Volume 1

Capítulo 23: O mascarado

— Você aqui?! — Miomura apontou o dedo a um dos Miorianos que vinha após o chefe aldeão. Ele era a pessoa que menos esperava estar ali.

Humpf! — suspirou. — Então quer dizer que você vive, mesmo depois de ter adentrado a cidade de Aclasia — E riu. — Você é mesmo hilariante!

— Saiba que graças a mim, você tem a oportunidade de treinar na cidade de Aclasia. Ajoelhe-se e me agradeça! — Miomura sorriu, vangloriando-se de uma conquista que não era sua. Ademais, ele adorava gabar-se e humilhar o jovem quando diante da sua presença.

— Prefiro morrer a fazer isso.

— Já vai tarde, então... — Miomura resmungou. Os dois aproximavam-se um do outro com o cenho franzido. — Se quiser, eu me encarrego disso. — Puxou as mangas da sua vestimenta, colocando seu punho a mostra.

— É mais fácil eu fazer isso, idiota suicida! — Thomas também puxou sua manga, erguendo o punho.

Ambos estavam prestes a entrar em embate caso o chefe aldeão não os segurasse. Um monte de palavreados fora lançado ao vento entre aqueles dois jovens, que mais pareciam gato e cão quando se encontravam, embora para muitos que já estavam acostumados, aquilo mais era uma demonstração de amizade.

— Caramba, é estranho ver Miomura agir desse jeito. — Florento ficou um tanto quanto impressionado por vê-lo assim, tão libertino.

Gabriel riu, levantando uma de suas sobrancelhas enquanto seus olhos castanhos observavam aquele cenário, mais uma vez, como se fosse um déjà vu.

— Depois você se acostuma. Esses dois são assim sempre que se encontram.

— Que amizade estranha. — Florento riu, coçando sua cabeça. — Mas até que parece ser legal demais.

— É, nem tudo deve ser levado a sério — Gabriel sorriu.

Certamente que, Thomas, apesar de intriguista, tirava Miomura da realidade desde a tenra idade, quando seu descanso em meio ao campo de areia era roubado com arremessos de areia dura. Apesar da escravidão, sua vida não era monótona.

Ao passo que, o soldado encarregado pelo portão, resmungava ao som do vento. Sua vontade era de expulsar aqueles escravos a espada, não fosse o aumento salarial que o capitão havia lhe prometido.

O sol enfim sucumbiu às nuvens, trazendo o luar repleto de estrelas, pairando sobre o céu azul.

A está altura, todos haviam vestido suas vestes de soldados e o chefe aldeão havia retirado-se para sua casa com o coração na mão pelos jovens. Nem mesmo ele estava seguro disso, mas era isso ou nada.

Na lentidão dos seus passos, guiados por Florento, Miomura e seus conterrâneos caminhavam sobre o pavimento daquela cidade.

Seus olhos cintilavam a luz dos candeeiros acesos, diferentes das rochas que eram acendidas em seu vilarejo. O vento que por ali passava não podia apagar as luzes. Estava frio, apesar do forte calor que havia feito sentir pela tarde.

Alguns dos Miorianos seguravam seus braços trêmulos, nem mesmo a farda de soldado era suficiente para dar um bom agasalho contra o ar frio.

— Que frio...

— Seja homem — disse Thomas ao companheiro do seu lado, que mordia seus lábios, tremelicante.

Parecia uma caminhada longa, pois não viam destino. Apesar da beldade que era conhecer aquela cidade, andar de um lado para outro os cansava.

— Quanto tempo falta para chegarmos? — Miomura elaborou a questão que todo mundo queria ter resposta.

— Estamos perto — Florento assegurou.

Eles estavam caminhando a um centro de acolhimento aos soldados que chegariam do norte e do centro de Aclasia. Hoje a noite chegaram mais soldados do norte e do centro e ficaram em acampamentos no centro de acolhimento para o dia da guerra, e é a partir de lá que Miomura e seus conterrâneos irão se infiltrar.

Depois de muita andança, eles finalmente chegaram ao acampamento, com luzes iluminando tendas gigantes. Ao passo que, alguns soldados também chegavam junto deles. Eles cumprimentavam-se uns aos outros, como membros de uma mesma corporação. Era um campo cheio de tendas, muitos dos soldados que ali estavam, haviam abandonado suas famílias na expectativa de que após cumprirem seus deveres como soldados, voltariam finalmente ao convívio.

