Volume 1

Capítulo 14: Lembranças

 

Olhos arregalados, semblantes estupefatos, assim estavam todos presentes naquela sala de estar. O capitão Melquiore pasmou ao contemplar o rosto de Miomura. O jovem plebeu entrara em transe naquele vislumbre. Ele havia se deparado com o capitão que lhe prometara a outrora matá-lo. Por um momento, Miomura pensou que aquilo se tratava de uma armadilha de Florento, no entanto, se fosse, ele não aparentaria espanto.

Florento não prévia aquele acontecimento.

— Mas você é...

Miomura desviou-se do olhar arregalado que o Melquiore lhe fazia e emitiu como uma voz engrossada:

— Eu sou o William!

— Sim, ele é o William! — confirmou Florento. No entanto, Melquiore havia reconhecido o garoto de imediato. Não havia como lhe mentirem.

— Se conhecem? — Indagou Nádia, uma mulher de longos cabelos castanhos. Seus olhos castanhos tão claros quanto a luz do sol, junto do olhar azul do Melquiore, observavam ambos garotos em seus trajes de armadura.

— Ele é o garoto de quem eu te falei, Nádia — disse Melquiore, ainda encarando severamente aquele jovem. Ao passo que, Miomura, naquele momento, pensava em correr o mais rápido possível. Mas para onde? Ele certamente seria pego.

— Aquele que os enfrentou?

Melquiore assentiu, removendo a espada da bainha.

— Quanta afronta a desse escravo cruzar o meu caminho novamente. Dessa vez não esperarei a guerra para o aniquilar, fá-lo-ei aqui mesmo! — A espada afiada reluzia a luz daquele candeeiro. Melquiore estava determinado a executar o escravo.

Miomura engolia em seco enquanto obsevava a espada que tiraria sua vida. Ele pensou ter conhecido a pessoa certa, que o ajudaria em seus planos, mas acabou conhecendo a pessoa errada que o levara a morte certa.

— William, corra! — bradou Florento, abrindo os braços enquanto se colocava em frente ao Miomura.

— Saiba que isso é inútil. Ainda que ele fuja, irei caçá-lo!

— Por favor, não tire a vida dele! —
implorou Florento, ainda com os braços abertos. Miomura ainda estava relutante em correr. — Ele só quer proteger o seu povo!

— Afaste-se. Prometo que será rápido. — Melquiore aproximou-se com a espada. Ao passo que, Nádia não parava de observar aquele garoto. Ela tinha a impressão de já tê-lo visto antes, em algum momento de sua vida. Coçava seu queixo na tentativa de puxar a mente a memória de onde conhera o garoto.

— Melquiore, espere... — disse Nádia.

Melquiore parou no mesmo instante, revirando o olhar a mulher às suas costas.

— O que foi, prima?

— Tenho a impressão de que eu conheço esse garoto, de algum local... Onde?

Ao ouvir tais palavras, Miomura observou a mulher atentamente, mas nenhuma lembrança dele haver a conhecido veio a sua mente.

Então chegou a conclusão de que se tratava de um delírio daquela mulher.

— Conhece?

— Sim — Nádia assentiu com a cabeça.  — Jovem, qual é o seu nome?

— Meu nome é Miomura Mioria.

No instante em que o rapaz proferiu seu nome, a mente da Nádia se abriu. Sim, ela conhecia o garoto de muito tempo. Não era a primeira vez dele na cidade de Aclasia, quando criança havia se aventurado em Aclasia e sua mãe lhe veio salvar, conhecendo assim, a Nádia.

— Ah, você não deve lembrar, mas eu sou amiga da sua mãe.

— Como assim!? — questinou Melquiore, confuso. — Não está inventando isso para salvar a vida do garoto, pois não?!

— Não, homem! Que ideia a sua — Nádia riu com o punho sobre seus lábios macios. — Guarde sua espada que eu explico tudo.

— Sinto muito, prima. — Melquiore ergueu a espada firmemente. — Mas não posso deixá-lo impune depois de não só caluniar os capitães, mas também quebrar a restrição aos escravos.

Melquiore, apesar de possuir um coração bom, era rígido nas regras e as seguia a risca. Mesmo sua prima, alegando conhecer aquele jovem, não poderia ignorar tudo quanto fez.

— Esse garoto fez muito por Aclasia, sabia disso? O que ele fez não tem pagamento.

— Hã? — Melquiore apontou a espada ao rosto do garoto, que colocava a mão contra o peito. — Esse rebelde?

— O William! Digo, o Miomura? — questionou Florento, baixando os braços, enquanto direcionava seus olhos surpresos ao Miomura.

— Sim. Sim. — Nádia sorriu, assentindo com a cabeça. — Esse mesmo rebelde salvou vidas de crianças.

Melquiore guardou a espada em sua bainha.

— Vou ao menos ouvir.

— Eu sabia que você compreenderia — Nádia sorriu e sentou-se no sofá. — Vamos! Nos sentemos!

Miomura suspirou de alívio. Trechos do seu passado finalmente chegaram a sua mente; de quando em sua inocência e cede insaciável de curiosidade, adentrou a cidade de Aclasia.

Florento suspirou também. Banho de sangue havia sido evitado; tudo isso graças às memórias de sua mãe.

Com todos sentados em seus respectivos sofás, enquanto entreolharam-se em uma profunda quietude, Nádia começou a contar suas lembranças.

