Volume 1

Capítulo 27: A mestra do arco e flecha

— Na verdade, a Yara está na casa da Maria!

— Na minha casa? — indagou Maria, pressionando a mão contra o peito enquanto olhava para Jeziel com estranheza.

— Como assim? Não estou entendendo mais nada. — Rymura olhou para Jeziel com um semblante de indagação.

— Bem… Acontece que eu e Yara, na noite de ontem, fomos ao rio e ficamos lá por muito tempo. Depois disso, é que fomos à casa da Maria, mas quando chegamos lá, ela estava dormindo e então preferimos não a acordar.

— Espera, então quer dizer que Yara está dormindo até agora na minha casa?!

— Sim, isso. — Jeziel balançou a cabeça. — Ela disse que havia de dormir no quarto do Gabriel. Então deve estar lá!

— Ah, entendi — Rymura suspirou, suavizando as batidas de seu coração. — Menos mal.

— Mas é estranho… — Maria mal teve tempo de terminar a sua fala. Jeziel puxou sua mão abruptamente, fazendo-a cambalear alguns passos para frente. Com um sorriso e aceno, Jeziel pegou as duas vasilhas e colocou em seus braços, correndo em direção à Maria. Empurrou-a mais para frente enquanto continuava a sorrir e acenar para Rymura, que levantava uma de suas sobrancelhas, confuso.

— Desculpa, Tio Rymura! É que precisamos mesmo de tirar a água no poço, porque estamos morrendo de sede!

Uma desculpa mal formulada, mas serviu.

— Fracamente, esses jovens de hoje… — Rymura sorriu, balançando a mão para aquelas duas meninas, que andavam em direção ao poço ainda cheio.

Perto do poço, rodeadas de algumas Miorianas que carregavam algumas vasilhas em suas mãos enquanto esperavam a outra terminar de tirar a água, Jeziel suspirou profundamente e Maria cruzou os braços, olhando para a amiga severamente:

— Por que fez aquilo?! Ainda nem chegou a nossa vez!

— É porque a Yara foi para a cidade de Aclasia — Jeziel sussurrou e Maria soltou um leve grito de espanto:

— Yara o quê???!

— Shhh… — Jeziel colocou o dedo indicador entre os lábios, revirando os olhos para algumas das Miorianas que conversavam ao seu lado. Logo suspirou, olhando para Maria. — É por isso que eu te arrastei para aqui. O pai do Miomura não pode saber disso, entende? Imagina como ficaria o coração dele.

— Ela ficou louca? — Maria falou baixinho. — O que ela foi fazer na cidade de Aclasia?

— Segundo o que ela me disse, garantir que Miomura não se envolvesse em nenhuma loucura.

— E você… deixou ela ir, Jeziel?

— É claro que não, Maria. Mas ela armou uma armadilha para mim para tomar uma das minhas preciosas máscaras e depois disso me deixou inconsciente.

— Quê? O que ela fez?!

— Bem…

E, assim, Jeziel foi contando o que Yara havia feito para deixá-la inconsciente, tudo nos mínimos detalhes, sem deixar escapar nenhum fato. Ao passo que Maria ficava estupefata com cada relato.

                               (…)

— Mamãe, você é a melhor do mundo! — Um sorriso se abriu no rosto daquela criança, que balançava suas pernas entrelaçadas ao pescoço daquela mulher. — Foi uma surpresa e tanto!

A mulher sorriu enquanto andava sobre aquele chão feito de barro. Caminhava pela sala de estar em direção ao quarto do menininho.

— Sou, não sou? Apesar de um certo alguém não merecer… — A mulher puxou a porta de bambu semiaberta, entrando a passos lentos.

— É, eu sei. — A criança encurvou sua cabeça, com um semblante cabisbaixo pelo que havia feito outrora. — Me perdoa, mamãe? Eu prometo que não faço nunca mais.

A mulher pousou a criança em sua cama e a observou com um sorriso gentil.

— Tudo bem, só não quebre a promessa depois. — E logo depois fez uma careta para o menino, que ficou ligeiramente assustado. — Se não, a mamãe vai ficar irritada. E você sabe o que acontece quando a mamãe fica muito irritada!

— Eu juro que não vou fazer mais. Jamais!