Mas todos sabemos que não era bem assim que funcionava, muitos dali não retornariam às suas casas. Aquela despedida feita entre familiares na promessa de voltar, não passaria de mera recordação.

Embora cada um estivesse convicto da sua sobrevivência nessa guerra, apenas o destino iria ditar o que a eles estava preparado.

O ambiente naquele lugar era de palavras jogadas para ali e aqui, ao som de uma bela música tocada por alguns soldados que tinham domínio de certos instrumentos. Outros, porém, traziam consigo um grande porte de vinho, afim de festejar entre si, afinal poderia esse ser o último gole.

Florento guiou Miomura e seus companheiros a uma fogueira ao lado de uma tenda desabrigada, onde eles dormiriam; era gigantesca. Cada tenda ali estava preparada para comportar em média dez soldados.

— Então quer dizer que é aqui onde ficaremos... — Gabriel suspirou. Os demais Miorianos sentaram-se perto a fogueira, afim de aquecerem seus corpos daquele frio congelante. Nada como o saboroso crepitar da chama, emanando calor sobre seus corpos.

— Parece-me bem — disse Thomas. — Nunca imaginei sair do vilarejo algum dia.

— É mesmo — Jota concordou.

Ao passo que, dentre eles, estava presente um jovem que usava uma máscara. Seu corpo era magrinho e seus cabelos curtos. Ele nunca tirava a máscara.

Mas como achavam que era para proteger sua identidade, deixaram estar. Entretanto, Miomura ficava mais incomodado, porque mesmo querendo proteger sua identidade, aquela pessoa não falava coisa alguma.

— Ei, você... — chamou. — Não fala? — Os olhos esverdeado do Miomura, tomados pelo brilho das chamas, fitavam o mascarado.

Era mudo? Talvez. Miomura concluía após não obter nenhuma resposta, apenas um aceno negativo da cabeça.

— Você deve ter bastante medo dos soldados para esconder seu rosto — Florento riu, seguido de Thomas: — É verdade, mas acho que não tem problema tirar sua máscara aqui. Confesso que estou curioso para ver como é o seu rosto!

— Verdade — Gabriel assentiu e os demais Miorianos bateram as palmas, cantando ao som do vento: — Tira! Tira...!

O Mioriano em um gesto constrangido, diante daquela insistência, virou-se, dando as costas aos mesmos.

— O que aconteceu com ele?

— Talvez a cara dele seja deplorável — riu um Mioriano e Thomas concordou junto do Florento, que havia se afiliado àquele complô contra o mascarado: — Vamos tirar a força, já que ele não quer!

— Isso. Isso! — Levantaram os punhos. — Não deve haver segredo!

Ouvindo isso, o mascarado levantou-se e começou a distanciar-se deles.

— Ei, não façam isso — Gabriel advertiu. — Se é algo que ele não quer, melhor não insistir.

— Ei, pode confiar em nós! — Miomura levantou-se, abandonado o calor daquela chama. — Seja o que for que esteja escondendo, ninguém vai rir do seu rosto. Estamos aqui uns para os outros.

— O idiota falou a verdade — Thomas e os demais Miorianos assentiram: — É isso! Sinta-se a vontade!

O mascarado continuou relutante em tirar sua máscara e continuou se distanciando ainda mais até esbarrar contra um soldado bêbado que por ali andava.

O mascarado caiu ao mesmo tempo, em que o soldado bêbado caiu no chão, soltando um arroto enquanto portava uma garrafa de vinho em uma de suas mãos.

— Mais cuidado por onde... — Voltou a arrotar. — Anda...

O mascarado recompôs-se novamente e saiu dali correndo, enquanto o soldado bêbado mal se aguentava em se levantar. Vinho havia sido proibido nesse momento em que o reino estava prestes a entrar em guerra, pois atrapalharia bastante o foco dos soldados em seus treinamentos e incapacitaria a sanidade mental do indivíduo, dependendo do quanto ingeriu.

— E está agora, acabamos perdendo ele — disse Miomura, dando um suspiro aborrecido.

