Volume 1

Capítulo 18: Coração quebrantado

— E isso foi tudo o que aconteceu — Nádia suspirou e pegou no cálice de água que sua serva havia trazido nesse meio tempo, bebericando suavemente.

Melquiore ficou sem palavras. Já Miomura ficou estupefato com o relato. Custava-lhe acreditar que teria esquecido daquela parte de sua vida.

— Como pude me esquecer disso?

— Caramba! — Florento bateu nas costas de Miomura com um sorriso. — Você tem o meu respeito!

— Melquiore? — Nádia pousou o cálice na mesa quadrada e olhou para o primo, que continuava com os lábios selados.

— É realmente algo espantoso — disse Melquiore. — Digno de parabéns. No entanto, nada disso vai anular a sentença de morte do garoto. — Colocou a mão na alça da espada na cintura.

Miomura arregalou os olhos diante das palavras do capitão. O sorriso do Florento logo se desvaneceu. Ele esperava que, após ouvir aquela história, o capitão pudesse reconsiderar, no entanto, tudo aconteceu ao contrário.

— Tio, por quê?

— Não posso acreditar — disse Nádia com a testa franzida. — Não é possível que não se tenha comovido nem um pouco. Não vai me dizer que o seu coração virou tão maligno quanto o de Valdes?

Ao ouvir o nome do segundo capitão, as veias de Miomura espreitaram-lhe a pele. A lembrança daquele sorriso, daquele rosto escarnecido passou por sua mente.

— O que quer que eu faça? — indagou Melquiore, friamente.

— Que pelo menos reconsidere deixá-lo vivo e esquecer essa história de morte por guerra — implorou Nádia.

— O que me pede é muito. — Melquiore puxou a alça da bainha que continha a espada, retirando-a vagarosamente. Sua lâmina afiada resplandecia a luz dos candeeiros fixados no teto da sala de estar.

— Tio, o Miomura salvou crianças prestes a serem vendidas como escravas — disse Florento, gesticulando com as mãos.

Miomura permanecia quieto, com a cabeça encurvada, enquanto o ambiente ficava cada vez mais tenso. Seus olhos estavam direcionados naquele tapete vermelho.

Aquela cor carmesim o fazia lembrar do sangue do seu povo. Dia após dia, morria um dos seus por conta de trabalho escravo e, em troca, eles recebiam migalhas que por vezes não saciavam suas fomes.

Lembrou-se também da riqueza que a cidade de Aclasia ostentava à custa da vida de milhares de escravos. Aquela terra era deles e, mesmo assim, sofriam.

— Ele merece misericórdia — concluiu Florento. Sua mãe assentiu a cabeça, concordando com o filho.

— Peço por mim. Pela amizade e pelo amor que tem por mim, poupe a vida dele. — Nádia suplicou, pensando na amiga de longa data, a qual não havia há bastante tempo. Mas ainda assim, a luz de sua amizade ainda estava acesa e a esperança de se reencontrarem não se apagava.

— Escravos não merecem misericórdia... — declarou Melquiore.

Aquelas palavras foram como a última gota de água jogada ao balde, pois levantou, assim como as ondas do mar, uma tremenda tempestade de furor.

Encolerizado, Miomura levantou-se do sofá.

— Misericórdia? Quem precisa disso? — ele riu em choros. — Para começar, essas terras são nossas...

Hã?! — Melquiore removeu de uma vez por todas a espada da bainha, apontando para o garoto. — Como ousa?!

— Vai me matar? Eu não importo.

— Como ousa me dirigir a palavra dessa forma?

O clima havia ficado mais pesado naquela sala de estar. Melquiore e Miomura entreolharam-se seriamente; um chorando e outro encolerizado por ser afrontado por um escravo, pela segunda vez. Dessa vez, Melquiore decidiu que não toleraria mais afrontas, dessa vez não se entregaria ao seu mar de sentimentos empáticos por escravos.

— Aconteceu há bastante, o nosso povo vivia em sua terra linda e bela. Mas certo dia chegaram soldados desconhecidos e colocaram fogo em nossas coisas, nos mataram pela espada, nos tomaram como escravos, nos obrigaram a erguer fortalezas, reis e cidades... — disse Miomura rindo novamente, em choros. Enquanto isso, todos o observavam seriamente.