— Assim que eu gosto. — A mulher sorriu, puxando o cobertor ao corpo do seu filho. — Agora vamos, é hora de dormir.

— E o mago? Não vai ler a história do mago?

— Wow! Mas é claro! — A mulher sorriu e deu meia volta em direção à porta. — Espera só um pouco, que eu vou buscar o livro!

— Ebaaa! — A criança levantou as mãos ao tecto feito de palha, enquanto lançava um sorriso sobre a sua mãe que encostava a porta de bambu. — Mago, mago!

Aquele menininho todo alegre ficou cantarolando as palavras magos até que a sua mãe chegasse com aquele livro, que fizeram seus olhos verdes brilharem intensamente.

— Você gosta mesmo desse livro, não é, Miomura?

— Sim. Sim!

— Perfeito, então a partir de agora ele é seu.

Imediatamente, um sorriso se abriu no rosto do garoto, mas logo se desvaneceu.

— Mas ele não é importante para você, mamãe?

— É, sim, mas cansei dele. — Um leve sorriso preencheu os lábios da mulher enquanto entregava aquele livro que para si era precioso, nas mãos daquele garoto. — Já tenho tudo na cabeça.

— Então, a partir de agora, ele será meu mesmo? — Um cristalino reluzente tomou conta daqueles olhos de jade enquanto observavam fixamente aquele livro em suas mãos. Logo voltou o seu olhar para sua mãe. — De verdade?

— De verdade. — A mulher confirmou, balançando a cabeça positivamente. — Vê se cuida bem dele.

A criança não perdeu tempo, folheou as páginas acastanhadas daquele livro, observando aquela numerosa quantidade de letras. Algumas estranhas, já que não havia dominado a leitura completamente. Estava ainda em um processo de aprendizado lecionado por sua mãe.

— Sabe, Miomura… — disse Alura, atraindo os olhos verdes do seu filho. — Os livros são uma benção. Então, leia para ser sábio e pratique para ser verdadeiro.

— Mas mamãe, tem um probleminha…

— O que, filho?

— Como eu vou praticar, se não sei magia?

Uma pergunta deverás interessante, pensava Alura enquanto observava a criança com um sorriso.

— Há muito mais do que podemos aprender em livros. Lições importantíssimas, conhecimentos imensuráveis.

Ah, entendi. — Miomura soltou um sorriso inocente, mas ainda não havia compreendido o verdadeiro significado das palavras da sua mãe. — Então quer dizer que eu devo seguir os passos dos magos e ser um herói?

— É, quase isso… — disse Alura, logo estalando os dedos por uma leve lembrança ter passado por sua mente. — Hum, agora que lembro, um certo sábio disse uma vez: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.

— Mamãe fala da escravidão?

— Conhecimento traz verdade e verdade traz liberdade.

— Mas que verdade?

Alura foi pega de surpresa por essa pergunta inusitada, percebeu logo que essa conversa estava tomando um rumo bastante profundo. Na sua visão, seu filho era criança demais para saber dessas coisas. E então, com um sorriso, apalpou os cabelos do seu filho, dizendo:

— Esquece, filho. Você ainda é uma criança, não vai entender. Apenas continue cultivando o seu amor pela leitura, viu? Para ser como os magos. Porque os magos são sábios.

— Tudo bem!

Inocentemente, Miomura balançou a cabeça positivamente. Mas as palavras anteriormente ditas por sua mãe ainda o atormentavam. Ele queria saber mais e, para isso, sabia que tinha que ler bastante o livro. Talvez compreendesse o porquê de ter nascido na escravidão e como, ademais, alcançar a liberdade.

"Isso, o livro é a chave!"

Foi o que o Miomura pensou, enquanto planejava uma aventura intensa pelas páginas daquele livro.

— E agora eu vou dormir. — Sua mãe bocejou, apalpando a sua boca.

— Mas e a leitura?

— Mudei de ideia, leia sozinho. É um desafio, não? Mas só não se demore a dormir.

Alura havia acionado um gatilho que não deveria, seu filho naquela noite não dormiu mais. Passou a noite tentando interpretar aquelas letrinhas esquisitas, que faziam sua cabeça doer.

                                (...)