— Alguém vai atrás dele — Florento alertou. — Antes que ele possa de alguma forma colocar em causa o nosso plano de infiltração.

— Não acha que deveria ser você que mais conhece esse lugar a ir, hã? Preguiçoso… — Indagou Gabriel.

— Está frio demais e olha lá, essa hora eu estaria na minha cama toda confortável.

— Então por que não vai para lá? Digo, não precisa ficar aqui se tem um lugar para voltar.

Florento riu, levantando seus ombros. Gabriel ficou sem nada entender e Miomura contemplava o vazio da noite, pensava naquela pessoa; algo o incomodava demais naquele mascarado.

O soldado bêbado agora resmungava enquanto dormia, seu bafo de vinho sobrevoava aquele vento. Miomura nem se deu ao trabalho de arrastá-lo à fogueira, na verdade, ninguém, deixaram-no ali a sua própria sorte.

— Eu vou atrás dele…

Miomura cerrou o punho de sua mão direita, começando a andar.

Hã? — Alguns dos olhos fitados na fogueira ardente agora contemplavam Miomura. — Não cansa de se meter em problema, não? Maníaco suicida — riu Thomas, seguido de Gabriel.

— Você não vai a lugar nenhum.

— É, eles têm razão, Miomura. Você é um ímã de problema, se for, com certeza vai se meter em perigo — acrescentou Florento.

Os demais Miorianos, bem conhecendo a facilidade que Miomura tinha em se envolver em problemas, assentiram, balançando suas cabeças.

— Melhor ficar por aqui, ó, idiota. Ele com certeza vai voltar — disse Jota, seguido de um companheiro ao seu lado: — Além disso, você virou famoso após seu embate com os capitães. Acha mesmo que eles irão deixar isso em branco?

— Eu não deixaria — riu o Mioriano ao lado do Thomas.

— Dê descanso à sua alma, pelo menos dessa vez, seu peixe.

— Quem você está chamando de peixe? — Miomura franziu o cenho diante daquela provocação e os outros começaram a rir da careta que aqueles dois faziam enquanto se enfrentavam.

Ainda assim, mesmo diante de todas as palavras de alerta proferidas por seus conterrâneos e amigos, Miomura não quis recuar.

Ele saiu dali correndo o mais rápido que pôde, ignorando o clamor de seus amigos para que ele permanecesse.

— Ah… A teimosia dele venceu. — Florento colocou a mão na testa, balançando a cabeça negativamente. Gabriel, de pé, estava prestes a correr atrás do amigo, temendo que se metesse em mais um problema.

— Para com isso, Gabriel. Está parecendo até a mãe dele — disse Thomas. — Aquele suicida não precisa de nenhum babá, ele já é bem grande.

Florento riu, assentindo com as palavras proferidas pelo Thomas: — Isso. Ele sabe se virar, deixemos ele.

Os demais Miorianos também interviram para que Gabriel não fosse atrás dele. Diante daquele todo falatório, Gabriel decidiu permanecer quieto, aguardando e torcendo para que o amigo não se metesse em mais apuros.

                             (…)

Por outro lado, Miomura caminhava pelo acampamento, seguindo os rastros do seu conterrâneo. Apesar de noite, Miomura conseguia visualizar perfeitamente as pegadas daquele Mioriano. Sua visão era tão boa que poderia ser comparada à de um gato.

— Não sei o porquê… Mas aquela pessoa… Não me é estranha.

Miomura continuou sua caminhada.

O céu noturno estava repleto de estrelas, elas eram melhor vistas do vilarejo de Mioria. E, surpreendentemente, mais brilhantes aos olhos de quem via.

De baixo daquela luminosidade noturna, perto de uma tocha, estavam dois homens com um porte físico musculoso. Tudo resultado do trabalho escravo que exerciam constantemente, fazendo com que seus corpos desenvolvessem massa física além do necessário.

— A noite está tão bela hoje, não acha? — O Mioriano direcionou seus olhos ao homem, cujos pensamentos estavam no mundo da lua. — Rymura?

Ah, desculpa…

— Pensando no seu filho, né?

— É.

— Ahh... — suspirou, tocando no ombro do Rymura. — Eu tenho certeza de que  seu filho é forte, tal como o pai. Ele vai voltar!

