenas manter a guerra dos lados de fora — observou Valdes.

— Nunca se sabe. Todo cuidado é melhor. 

Ah, como estávamos em guerra... — O rei encostou um dos punhos contra a bochecha, seus lábios formando um sorriso malicioso. — Quero que transmitam as minhas palavras aos escravos. 

— O senhor também pensa em os afastar. Que atitude benevolente, meu rei! — Melquiore deu um sorriso inocente.

— Todos os escravos homens que tenham idade igual ou superior aos dezoito anos devem participar da guerra na linha de frente. 

Enquanto o sorriso de Melquiore diminuía, o do Valdes apenas aumentava. O rei havia ido longe demais. Colocar escravos que não sabiam lutar na linha de frente era um completo absurdo. Era fatalidade na certa. 

— Senhor, eles certamente morreram! E isso seria uma grande perda para o reino! — Melquiore defendia os escravos visando os interesses do reino. Ele estava certo, a mão de obra reduziria drasticamente. Principalmente por ela ser propiciada pelos jovens de idade igual ou superior a dezoito anos. 

— Eu achei fascinante, meu rei! Com aqueles escravos na linha de frente, as nossas perdas com certeza reduziram. 

— Valdes retirou as exatas palavras da minha boca. Deveria aprender com ele, Melquiore. Aqueles escravos apenas têm se multiplicado ano após ano, não fará mal se alguns deles forem aniquilados na guerra em prol do bem-estar do reino. Ou quer que mais pessoas do seu povo se firam? 

— Ainda temos obras por acabar, vossa majestade — Melquiore destacou um dos pontos cruciais para o desenvolvimento do reino. — Se perdermos os escravos... 

— Ainda tem os de idade inferior a dezoito, eles podem dar progressão. Não vejo problema nenhum. 

— O senhor... 

— O que foi, Melquiore? Acaso sente pena dos escravos? — Cortou Valdes com um olhar gélido. 

— Não, estou pensando no bem-estar do reino apenas. Escravos são escravos. 

— Melquiore, por acaso você está dizendo que eu, como rei, não estou pensando no bem-estar do reino? — As sobrancelhas do rei franziam de descontentamento enquanto ele batia o punho contra o braço do trono.

— Peço perdão, meu rei! O senhor é a autoridade nesse reino e tudo o que diz é o certo — Melquiore inclinou a cabeça, posicionando o punho contra o peito.
 Tal demonstração de respeito alegrou o rei. Ele desfez as suas sobrancelhas franzidas e estendeu o braço aos capitães: 

— Muito bem. Vão agora, preparem os soldados e executem tudo quanto eu disse!

Ambos capitães inclinaram a cabeça em respeito ao monarca e saíram da sala do trono a passos largos para executar suas ordens. As portas se fecharam, deixando o rei só naquela sala enorme.

Ele levantou-se e pegou um quadro atrás do trono. Sentando-se novamente, começou a observar o retrato de uma moça de cabelos castanhos e olhos azuis, enquanto passava a mão por cada parte daquela pintura.


                              (...)

    
                    Vilarejo de Mioria 

 

Vilarejo de Mioria, um lugar localizado na parte inferior da cidade de Aclaria.  Na sua maioria, era repleto de casas feitas de palha e barro, tendo algumas árvores e plantas como adorno distribuídas em diferentes pontos.

Os raios solares chocavam contra as casas e árvores do vilarejo, produzindo sombras que serviam de proveito para várias pessoas. Hoje era o dia em que metade dos Miorianos estava presente no vilarejo. Isso porque para alguns dos Miorianos hoje era dia de folga. Em sua dita benevolência, o rei concedeu um dia de folga à metade dos Miorianos enquanto os outros trabalhavam nas obras. Era uma escala, enquanto um grupo repousasse nesse dia, o outro estaria trabalhando. 

Tirando a noite, esse era o dia em que realmente podiam descansar de seus trabalhos e pudessem ter algum tempo para passar em conjunto, ao lado de seus familiares e amigos. 