— Ladrões... Assassinos... Bandidos e desumanos, isso é o que são! Essa terra — Pisou fortemente sobre o tapete carmesim. — É nossa! — Miomura suspirou freneticamente e caiu no sofá. Melquiore permaneceu com a espada apontada, seu olhar exalava seriedade, no entanto, aquela expressão furiosa havia desaparecido.

— Miomura! — clamou Florento, batendo no rosto dele, que se fechava vagarosamente.

Melquiore devolveu a espada de volta à bainha, permanecendo calado. O rosto da sua prima jazia em tristeza, porquanto aquelas palavras duras eram verdadeiras. Os Aclasianos estabeleceram o seu reinado na terra que não lhes pertencia e mataram muita gente, desde sempre eles foram os verdadeiros vilões.

— Melquiore?

— Eu sou o capitão do maior exército de Aclasia... Então, me explica, por que eu me sinto mal por esses malditos escravos? — Olhou para sua prima sentada e sentou-se em um suspiro aborrecido. — Eu não deveria ser impiedoso?

— Não... Não. — Nádia aproximou-se com um sorriso no rosto e colocou a mão sobre os cabelos castanhos daquele homem. — Isso é ser um humano de verdade. Não há nada de errado nisso.

— O que eu faço? Eu, na verdade, não concordo com o que o rei disse. Mas não posso ir contra as ordens dele — disse Melquiore, cabisbaixo. A esta altura, observando aquele garoto dormir no sofá com o rosto abatido, seu coração ficou mole. As imagens do povo de Mioria em prantos e desesperos ainda o assombravam internamente. A culpa o atravessava, as palavras do garoto ecoavam repetidamente sua mente.

— Faça o que o seu coração quer.

— Ajudar o povo, no caso? Eu não posso fazer isso.

— Escuta, Melquiore. — Nádia afagava seus cabelos. — Você conhece o criador?

— Criador? — indagou Melquiore.

— Sim, o Criador dos seres humanos.

— Nunca ouvi falar — declarou Melquiore.

— Dizem que ele fez os humanos, cada um com o seu propósito nessa terra. E esse propósito está presente nos nossos corações desde a nascença.

Melquiore riu e Nádia cruzou os braços em um suspiro aborrecido.

— Não. Não. Eu não estou rindo disso, não. Mas é engraçado eu ter nascido para esse propósito — disse Melquiore. — Afinal, eu sou o capitão. Não tenho nada a ver com os escravos. Eles não passam de escravos e...

— Seres humanos. Ajude-os e não fuja dos desejos bons do seu coração. — Colocou o dedo contra o peito, sorrindo levemente. — Tenho a certeza de que isso o fará feliz e espantará para longe a tristeza.

— Ele dormiu — afirmou Florento, observando seu amigo com a cabeça posta contra uma almofada. — De olhos abertos, como se não bastasse.

Florento passou a mão sobre seus olhos, fechando-os.

— Acho que ele desmaiou. — Nádia lançou um sorriso ao vento, observando tanto garoto deitado no sofá, assim como o seu filho, com o rosto mesclando preocupação e alívio.

Ah! Isso! — disse Florento.

— Depois de falar aquelas palavras duras, ele acaba dormindo, sinceramente... — Melquiore balançou a cabeça. — Esse escravo é bem ousado. Tudo bem, venha comigo, Florento. — Melquiore levantou-se do sofá e começou a caminhar. Dada a ordem, Florento deixou Miomura repousar sobre o sofá e levantou-se, seguindo o capitão do exército de Aclasia.

— Para onde vão?

— Tem sorte, prima. Farei o possível para ajudar esse povo, mas não espere muito.

— Já é o bastante você se propor a ajudá-los — Nádia sorriu, observando seu primo e seu filho se afastarem cada vez mais até seus olhos não conseguirem mais os alcançar. Haviam saído para fora da casa.

— Alura, eu consegui proteger o seu filho — declarou Nádia, contemplando com um sorriso o rosto daquele garoto.

                             (...)

Por outro lado, Melquiore e Florento estavam às portas da casa, contemplando aquele pequeno jardim. O vento batia contra seus rostos, enquanto observavam a escuridão da noite repleta de estrelas e lindo luar.

