Volume 1

Capítulo 22: Os dez escolhidos

Após uma longa conversa na casa do Gabriel e de sua irmã, Miomura e Yara puseram-se a caminhar de volta para casa. Já Florento ficou em casa dos irmãos, aguardando o entardecer, momento este em que todos os dez escolhidos para treinarem em Aclasia se reuniriam ao pé do portão.

Dessa vez, Miomura havia pegado emprestado as vestes de Gabriel e deixado as suas de soldados em casa do mesmo.

No meio do caminho, Miomura pôde ouvir alguns murmúrios de seus conterrâneos, que por ali passavam.

"Foi aquele sujo quem enfrentou os capitães!"

Outros, ainda, zombavam de sua família, o que atiçava seus nervos.

A verdade era que tudo quanto Miomura fez na presença dos capitães, havia se espalhado por todo vilarejo e a reação de muitos não foi às das melhores, já que sua família tinha um longo histórico de rebelião contra os reis.

Miomura e Yara procuraram distanciar-se o mais rápido possível dali, antes que aquela gente tentasse algo contra eles. Doía o coração de Miomura saber que com tanta coisas para eles pensarem e se preocuparem, buscavam julgá-lo por suas ações, que qualquer em seu lugar poderia muito bem o fazer.

— Parece que agora somos odiados — lamentou Yara, a reputação da sua família já havia caído depois que sua mãe fugiu do reino de Aclasia.

Muitos julgavam esse acontecimento como uma farsa, buscando encobrir a traição que ela teria feito ao deitar-se com qualquer Aclasiano. Isso porque há alguns anos, suas vizinhas alegaram tê-la visto com roupas elegantes e, mesmo ela tendo inventado desculpas esfarrapadas, sua máscara havia caído depois de sua fuga. Suspeitavam que ela havia ido morar com seu amante na grande cidade de Aclasia.

Doía o coração da Yara saber que sua mãe era chamada de adúltera, sendo que, na verdade, ela tinha um bom carácter e sempre amou seu pai e sua família.

Já Miomura não suportava mais ouvir isso, não conseguia mais contar nos dedos quantas vezes teve que espancar as pessoas, que mal diziam da mãe pelos cantos.

— Quando eu conseguir a liberdade do nosso povo, eu te garanto que terão muito que me agradecer! — Ele declarou.

— E como planeja fazer isso?

— Eu tenho as minhas formas de alcançar o que eu almejo.

— Se fala de ter feito o capitão escolher vocês para treinarem em Aclasia, sinto muito, mas isso não passou de sorte — disse Yara, olhando-o.

Seu irmão estava bastante confiante diante de toda sorte que havia reunido ao sair ileso da morte iminente duas vezes.

Miomura apenas deu um sorriso convencido.

                            (…)

Depois de uma longa caminhada, eles finalmente chegaram a casa. Tiveram um pequeno susto quando viram seu pai em frente a porta, de braços cruzados, enquanto chutava areia.

— Onde estavam?

Seus olhos se encontraram.

Miomura engoliu em seco.

— Na casa do Gabriel — disse Yara, sorrindo. — Eu trouxe ele como pediu, pai.

— É. Ela me trouxe.

Rymura semicerrou os olhos.

— Maria, melhorou? Pensei que iria ficar em casa dela.

— Por sorte, ela acordou melhor. Você sabe, pai, Maria é uma menina muito forte! — Miomura sorriu e Yara assentiu com a cabeça três vezes seguidas.

— Fico feliz por ela. Miomura, eu preciso falar com você.

— Estou aqui, pai.

— A sós. — Olhou para Yara, indicando que ela estava a mais.

— Ok. Ok. Já entendi, estou indo. — Yara não fez resistência em ficar, já que sabia muito bem do que se tratava. Entrou em casa, deixando seu pai e seu irmão sozinhos, ao relento da luz do sol que enfraquecia conforme as nuvens o encobriam, gerando uma sombra ao redor deles.

— Sobre o quer falar, pai?

— Você só me traz decepção... — Rymura franziu as sobrancelhas e deu um suspiro aborrecido. — Tse.

— Eu não fiz nada que não lhe agradasse dessa vez, não sei porque diz isso.