Hoje o vilarejo estava em grande alvoroço, os Miorianos estavam aproveitando bastante o seu tempo. Todavia, mal sabiam a nuvem negra que lhes sobreviria. Homens em armaduras prateadas atravessavam o pequeno portão de bambu que cercava o pequeno murro de barro do vilarejo. Eles estavam acompanhados de alguns soldados. Os que os viram se agitaram, logo a notícia de que soldados se aproximavam da vila se espalhou, era algo que não acontecia bastante. Soldados no vilarejo eram prenúncio de algo péssimo. 

— Que lugar mais repugnante! — Valdes cuspiu no chão e enterrou a saliva com a pequena areia puxada por suas sandálias. — Tínhamos mesmo que pisar nesse lugar imundo? 

— Ordens do rei, você mesmo ouviu — emitiu Melquiore observando o que seria aos seus olhos uma grande imundície. Animais domésticos vagueando de um lado para outro e crianças com roupas esfarrapadas brincando no lamaçal. 

— Façamos isso logo. — Valdes olhou para um dos seus soldados à direita. — Reúna essas pragas. 

O soldado assentiu com a cabeça e prosseguiu adiante, gritando aos cantos: 

— Atenção, escravos! Aproximem-se! Os capitães Valdes e Melquiore estão aqui! — O soldado gritava repetidas vezes aos escravos para que se aproximassem. Gradualmente, os escravos se achegavam ao soldado que gritava pelos cantos. 

Depois de algum tempo, uma enchente de escravos estava em frente aos capitães e aos soldados. Os soldados que acompanhavam os capitães soltaram suas espadas e estabeleceram limite entre os escravos e os capitães, segundo as ordens de Valdes. Ele não queria que aquela gente respirasse o mesmo ar que ele e muito menos, por descuido, o pudessem tocar. 

— Acha que é o suficiente, senhor? — questionou o soldado que há instantes não parava de gritar. 

— É claro, do jeito que são essas pragas, farão a informação chegar aos outros em questão de segundos. Mesmo os escravos do norte e centro de Aclasia saberão! 

— Com certeza, senhor! — O soldado sorriu e retomou a sua posição ao lado dos seus companheiros, que faziam limite entre os capitães e o povo. 

— Como é você quem está dando as ordens, seria melhor que falasse de uma vez por todas. — Melquiore que estava de braços cruzados, encarou Valdes com um semblante de seriedade.

— Já que você diz... — Valdes tomou a dianteira. A multidão murmurava entre si sobre o que teria levado à presença dos capitães no vilarejo de Mioria. Algo que raramente acontecia. Um evento único, podia-se dizer. 

— Pragas! — gritou Valdes. Demorou cerca de alguns minutos até que se fizesse silêncio completo naquela multidão. — Bom... — Com a completa atenção do povo, Valdes estava prestes a iniciar sua fala. Ele mal podia esperar pela reação daquela gente ao saber que entrariam na guerra; ao saber que suas vidas correriam sérios perigos. 

— Eu sou o Capitão Valdes Aryane, para quem não sabe. Infelizmente, tive que vir a mando do rei a esse lugar medíocre. No entanto, serei compensado por seus rostos em profundo desespero após ouvirem o que eu tenho a dizer — Valdes sorriu maliciosamente. O povo não entendia nada do que ele dizia, mas sabia que boa coisa não era. Outro murmúrio tomou conta da multidão, milhares de questões eram lançadas a deriva do vento. Perguntas como: Como assim? O que ele quer dizer com isso? Droga, o que fizemos dessa vez? 

Um toque de desespero havia se instalado em meio ao povo e Valdes ainda nem tinha anunciado as palavras do rei. Aquelas palavras que eram como sentença decretada ao povo de Mioria. 

— Calem-se! — bradavam os soldados enquanto levantavam as espadas ao alto. Com tremor, o povo retornou ao silêncio profundo. 

— Estamos em guerra! — Valdes declarou. Aquela simples declaração de Valdes foi suficiente para causar um alvoroço em meio àquela multidão. A simples palavra guerra já causava um desespero em seus corações. Em uma guerra o escravo tinha pouco valor, não necessitava de proteção. Mais do que tudo, eles eram os que mais sofriam. 