As pálpebras de Miomura se remexiam depois daquele longo sonho que tera tido, seus olhos levemente se abriram. Contemplava com os seus olhos de jade as nuvens em diversos formatos, passeando pelo céu azul, enquanto ouvia sons de conversas e flechas sendo arremessadas.

— Onde estou?

Vagarosamente, começou a se levantar. Poucos aos poucos, contemplando uma multidão de pessoas com arco e flechas em suas mãos. Elas miravam alvos redondos, que mesclavam as cores branco e vermelho.

"Ah, entendi."

Miomura logo se deu conta de que estava no campo de treinamento, mais precisamente no campo onde os usuários de arco e flecha treinavam, pois não avistava Florento e tão pouco os seus conterrâneos.

Exceto uma pessoa. Sua irmã, baixinha e inconfundível, possuía uma máscara enquanto mirava com precisão a flecha em direção ao alvo.

— Vejo que acordou! — Miomura reconheceu aquela mulher que vinha correndo em sua direção com um sorriso gentil. Era a companheira dos capitães. Quando próxima, Miomura arregalou os olhos ao contemplar uma máscara na sua mão direita. Passando a mão no seu rosto nu, confirmou que aquela mulher havia tirado a sua máscara quando ele estava inconsciente.

— Sinto muito, mas é que eu sou bastante curiosa.  — Maísa atirou a máscara para as mãos do Miomura — Ver você, vulnerável, foi tão… como posso dizer… — Colocou a mão sobre o seu queixo. — Provocativo? Talvez — sorriu.

— Agora eu quero chorar. — Miomura optou pelo teatro, aprendera com o seu livro essa habilidade.

— Chorar?

— Sim, minha dignidade está perdida — Miomura esfregou os seus olhos, fazendo uma expressão dramática. — Eu sou feio e não queria que ninguém me visse. Mas você… você me viu.

— Ah, era só, isso? — Maísa sorriu. — Não se preocupe, você até que dá para o gasto.

— Você poderia, por favor… — Entrelaçou suas mãos em forma de oração. — Por favor, esquecer que viu o meu rosto.

— Você é estranho. Tem certeza de que está bem?

— Era só um pedido. — Miomura recolocou a máscara, engrossando a voz.  — Se não queria, era só dizer que não.

— Ei, que intimidade é essa? Sabe com quem está falando, rapaz?

— Essa não seria a minha fala?

Hum?

— Afinal, você começou tirando a minha máscara enquanto eu estava dormindo, como se fôssemos íntimos.

— Queeee? — Maísa arregalou os seus olhos, pressionando a mão sobre o seu peito. — Mas essa não foi a minha intenção!

— Não foi o que deu a entender.

Maísa se fartou de rir, enquanto segurava sua barriga.

— Gostei de você!

Não era o que Miomura esperava, mas serviu. Com isso, havia conquistado duas das pessoas de extrema importância para o reino de Aclasia.

— Mas não pense que só por ter caído nas minhas graças, poderá agir com libertinagem. — Um vento sibilante soprou, de repente as pupilas dos olhos de Maísa se dilataram, seus traços haviam formado uma expressão intimidadora. — Não é bom brincar comigo, posso ser um pouco perigosa às vezes.

Um arrepio percorreu o corpo do Miomura. Aquele olhar… Miomura poderia jurar que aquela mulher era o Valdes na versão feminina. Ambos emanavam a mesma aura intimidadora, mas só que, diferente de Valdes, essa mulher dominava a arte da falsidade.

— Dito isso, vamos treinar. Estou ansiosa para ver suas habilidades!

Logo aquela aura intimidadora se foi e um sorriso gentil tomou conta dos lábios daquela mulher. Miomura suspirou, desacelerando as fortes batidas que haviam tomado conta do seu coração naquele instante.

"Essa mulher... Preciso manter distância dela", Miomura pensou enquanto observava Maísa caminhar por aquele areial, saltitando com alegria em direção a outros arqueiros. Aquele olhar ainda o traumatizava, mas balançou a cabeça negativamente, buscando se livrar daquela cena. Precisava manter o foco. Focar no que mais importava, o treinamento.