— Capitão Melquiore, o senhor ainda não disse... O que vamos fazer mesmo? — indagou Florento. Ele pensava que o capitão pretendia invadir o campo de treinamento e levar algumas armas para os escravos. Essa, na sua ótica, seria a única maneira de os ajudar.

— Bom, primeiro iremos levar o soldado que o rapaz golpeou para conseguir chegar aqui — afirmou Melquiore.

— Não o terão enterrado? — questionou Florento, olhando para o Melquiore, que continuava a observar aquela densa escuridão. De repente, a luz dos candeeiros tomou conta do jardim e afora, iluminando todo aquele espaço.

Seus olhos brilhavam intensamente ao contemplar o reluzente amarelo refletido pelos candeeiros.

— Com o escravo desacordado, saberemos apenas se formos até lá verificar — disse Melquiore. — Caso o soldado esteja morto e enterrado, não haverá perdão.

Naquele momento, Florento pôde sentir uma frieza naquelas palavras. Melquiore, apesar de comovido pelas palavras do jovem, jamais o perdoaria por tirar a vida de um dos seus soldados. Para que ele pudesse ajudá-lo, precisaria que suas mãos estivessem limpas e inocentes de sangue humano. Florento torcia em seu coração para que Miomura não tivesse feito isso, se não, dessa vez seria o seu fim.

— Certo. — Florento assentiu com a cabeça.

Então, caminharam em direção ao portão principal.

                              (...)

Em contrapartida, no Vilarejo de Mioria, as tochas haviam sido acesas, deixando a vila clareada. Brasas eram elevadas ao céu noturno, repleto de estrelas brilhantes.

Sem trabalho por hoje, os Miorianos haviam ficado tão satisfeitos que quase se esqueciam de que dentro em breve entrariam em guerra. Queriam a todo custo passar longe de tal pensamento e dormir confortavelmente em suas casas, na esperança de que tudo aquilo fosse apenas um sonho.

A luz das tochas, em sua casa, Yara se assentava à mesa, que continha uma panela de barro e três pratos sobre. Preocupada, ela aguardava seu irmão mais do que o seu pai, que provavelmente estava com um de seus amigos.

O normal seria ela começar a comer antes deles chegarem, como de costume, mas esta noite era diferente. A preocupação era maior que sua fome.

A porta abriu-se, tirando um sorriso esperançoso de Yara, no entanto, era apenas o seu pai.

— Yara! — Ele fechou aquela porta de bambu e dirigiu-se à mesa. — Desculpa ter chegado tarde, mas como hoje os oficiais não haviam aparecido para trabalhar, eu e uns amigos decidimos nos reunir. — Puxou um dos seus banquinhos e assentou-se na mesa. — Fazia tanto tempo que não me sentia tão feliz, mesmo sabendo que em breve entraremos em guerra!

Seu pai continuou a falar, mas parou, notando que sua filha não lhe prestava a atenção. Ela parecia estar no mundo da lua, mas com o olhar preocupado.

— Filha?

Hãm?

Seus olhos se encontraram.

— Nem prestou atenção no que falei. O que aconteceu?

— Não, não. — Yara balançou a cabeça e deu um sorriso. — Você estava falando que não se divertia há tanto tempo, não é?

— Onde está o Miomura?

A temível pergunta chegou aos ouvidos da Yara, seu pai agora dava falta do seu irmão e ela não tinha nada de bom para respondê-lo. Como contaria que Miomura decidiu visitar a cidade de Aclasia? Ou ainda, que apunhalaram um soldado?

— Miomura?

— Sim. Eu não o vejo aqui.

— Ele, eh... Ele, eh... — Yara estava processando qual desculpa daria ao pai para esconder a verdade nua e crua, que levantaria a cólera dele.

— Ele, eh?

— Ele foi para casa do Gabriel! — Yara deu um sorriso forçado.

— Pensei que ele estivesse de castigo — declarou Rymura. — Trabalho e casa, foi o que eu disse para ele. Como ele ousou me desobedecer!? — Enfurecido com o filho, Rymura levantou-se do banquinho. — Vou buscá-lo!

— A Maria está doente! — exclamou Yara, tensa. — E o Gabriel pediu ajuda a ele.

— Maria doente? — Rymura desfez aquele semblante encolerizado e levantou uma de suas sobrancelhas. — O que ela tem?

— Ela ficou gripada.