Muitos podiam ser tomados pelos soldados adversários como escravos, ou mortos, ou ainda, as mulheres poderiam sofrer abusos. Tudo poderia acontecer em uma guerra. 

— Nããããoooo! Como assimmm?! 

Não paravam de surgir questionamentos e indignação, vãs. Um escravo não tinha palavra. Apenas por estar vivo, deveria estar grato. Sua vida não valia nada, não eram considerados seres humanos, mas sim, ferramentas descartáveis. Essa era a triste realidade. 

— Calem-se! — os soldados bradaram novamente. Precisaram gritar vezes após vezes para acalmar aquele povo agitado. 

No entanto, aquela calmaria não duraria muito. Valdes estava prestes a pronunciar as palavras que seriam como uma facada no coração para aquela gente. Um tiro certeiro, algo desumano. 

— Todos os escravos homens com idade igual ou superior aos dezoito irão participar da guerra, sem exceção! — Valdes declarou com um sorriso malicioso. Agora não se importava mais com a gritaria daquele povo. Agora, aquele som que perturbava os seus ouvidos, trazia-lhe alegria. O quão prazeroso era ver aquele povo se debatendo de dor. Alguns, de joelhos, rasgavam suas vestes. Lágrimas caíam sobre o solo, o povo clamava por misericórdia. Sua vida já era tão sofrida, eles aceitavam viver de forma miserável, contanto que estivessem vivendo. 

— Quanto sofrimento, chega a ser comovente. Eu não sabia que pragas tinham sentimentos — Valdes riu, olhando para aquela gente que desesperadamente gritava para que não levassem seus entes queridos para guerra. Gritos de mães clamando pelos seus filhos. O coração da maioria dos jovens havia desabado, os velhos talvez nem passassem daquela noite. Como um escravo que apenas sabia cultivar, construir e servir poderia empunhar uma espada contra um exército de guerreiros bem treinados? Apenas com um milagre. 

Por outro lado, Melquiore observava aquela toda cena em silêncio. Seus olhos aos poucos perdiam aquele brilho cristalino, um vazio tomava conta do seu coração. Ele não se deleitava com aquele sofrimento, diferente do seu irmão. Tinha empatia pelos escravos, eles também eram seres humanos. Feitos do mesmo osso e da mesma carne que a sua. E para todos, o fim era o mesmo. Então, por que tanta distinção? Por que a falta de empatia? Melquiore não tinha a resposta, apenas estava seguindo as ordens do rei. 

Dentre todas as vozes de desespero, uma suave e linda voz ecoava no meio da multidão agitada. Era uma criança, ela puxava o vestido da mãe para lhe chamar atenção, pois notava em seu rosto algumas lágrimas. 

— Mamãe, o que é guerra? — questionou a menina que nada sabia sobre o mundo em que vivia. Uma pergunta inocente, no entanto, aterradora. — O irmão tem dezoito anos? 

Como explicar a uma criança um conceito tão profundo e destrutivo como a guerra? 

Para aquela mulher, não era possível fazê-lo naquele momento, naquele tempo. O silêncio era a única resposta que ela podia dar. A menina logo percebeu que se tratava de algo que entristecia a mãe ao ponto de fazê-la chorar — o que a fez acompanhar o choro da mãe, deitando lágrimas sobre aqueles finos grãos de areia. 

— Eu não aguento mais... — uma voz, tão baixa que não se podia ouvir, sussurrava em meio à multidão agitada. Suas veias espreitavam as extremidades da testa, suas sobrancelhas estavam franzidas e lágrimas caíam dos seus olhos. — Ei, covardes repugnantes! 

Sua voz tomou uma proporção gigantesca: 

— Quem vocês acham que são?! Para chegar em nosso vilarejo e vomitar porcarias de suas bocas! 

Aquelas palavras, dentre todas, foram as que mais se destacaram em meio ao clamor do povo por misericórdia. Mas quem? Quem falava com tanta ousadia? Os prantos cessaram e todo o povo de Mioria silenciou-se ao ouvir palavras que exalavam determinação e confiança. Uma linha reta abriu-se na multidão, denunciando o dono de tais palavras. 

— COMO OUSA, VERME? COMO OUSA?!



Comentários