— Desde o momento em que abriu essa sua boca afiada. Desde este momento você me desagradou em tudo — afirmou Rymura.

— Eu já pedi desculpas.

— Acha mesmo que desculpas vão resolver a situação em que estamos, Miomura? Se não tivesse aberto sua maldita boca, não estaria com a corda no pescoço! Você sequer tem dezoito anos para ir à guerra!

— Mas e o pai? E o Gabriel? Vossas vidas também importam!

— Para de falar. Quanto mais você fala, eu fico mais irritado em ouvir essa sua voz, Miomura! — Lançou um berro, gotículas de saliva arremessadas ao vento. — Do que valerá morremos todos? Por acaso ter falado nos livrou da sentença da guerra ou te fez se juntar a nós?!

— Desculpa.

— Prepare-se, você vai treinar em Aclasia com o capitão.

— O que? Por quê?

— Vieram uns soldados de Aclasia para recrutar nove pessoas para serem treinados pelo próprio capitão. Tse, aqueles malditos...

— Sério, pai? — Miomura deixou escapar um leve sorriso.

— E você ainda se alegra?!

— Não é isso.

— Tem noção do que isso significa? Você pode muito bem morrer!!! Essa história de treinamento secreto não me cai bem. Eles estão armando algo! — Mordeu os lábios e caiu de joelhos, chorando. — Por quê? Por que tem que ser assim? O que eu fiz para merecer isso?! Aaaaaaaaah!

Um grito de um pai sofrido foi lançado ao alto. Com o semblante triste, Miomura também se ajoelhou ao lado do pai e segurou seu ombro.

— Eu não vou morrer, pai. — Mordeu os lábios. — Eu fiz tudo errado e não mereço nada mais que o seu desprezo. Mas, por favor, pai... Peço que o senhor me perdoe e confie no seu filho, pelo menos uma vez...

Rymura supriu suas lágrimas e levantou-se.

— Vá à casa do chefe aldeão, ele o levará onde deve ir. E Trate de voltar em segurança.

— Obrigado, pai! — Miomura levantou-se e sorriu. — Eu vou voltar!

— Não faça nenhuma besteira. E que Deus te acompanhe.

Depois daquela despedida entre pai e filho, Miomura seguiu caminhando a casa do chefe aldeão enquanto seu pai o observava com um semblante melancólico. Yara espreitava o olhar pelas aberturas da porta de bambu, que deixavam escapar certa luz para dentro de casa.

Uma poeira levantou-se e Miomura havia desaparecido entre aquelas casas de palhas, deixando suas pegadas como rastro.

Rymura lamentou e caiu de joelhos novamente, erguendo suas mãos aos céus, clamando por socorro ao seu Deus, para que protegesse seu filho e livrasse o seu povo das garras do rei. Sua filha, cansando-se de observar, saiu e acompanhou o pai naquele clamor.

As nuvens passavam ao som do vento, o sol começou a sucumbir no limiar do horizonte, o entardecer havia chegado.

— Você precisa mesmo de ir? — indagou Maria, apreensiva.

— Eu sinto muito, Maria.  — Gabriel tocou nos ombros de sua irmã.

— Não se preocupe, donzela da sopa. Eu lhe asseguro que farei com que seu irmão volte em segurança ao vilarejo —Florento prometeu, batendo com o punho no peito.

— Mesmo assim... — Maria mordeu seus lábios com um semblante triste. — Eu ainda acho perigoso. Uma coisa que nem o rei sabe... Como pode dar certo?

— Minha irmã, é a única maneira que tenho de sobreviver. Com o treinamento necessário, com certeza terei alguma chance na guerra.

Maria continuou mordendo seus lábios, lançando um suspiro pesado sobre o ar em seguida.

— Eu mesmo trá-lo-ei de volta, e espero provar da sua sopa. — Garantiu Florento. Aquela promessa aquietou o coração da Maria. Ela permitiu que eles fossem e os abençoou em Nome de seu Deus.

Florento e Gabriel sorriram e levaram consigo a paz que Maria havia lhes transmitidos.

— Sua irmã é meio estranha, Gabriel.

— Como assim? — questionou Gabriel.