— Mas por que o Gabriel precisaria de Miomura para ajudá-lo? Se ele não sabe fazer nada de jeito, se não ler aquele livro patético.

— O livro não existe mais — declarou Yara. — Ele foi jogado ao rio por um oficial.

— Então foi por isso que ele voltou abatido naquele dia — relembrou Rymura.  — Bem feito, eu já o avisava desde criança a não levar objetos para obras.

— Aquele livro era importante para ele. Uma herança da mamãe.

— Que seja! — disse Rymura. — Não importa mais. Agora eu preciso buscá-lo. Amanhã, você vai ajudar o Gabriel a cuidar da Maria. Você é a mais indicada, não àquele rebelde.

— Por essa noite, pai. Eu te peço. Gabriel e Miomura são melhores amigos, eles quase não têm tempo de ficar juntos. Estão quase sempre trabalhando e essa é a oportunidade deles passarem um tempo juntos.

— Yara, você sabe que se eu colocar a mão na cabeça dele—

— Por favor, pai — Yara suplicou com as mãos entrelaçadas em forma de oração. — Deixa ele, Gabriel e Maria são boas influências e podem aconselhá-lo a tomar melhores decisões, mais do que nós que somos famílias.

— De fato — Rymura suspirou profundamente e sentou-se no banquinho de madeira. — Você tem razão. Tudo bem, mas de amanhã não passa. Quero ele aqui.

Yara precisava de muitas rezas para que Miomura pudesse estar presente na vila amanhã, se não também teria de enfrentar a fúria do seu pai.

                            (...)

A luz das estrelas e seus astros, Melquiore e Florento aproximavam-se do portão principal, na expectativa de saber o que teria acontecido com o soldado que guarnecia o portão principal. Ao chegarem perto, ouviram clamores e gritos.

Então apressaram seus passos, podendo contemplar um soldado clamando pelo seu companheiro sentado em uma cadeira de madeira, todo ferido.

— Por favor! — O soldado olhou para os dois homens que estavam diante de si, no entanto, arregalou os olhos ao perceber que quem, na verdade, estava diante dele era o capitão do exército de Aclasia. — Capitão Melquiore?

— Ele ainda vive? — Indagou Melquiore.

— Sim. Sim. Mas o seu coração bate fraquinho, parece que alguém estancou o sangue, se não provavelmente ele estaria morto — afirmou o soldado.

— E não foi você?

— Não, capitão. Sinto muito, mas quando cheguei, encontrei-o desse jeito desacordado. Eu ia o substituir mais cedo, mas aconteceu que a minha mulher acabou passando mal e tive que ajudá-la.

"Então aquele escravo, após golpeá-lo, tratou do curativo do soldado. Qualquer um teria enterrado o corpo, a saber que se o soldado sobrevivesse desejaria vingança", pensava Melquiore, observando aquele soldado ferido. Aquilo o surpreendeu tanto que estava mais disposto a ajudar aquele escravo corajoso.

Melquiore deixou um riso escapar, o que deixou tanto o Florento, assim como o soldado, estranhos.

— Senhor?

— Não é nada. É comigo mesmo — afirmou Melquiore. — Florento, ajude o soldado a levar o corpo do soldado ferido ao centro de atendimento médico.

O centro de atendimento médico de Aclasia era uma mansão com dormitórios e médicos para atendimento exclusivo dos soldados da cidade de Aclasia. Lá, não havia custos impostos aos soldados que se feriam em missão de serviço, apenas aos soldados que se feriam ou adoeceriam fora da missão de serviço.

Na mansão dos Larthe, Miomura que havia desmaiado logo após ter proferido aquelas duras palavras ao capitão do exército de Aclasia, finalmente acordou. Seus olhos contemplavam primeiramente uma linda mulher, cujos olhos castanhos o observavam com um sorriso gentil emoldurado no rosto. Sentia também a mão dela passar pelo seu cabelo.

— Acordou?

Com o rosto tão vermelho quanto um tomate, ele retirou sua cabeça das delicadas coxas daquela mulher e pôs-se assente no sofá.

— Não tenha medo — Nádia sorriu.

Miomura coçou os cabelos da cabeça, confuso. Perambulava o olhar silencioso pela sala, buscando sem sucesso encontrar seu amigo Florento.

— Desculpa, é que eu...