— Mirio... — Arregalou seus olhos. — Miomura sequer tem dezoito anos, ele não precisava passar por isso. Por que ele foi abrir aquela maldita boca?! Eu fico pensando e, se ele não tivesse aberto a boca, tudo ficaria bem. Tudo!

— Calma, meu amigo. Não adianta remoer o passado, já aconteceu... Agora o melhor a se fazer é pensar na forma de sobrevivermos a essa guerra.

— Você ainda acha que vamos sobreviver, Mirio? Sem espadas... Sem armas. O que um mero escravo poderá fazer?

— Eu não sei, mas eu promete voltar para minha família são e salvo e é o que você também deveria fazer. Tenho a certeza de que, diante de uma promessa, faremos de tudo para cumpri-la.

Rymura balançou a cabeça negativamente.

— Essa história de promessa não funciona. Alura também prometeu estar ao meu lado no dia do nosso casamento e veja só o que aconteceu, ela simplesmente fugiu, abandonando a família.

— Bem... Nem temos a certeza se ela fugiu mesmo.

— Foi a sua esposa que relatou isso. Sua esposa! A melhor amiga da Alura nesse vilarejo. Então me diga, como pode ela estar mentindo?

— Eu não disse que foi mentira, mas Alura não me parecia mulher de fazer isso.

— As aparências enganam. Todos achamos até que um dia percebemos que não passava de uma ilusão.

Mirio não sabia o que dizer diante de tais palavras, certamente o ser humano tinha dessas.

Ele suspirou.

— Descansa, amigo. Descansa, nada que uma boa noite de sono para tirar esse enorme peso das suas costas.

— Eu não sei se isso vai funcionar.

— Apenas descanse e pense na Yara, pense no quanto preocupará sua filha com esse rosto triste.

— Certo, muito obrigado, Mirio — Rymura agradeceu. Mirio bateu suavemente no seu ombro: — Eu estou aqui para tudo, meu amigo.

Com isso, Rymura entrou em sua casa e Mirio também seguiu caminhando até  sua casa.

— Yara! Cheguei! — Rymura fechou a porta de bambu da sua casa, caminhando até a mesa. Querendo pegar o copo para beber água, notou um papel escondido debaixo do copo. O que seria? Rymura abriu o papel sem nenhuma cortesia, podendo contemplar escritas. Uma caligrafia mal trabalhada. Se para ele era difícil ler cartas com uma ótima escrita, imagina com uma péssima escrita?

Levou um certo tempo até que conseguisse desvendar o que estava escrito na carta, haviam lhe custado muito gaguejos e mordeduras na língua.

“Pai, eu estou avisando que irei estar em casa da Maria até o Gabriel voltar, se não ela fica sozinha. Tenho medo de acontecer algo, me desculpa te deixar sozinho.

Yara Mioria.”

Rymura suspirou, largando a carta na mesa.

— Então quer dizer que durante esse todo tempo ficarei só? Bom, não importa, pelo menos posso chorar e lamentar o quanto quiser sem precisar me preocupar com ninguém...

Ele cruzou suas mãos sobre a mesa, repousando sua cabeça sobre. Algumas lágrimas começaram a emergir dos seus olhos, formando uma pequena poça naquela madeira.

                            (...)

Já no acampamento para os soldados recém-chegados do norte e centro de Aclasia, Miomura caminhava à luz das tochas acesas, buscando encontrar seu conterrâneo mascarado.

— Droga, para onde será que ele foi? — Cansado de andar, Miomura parou em uma determinada parte do acampamento perto da saída. — Acho que é melhor vol… 

Antes que Miomura tivesse a oportunidade de terminar sua fala, viu-se puxado por uma mão. Inicialmente, arregalou seus olhos, todo amedrontado, mas depois suspirou ao saber que quem o puxava para trás das tendas em um lugar mais escuro era o Mioriano mascarado.

— Escuta, eu estive procurando por você... Por que fugiu? Tem noção do que vai acontecer se ficar sozinho, hã? — Miomura ia passando um sermão para o mascarado, no entanto, foi silenciado pelo toque do dedo do mascarado em seus lábios.

Shhh...

— Essa voz...

O mascarado tirou a máscara, deixando Miomura completamente espantado com o que via.



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