— Eu só não queria dizer isso com medo de machucá-la. Mas como ela pode orar a um Deus invisível? Que não se pode ver e nem apalpar.

— É que o nosso Deus é invisível mesmo e ele não precisa de estátua nenhuma, porque Ele é o que é.

— Como assim?

— Tipo, Ele não pode ser medido, sabe. Ele é maior que a terra, Ele criou o mundo e tudo que nele existe.

— E como sabe disso tudo? E como tem certeza de que isso é verdadeiro? Pelo que eu saiba, qualquer deus pode ser verdadeiro.

— Eu creio. Porque se Deus criou tudo o que existe, então Ele é maior que tudo e então nada de material pode expressá-lo.

— Faz sentido — Florento coçou a cabeça. — Vou querer saber mais sobre esse Deus.

— Posso te contar mais de suas maravilhas.

Assim, Florento e Gabriel continuaram sua caminhada em direção ao portão principal de Aclasia.

Entre palavras jogadas ao vento, finalmente aqueles dois rapazes chegaram ao portão principal, podendo avistar Miomura e mais quatro pessoas ao lado dele. Ele acenava para os dois, gritando seus nomes. Gabriel acenou, retirando a máscara do rosto. Alguns deles se assustaram e murmuram entre si, apontando o dedo com os olhos arregalados.

— E aí, pessoal! — cumprimentou Gabriel.

— Gabriel, o que faz trajado assim? E quem é esse? — Os Miorianos analisavam o Florento, rodeando seus olhos sobre seu corpo.

— Ele é aquele de quem eu vos falei, pessoal. Florento — disse Miomura, satisfazendo a pergunta dos seus compatriotas.

Alguns segundos depois, o soldado que guarnecia o portão havia retornado de dentro com uma sacola gigante, tão gigante que ele tinha que puxá-la.

— Do que estão a espera? Venham me ajudar! — disse o soldado. — Não sei o que passou na cabeça do capitão para se arriscar tanto assim, tse.

Os demais Miorianos foram ajudar o soldado a fazer passar a sacola pelo portão. Com grande esforço, conseguiram.

— Caramba, o que contém nessas sacolas? — questionaram alguns Miorianos, passando a mão sobre suas cabeças de tanto esforço que teriam feito.

— As vossas vestes para poderem entrar na cidade de Aclasia — o soldado suspirou, aborrecido. — Se não fosse pelo aumento, eu nem estaria aqui os ajudando.

Os Miorianos ficaram felizes com o armamento, mas infelizes com a cara de mau que o soldado lhes fazia, pois ele deixava bem claro de que não gostava nada deles estarem a receber tais ajudas do capitão. 

— Ei, eu ouvi isso. — Florento acenou.

— Você também deve concordar comigo que isso tudo é um disparate. Não faz sentido! — o soldado resmungou, deixando os Miorianos cabisbaixos. — Por que arriscar o pescoço por meros escravos?

— Ei... — Miomura chamou a atenção do soldado. — E se fosse você e seu povo nessa, diria a mesma coisa?

— A diferença é que não tem como ser. Vocês nasceram escravos e ponto final.

— Não. — Miomura balançou a cabeça. Gabriel tentou o impedir chamando por seu nome. — Nós nascemos para ser livres até o momento em que o vosso povo escravizou o nosso povo e roubaram a nossa terra.

— Como ousa falar assim comigo? — O soldado sacou sua espada. A tensão estava pesada, mas logo aliviada por Gabriel e Florento que interviram a tempo.

Gabriel segurou o braço de Miomura. Florento ordenou que o soldado parasse e não fizesse nada de que viria a se arrepender. Miomura ouviu novamente um sermão do seu amigo por ter enfrentado o soldado e o advertiu para que não caísse em nenhuma das provações. Para que o plano desse certo, eles deveriam, primeiramente, agir com calma e cautela.

Mais tarde, após vestirem, chegaram os últimos restantes membros dos dez escolhidos para treinar em Aclasia. Ao seu número, eram quatro e estavam acompanhados do chefe aldeão.

Finalmente, suspiraram depois de tanta espera ali.  Um dos que estavam acompanhados pelo chefe aldeão usava uma máscara, o que chamava a atenção de muitos.



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