Volume 1
Capítulo 20: Casa do chefe aldeão
Zora arregalou os olhos, contemplando aquele rosto familiar em vestes de soldados. Custava-lhe acreditar no que via, suas filhas também foram tomadas pelo mesmo espanto que afligia o pai.
Florento apenas sorria, calmo, diante daquela situação.
— Miomura! Onde arranjou essas vestes? — indagou Zora, ainda confuso.
— Mas este não é aquele que quase foi morto pelos soldados? — indagou Nora, seguida de sua irmã mais velha. — E agora virou um soldado?
— Entremos que eu explicarei tudo, Tio Zora. — Miomura voltou a colocar a máscara para que não fosse reconhecido por mais pessoas, embora aquele lugar fosse um pouco isolado das outras casas de palha.
— Certo. Certo. — Zora levantou-se. Suas filhas cederam passagem ao Miomura e ao Florento que passavam pela porta acompanhado de seu pai. Florento não deixava de vislumbrar a beleza de uma Mioriana de perto, apesar de vestir roupas pouco elegantes ou não terem alguma maquiagem no rosto, elas exalavam uma beleza natural.
Miomura sentou-se ao lado de Florento naquele banquinho de madeira. Florento sentiu um pequeno desconforto pela dureza do banco, já que estava acostumado aos seus sofás feitos de lã.
As filhas do chefe dos escravos o rodeavam, contemplando aqueles dois jovens em trajes de soldados.
— E então, pode me explicar o que está acontecendo aqui?
— Bom… — Miomura removeu a máscara, seu rosto estava quase que irreconhecível devido aos tratamentos que teria recebido em Aclasia. — Acontece que… — Miomura contou tudo o que havia acontecido ontem, dia em que havia invadido a cidade de Aclasia correndo sérios riscos de morte, o que deixava Zora e suas filhas em espanto a cada relato.
— Inacreditável! — Zora ficou boquiaberto com cada palavra que havia saído da boca do jovem. — Você é um jovem de muita sorte.
— Muita mesmo! — assentiu Nora, compartilhando do mesmo espanto com as suas irmãs.
— Mas o que fez foi algo impensado! Uma loucura, eu diria — Zora cruzou os braços, fazendo uma expressão aborrecida. — Se seu pai souber disso tudo, não sei o que ele te faz.
— Foi o que eu disse — disse Florento. — Viver de sorte não é bom, um dia ela termina.
— É, eu sei. E essa será a última vez que me arrisco. É porque quando pensei no quanto meu povo foi injustiçado, não pensei duas vezes em invadir Aclasia e trazer armas. — Miomura encurvou a cabeça com o semblante entristecido.
— Isso soou bastante heroico! — disseram as filhas mais novas, seguida da Nora. — Ele amou tanto o povo que foi capaz de sofrer tantos riscos, que fofo.
Florento riu.
— Isso não é coisa que se elogie, meninas! — Zora repreendeu. — Ah, a linhagem da Alura estragou esse garoto. — Colocou a mão na cabeça em decepção.
— Como assim, Tio Zora?
— Oh, então essa ousadia vem de linhagem? Agora fiquei mais curioso. — Florento ficou mais animado.
— Há alguns anos, o pai da Alura, seu avô no caso, organizou uma rebelião a qual resultou em sangue. Não houve luta, pois o meu pai havia denunciado tal rebelião aos capitães, estes que enviaram soldados para aniquilarem o seu avô e os seus apoiantes.
— Minha mãe nunca tinha me contado isso.
— Ela deve ter guardado isso para si todo esse tempo, não querendo que seus filhos soubessem. Inclusive, o livro que você carrega é a última coisa que havia restado do seu avô para Alura.
— Viu só, Miomura. Não pense jamais em se rebelar, assim como seus antepassados — afirmou Florento.
— O meu avô queria ser livre apenas.
— Mas o que isso lhe custou? — Zora elevou um pouco o tom de sua voz, deixando o ambiente um pouco mais tenso. — Hã, Miomura?
— Se o seu pai não tivesse contado, ele não teria sido morto. No fundo, tio Zora, seu pai foi um assassino — disse Miomura.
— Muitas pessoas perderiam a vida em vão — disse o chefe aldeão, batendo o punho na mesa. — Seu avô estava trilhando o caminho da morte. E muitas pessoas pagariam por isso.
— E agora, Tio Zora. Pode dizer o mesmo?
O ambiente havia ficado pesado. Diante daquelas palavras, Zora não sabia o que dizer, havia sido confrontado com a situação presente, que não era das melhores.
— Bom, esqueçamos isso. — Florento tentava apaziguar o ambiente. — Não revivamos o passado.
— O rapaz tem razão, pai — disse a filha mais velha. — O que passou, passou, agora temos uma iminente catástrofe para nos preocupar.
— Sim, pai — assentiu Nora. — Agora mais do que nunca devemos estar unidos.