— Eu é que peço desculpas. Tomei a liberdade de o incomodar mesmo dormindo, sinceramente.

— Não. Não — Miomura sorriu, constrangido. — A senhora não incomodou em nada.

— Você mudou muito, está mais crescido. No entanto, se tem uma coisa que não deixou de ser é ousado.

Miomura ficou ainda mais envergonhado ao ouvir aquelas palavras no tom dócil daquela linda mulher. Apesar de imponente e corajoso, na frente de uma mulher; seja ela de qualquer idade, Miomura aparentava instabilidade.

— Eu... Agradeço.

— Não foi um elogio — Nádia agora estava séria, seus traços se reuniram para formar uma expressão de indignação. — Não imagino como deve estar a sua mãe agora! Morta de preocupação!

Ao passo que Miomura sorria de leve. Contudo, sua face deixava escapar certa tristeza enquanto Nádia lhe passava um duro sermão por ter enfrentado os capitães e ter se arriscado tanto, entrando novamente a cidade de Aclasia.

— Não acha que está crescido demais para dar trabalho à sua mãe?

— Sinto muito — Miomura encurvou a cabeça.

— Não volte mais a fazer algo idiota desse jeito. Saiba que o coração de uma mãe é muito frágil — declarou Nádia.

— Pode ficar tranquila, tia Nádia. Minha mãe não está mais no vilarejo de Mioria — uma lágrima desceu dos olhos de Miomura. Aquelas palavras, ditas ao vento, haviam feito o coração de Nádia desmoronar por terra, seus traços contorceram-se, moldando um semblante triste.

— O que aconteceu? Ah, não... Não pode ser... — Ela cobriu a mão sobre a boca e choramingou. — A minha amiga, não.

— Ela está viva.

Ao ouvir isso, o coração de Nádia encheu-se de esperança. As lágrimas cessaram, o susto passou.

Ahhh! — Nádia suspirou, um sorriso alívio tomou conta de seus lábios. — Seja mais direto, jovem. Quase me mata de susto. Mas então, o que aconteceu?

— Bom. Ela fugiu do vilarejo.

— Fugiu?

— Sim, há alguns anos ela saiu para trabalhar e nunca mais voltou. Uma Mioriana presenciou sua fuga.

— É credível isso?

O coração de Nádia estava prestes a desmoronar novamente, pois fugir não combinava com sua amiga. Ainda que estivesse sofrendo pela dor da escravidão, ela não, não abandonaria sua família do nada. E o fato mais próximo relacionado ao seu desaparecimento era sua morte e o encobrimento da mesma. — Eu acho que... — Nádia tentava reprimir essas palavras tão óbvias de sair de sua boca, custava-lhe acreditar nessa hipótese.

— A mulher não teria o porquê mentir, eu acho. Mas se ela estivesse morta mesmo, não havia razão para encobrir seu assassinato, visto que eles fazem e desfazem da nossa vida sem prestar satisfação a ninguém, se não, ao rei injusto.

— Eu não sei não. Apesar do meu coração crer que ela está viva, a minha mente me diz o contrário.

— E em qual prefere acreditar?

— No meu coração.

— Eu também. Se a minha mãe fugiu, com certeza as motivações que a levaram a fazê-lo não foram egoístas.

— Isso é verdade — assentiu Nádia. — Mas eu ainda estou muito confusa. Afinal, o que a fuga de uma mulher pode acrescentar ou diminuir na escravidão de um povo?

— É da minha mãe que estávamos falando — afirmou Miomura.

— Ainda assim, o que ela fez, se fez, foi algo tão inusitado. Não é algo que eu parabenizo, mas repreendo — declarou Nádia. — Fugir de Aclasia, seja lá for como ela fez, é perigoso. Falo da imensa caminhada sem mantimentos, sem lugar para onde ir. Ela ficou louca!

Miomura permaneceu em silêncio, enquanto Nádia continuava lhe dando um grande sermão, que, na verdade, deveria ser para sua mãe.

Fugir de Aclasia era bastante difícil para qualquer um e, ainda que conseguisse fugir, as chances de sobrevivência eram demasiadamente mínimas. E pensar nisso, deixava a Nádia ainda mais confusa.

Ao passo que, naquela longa noite, Miomura a fazia companhia, ouvindo suas lamentações.



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