Miomura então, foi direcionado a uma caixa de madeira onde continham numerosos arcos e ¹aljavas que continham no máximo 20 flechas. Ele pegou uma aljava e pendurou a alça no ombro, a qual se fixou em suas costas.

Com passos lentos, caminhou em direção a um alvo que estava vago. Coincidentemente, era ao lado da sua irmã, que parou de mirar o alvo para observá-lo.

"É agora que a minha aventura começa…"

Miomura lançou um sorriso confiante e retirou a flecha da aljava, tentando colocar no arco. Na primeira tentativa, falhou. Não havia acertado o fio. Na segunda, deixou cair a flecha no chão, o que levantou risadas de diversos arqueiros que pararam seus tiroteios para o observar.

— Droga… — Miomura arregalou os olhos. Constrangido, encurvou a cabeça, buscando fugir daqueles olhares que pousavam sobre ele.

"Então isso é o que o norte tem a oferecer?"

" Só podiam ser soldados do norte!"

Os arqueiros do sul de Aclasia começaram a descriminar os soldados que vinham do norte de Aclasia por conta dos falhanços de Miomura em usar o arco e flecha.

No entanto, os verdadeiros soldados que vinham do norte de Aclasia acabaram por se sentir ofendidos. Uma discussão se iniciou, Aclasinos do norte contra os dos sul. Ambos tinham flechas apontadas uns aos outros. Miomura se sentiu culpado enquanto ouvia palavras duras dos Aclasianos, enquanto cada grupo negava ter envolvimento com ele.

— Podem parar com isso. — Maísa finalmente interveio, caminhando entre ambos soldados, que formavam grupos distintos enquanto miravam flechas uns aos outros. — Baixem os seus arcos.

— Não, eles nos provocaram! Precisam pagar por isso! — Os dos nortes relutaram em ouvir Maísa, mesmo ela sendo uma convidada, ninguém ali a conhecia para que a respeitassem. Era praticamente uma estranha.

— Para começo de conversa, vocês estão nas nossas terras. Aqui no sul! Por que não voltam para o interior pastorear gado?!

Aquele insulto foi bastante conveniente para o grupo do sul, visto que eles viviam na capital que era bem mais desenvolvida em comparação às cidades do norte e centro do Aclasia. Uma guerra fria havia começado entre aqueles dois grupos, nenhum deles planejava baixar seus arcos.

Maísa sorriu e deu meia volta, prosseguindo em direção à caixa de madeira onde ficavam os arcos e as flechas. Pegou, então, um arco e uma aljava de flechas, colocando atrás das costas.

Com passos bem lentos, foi se aproximando daquela confusão.

"Eu gosto quando é assim", pensou Maísa enquanto retirava três flechas da aljava, colocando-as delicadamente no fio do arco. Apontou para uma parede sem alvo.

Alguns dos soldados que observaram Maísa empunhando um arco com três flechas, arregalaram seus olhos. Ninguém até agora havia feito aquilo, lançar três flechas de uma só vez… Era um absurdo, aquela mulher só podia ser um prodígio.

— Olhem…

Maísa conseguiu o que queria, toda a atenção dos arqueiros agora estava voltada para ela.

Desprendeu seus dedos do fio e as flechas prosseguiram em direção à parede em uma trajetória retilínea, rasgando o vento com rapidez. Uma pequena cratera havia se aberto quando os bicos finos da flecha revistos de metal entraram em contato com a parede.

Os soldados ficaram boquiabertos, sem palavras diante do que seus olhos viam. Algo que nem seus mestres haviam feito alguma vez.

— E então… — Maísa colocou a mão que carregava o arco sobre o quadril, soltando um sorriso de satisfação. — Acham que agora sou digna do vosso respeito?

Os soldados deixaram cair por terra seus arcos e flechas, encurvando sua cabeça diante daquela mulher que havia demonstrado tamanha maestria no uso do arco e flecha.

"Perdão!"

" Por favor, nos treine"

Essas, entre outras palavras, foram como uma melodia harmoniosa aos ouvidos de Maísa, agora ela tinha todo o respeito dos arqueiros.

— Essa mulher… — Os dois irmãos Miorianos sorriram por dentro das suas máscaras, admirando a postura que aquela mulher exalava.

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¹ Aljava — estojo de flechas



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