Diante de tais palavras, Zora ergueu a cabeça e esticou a mão ao Miomura.
— Perdão por desenterrar o passado.
— Não, Tio Zora. A culpa é toda minha. — Miomura balançou a cabeça negativamente, relutando em dar a mão.
— Deixa de timidez, Miomura. — Florento bateu no ombro dele. Ele, então, apertou a mão do chefe aldeão com um sorriso em seu rosto. — Bom, agora vamos ao assunto verdadeiro de nossa visita a sua casa, Sr. Zora.
— Hã?
— Bom, o capitão Melquiore em pessoa pediu-nos que reuníssemos nove pessoas para treinarem no campo de treinamento em Aclasia.
— O quê?
— É isso, Tio Zora. Sei que é um absurdo, mas…
— Do que está falando? — Um brilho se acendeu nos olhos de Zora. — Mas essas são excelentes notícias!
— Eu não disse? — Florento sorriu, convencido. — Até o seu chefe concorda que isso é melhor que nada.
— Eu não esperava tal benevolência vinda do capitão de Aclasia — o chefe sorriu. — Pode deixar que escolherei os homens mais fortes de todo o vilarejo, começando por mim.
— Não exagere, pai! — suas filhas riram-se.
— Receio que isso não será possível — disse Florento, desapontando o homem que havia ficado todo feliz. — Apenas jovens da mesma faixa etária que o Miomura.
— Mas por quê? — indagou, decepcionado.
— Ordens do Capitão. E isso deve permanecer em segredo, porque ele também está arriscando sua cabeça para ajudar o povo.
— A minha boca é um túmulo — declarou o chefe dos escravos e direcionou os olhos para suas filhas. — Nada pode sair daqui, ouviram?
— Não contaremos nadinha de nada — garantiram, balançando suas cabeças negativamente.
— Devo dizer que, se contarem, o povo de Mioria é que sairá sofrendo — Florento olhou tão sério para aquelas meninas. Na sua cabeça, ele pensava que as mulheres é que tinham esse problema de não guardar segredo, muito mais do que os homens.
— Elas não contaram nada, minhas filhas sabem guardar segredo — atestou o chefe.
— E chefe, eu preciso que o senhor me ajude a escolher oito pessoas para eu poder levar a Aclasia.
— Não eram nove?
— Um deles é o Gabriel.
— Excelente escolha! — sorriu o chefe aldeão.
Em seguida, a porta bateu e o chefe recordou-se de que tinha uma reunião atrasada.
— Zora!
Miomura pôde reconhecer essa voz, era a do seu pai. Seu coração acelerou e seus olhos arregalaram. Ele colocou a máscara de imediato, enquanto uma das filhas seguia em direção à porta para abri-la. Miomura pediu para Zora que não contasse nada ao seu pai, mas sim que inventasse qualquer desculpa caso ele perguntasse sobre ele.
A porta fora aberta, causando um leve crepitar das dobras. A filha mais velha sorriu para o homem, à sua frente, e abriu passagem para ele entrar. Rymura arregalou os olhos ao se deparar com dois soldados.
— Perdões, eu volto outra hora — Rymura, todo temeroso, pretendia voltar, no entanto, o chefe aldeão levantou a mão.
— Não precisa ter medo, Rymura. Esses soldados vem em paz.
— Paz? — questionou, pois normalmente a palavra paz não combinava com soldados.
— Sim, paz. Sente-se.
Relutante, Rymura seguiu sentando sobre um dos banquinhos, distantes daqueles dois soldados. Florento observava o pai do Miomura, realmente seu filho era a cópia dele, de tão parecidos que eram.
Rymura permaneceu quieto, não sabia o que dizer. Na sua cabeça, não ousaria cumprimentar os soldados com medo de uma indignação por parte deles.
— Rymura, estes aqui são soldados de Aclasia — apresentou o chefe aldeão.
— Eu sei, mas o que eles fazem na casa de um escravo? Se é que me entendem, senhores. — Olhou para os soldados com temor.
— Eles vieram recrutar nove pessoas para treinarem no campo de treinamento em Aclasia.
— Hã?
— Sim — Florento assentiu. — Viemos em nome do nosso capitão, viemos recrutar nove pessoas para treinarem em Aclasia. É uma honra, não é? — sorriu.
— Mas por quê? — Indagou Rymura, confuso.
— Ordens do capitão. E isso deve permanecer em segredo — Florento respondeu friamente. Rymura tinha mais questões para fazer, mas decidiu colocar-se em seu lugar para não irritar os soldados.
— Já agora… — disse o chefe aldeão, olhando para o Rymura. — O seu filho pode fazer parte desses nove, não?
— Hã? — indagou Rymura, estático. Seu olhar em profundo tremor ia ao encontro do olhar calmo do chefe aldeão, era como se estivesse escrito em seu semblante: por que fez isso?
O chefe aldeão levantou as duas sobrancelhas, em resposta à reação do Rymura quanto à sua proposta.
— Sim. Sim — assentiu Florento. Ao passo que o soldado mascarado permanecia quieto. — Se tem um filho, não perca tempo. É uma oportunidade de ouro.
— O meu filho está doente. — Rymura optou por mentir, ele em hipótese alguma queria entregar o seu filho nas mãos dos soldados. — Sinto muito, mas não podem levá-lo. Levem-me a mim.
— Mas eu vi o Miomura hoje — Com essas palavras, o chefe aldeão colocou Rymura contra parede. Aquele pai, apreensivo por seu filho, não compreendia as ações perpetuadas pelo chefe aldeão. Seu coração desabou, seu rosto ficou pálido. Agora lhe restava suplicar e pedir perdão a fim de diminuir a cólera dos soldados que recairia sobre si como uma montanha despenca do alto em direção a uma árvore indefesa.
— Mil perdões, senhores! — Encurvou a cabeça com as mãos sobre a mesa. As filhas observavam aquilo em espanto, mas nada podiam dizer umas às outras. O chefe aldeão repousou seu olhar entristecido sobre aquele homem, ansiando contar-lhe toda verdade. — É que a situação do meu filho e a minha não está na boa. O capitão outrora disse que nos mataria.
— Se o seu filho vier conosco, o decreto poderá ser revogado — afirmou Florento, roubando um gemido do Rymura, que levantava o seu rosto vagarosamente.
— E isso é sério?!
— Sim.
— Mas eu e o meu filho não somos merecedores de tal benevolência. Não entendo o porquê agem assim.
"Caramba, o pai do Miomura é humilde demais", pensou Florento, olhando para Miomura que permanecia quieto com aquela máscara que escondia seus sentimentos diante daquela situação.
— Rymura, veja bem. Pior é se recusamos, não é todo dia que recebemos tal benevolência — acrescentou o chefe aldeão.
— O escravo tem razão. Isso pode ser considerado como um insulto e o povo poderá pagar por isso antes que a guerra comece — ameaçou Florento, rindo por dentro dos seus argumentos mal colocados. Mas como tinha a farda de soldados, tudo que falasse seria aceito.
— Tudo bem — Rymura acabou cedendo. — E peço que me levem junto.
— A seleção é apenas para jovens.
— Ah…
Rymura lamentou.
— Bom, é isso. Agora estamos nos retirando e aguardamos o seu filho hoje ao entardecer no portão principal de Aclasia. — Dito isso, os dois soldados levantaram-se e, acompanhados pela filha mais velha, saíram da casa do chefe aldeão. A filha mais velha sorriu e encurvou a cabeça aos dois, fechando a porta enquanto desejava boa sorte.
— Caramba, o seu pai é humilde demais. E céus! Ele é muito protetor, mesmo diante da revogação, permaneceu relutante em te deixar ir — reclamou Florento.
— O meu pai é assim mesmo. Com certeza deve estar zangado comigo neste momento.
Florento bateu o ombro do Miomura:
— Não se preocupe com isso, agora você está a salvo. Seu pai caiu direitinho na nossa armadilha e agora o seu sumiço da vila poderá ser explicado.
— Verdade.
— E agora, para onde vamos?
— Para a casa do Gabriel, meu melhor amigo.
— Me parece bem.
E assim, os dois continuaram caminhando pelo vilarejo.
(...)
— Não. Não. Não! — contestava Rymura, segurando sua cabeça. — Será possível que esses soldados não nos deixem paz? Nove pessoas? E isso não me cheira muito bem!
— Acalme-se, Rymura.
— E você… — Aquele pai, em um turbilhão de emoções, voltou seu olhar arregalado ao chefe aldeão. — Como pode ter me atraiçoado? Acaso, não percebeu que eu estava tentando guardar o meu filho?
— Você entendeu errado, Rymura — disse o chefe aldeão com um olhar severo. — Eu estava tentando salvar a vida do seu filho.
— Salvar?…
— O soldado falou que o decreto de morte seria revogado. Então, por que não tentar? E veja só, Miomura também aprenderá como se defender contra um soldado. Tudo isso pela benevolência do capitão.
— Benevolência? Isso não faz sentido nenhum.
— Nossas vidas estão nas mãos deles, Rymura. Se quiserem podem nos matar a qualquer momento, você mesmo testificou isso várias vezes.
— E é por isso que acho difícil de engolir essa história de benevolência. Por que ajudar somente nove? Isso só pode ser uma piada de muito mal gosto!
— Pois é, eu também acho um absurdo, no entanto, saiba que não é bom questionar nada que venha dos capitães.
— Droga, droga, droga! — Rymura bateu o punho na mesa, chorando. — Até quando seremos oprimidos desse jeito?!
E assim, aquele homem ficou se lamentando, enquanto temia pela vida de seu filho.