— Bom... Tudo aconteceu com a curiosidade desse jovem de conhecer a cidade Aclasia...

                             (...)

                  Há alguns anos

                    Vila de Mioria

O sol nasceu no vilareijo de Mioria.

Sobre os grãos finos de areia repousavam quatro garotos em suas vestes marrons.

Em Aclasia, as crianças faziam trabalhos pequenos e por pouco tempo; como colher algodão ou algum tipo de planta. Isso para permitir que as crianças cresçam trabalhadoras e saudáveis, pelo que futuramente exerceriam os mesmos trabalhos que os seus pais; com pouco direito a descanso.

Nesses tempos livres, as crianças reuniam-se para brincarem entre si. Quando não tinham nada para brincar, dormiam no chão e observavam as nuvens até a hora em que alguns dos seus familiares voltava para casa.

— Que dia sem graça hoje — Miomura suspirou, aborrecido. Ele dormia de bruços enquanto rabiscava o chão com seus dedos.

— Por que não inventamos uma nova brincadeira então? — perguntou Gabriel, lançando uma bolinha feita de panos ao alto.

— Mas que brincadeira, irmão?

Os olhos azuis da Maria, semelhantes a cor do céu, foram direcionados ao irmão deitado sobre o areial. Ela, dentre todas as crianças, sentava sobre a areia com as pernas cruzadas, agarrando-se aos joelhos.

— Eu não sei, Maria.

Ah, estou com fome! — Altos roncos ecoavam de dentro da barriga de Jeziel. Com suas mãozinhas, ela acariciava sua barriga. — Acho melhor irmos comer algo.

— Ei, eu tive uma ótima ideia... — Miomura levantou uma de suas mãos e todos o observaram. — E se nós fossemos até a grande cidade de Aclasia?

— Miomura, você está louco?! — Gabriel gritou. E, com razão, aquela era uma péssima ideia. — Você sabe o que acontece com as pessoas que entram na cidade, certo?

— Gabriel... — Miomura soltou um sorriso travesso, rebolando sobre o chão até chegar aos ouvidos de Gabriel. — Calma, é só uma espiadinha, e logo voltaremos!

— Concordo com Gabriel, é uma má ideia ir até a cidade de Aclasia — Jeziel concordou com a cabeça. — Meu pai disse que eles pegam as crianças e torturam elas, não só, qualquer intruso.

— P-Pessoal, vocês estão me dando medo, eu acho melhor voltarmos para casa! — Trêmula com o que a Jeziel dissera, Maria trincou as unhas da mão direita na boca.

— Seus medrosos! — afirmou Miomura, indignado com a falta de apoio dos seus amigos. Ele sempre ouvira falar da cidade de Aclasia; sobre o quão linda era, sobre as suas comidas deliciosas, mas que não podia entrar. Quando os questionava o porquê, sempre lhe respondiam que algo de mal acontecia a quem entrava lá. No entanto, a curiosidade do garoto não cessou, mesmo diante de tamanha advertência.

— Ora! Ora! Se não são Miomura, Gabriel e as menininhas! — Este que falava era o Thomas. Seu sorriso malicioso como sempre não escondia a travessura que estava prestes a fazer. Ao seu lado estavam seus amigos, Germine e Jota, que sempre o acompanhavam durante o dia, cessando a noite apenas.

Miomura e seus amigos voltaram seus olhares aos visitantes indesejados.

— Você de novo? — questionou Miomura, franzindo o cenho.  — O que quer connosco, Thomas?

— Calma, nós dessa vez só viemos brincar com vocês — disse Thomas, calmo. No entanto, Jeziel, conhecendo suas artimanhas, franziu as sobrancelhas e vociferou:

— Saía daqui, Thomas!

— Ei, menininha! Ninguém a deu permissão para falar! — disse Germine, que estava ao lado do Thomas. Dos seus bolsos, ele tirou areia dura e a arremessou em direção a Jeziel.

Vendo a areia dura tombar sobre o rosto da Jeziel, Miomura levantou-se encolerizado.

— Germine, maldito! — Cerrou seus punhos. — Dessa vez... Você vai ver!

Ao passo que, Gabriel acompanhou o Miomura na mesma cólera. Maria acordou do chão para ir acudir sua amiga Jeziel, que tentava limpar desesperadamente a areia que havia entrado em seus olhos com a gola da camisa.

— Germine e Jota, vamos atacar eles, imediatamente!!! — Thomas retirou a areia endurecida do bolso e começou a lançar aos garotos, que os encaravam furiosos. Miomura e Gabriel que se viam indefesos, cavaram a terra enquanto eram bombardeados com areia dura em seus corpos.

Removendo a areia dura, começaram a contra-atacar. A cada momento, a cada instante, suas vestes ficavam sujas; aquelas veste limpas, que com esforço haviam sido lavadas por seus pais.

Logo após ter seu olho soprado, Jeziel se juntou àquela guerra contra Thomas e seus amigos. Maria, em choros, implorava para que parassem com aquela brincadeira. Era muito arriscado, eles podiam se machucar. Mas eles relutaram e continuaram durante um bom tempo, enquanto Maria chorava pelos cantos.

— Bom, parece que vencemos! — declarou Thomas, cansado. Seu corpo estava transbordante de suor. Ele suspirava continuamente enquanto obsevava Miomura e seus amigos estatelados; com os braços abertos. — Amanhã nós continuamos! Vamos, pessoal.

E então, apoiando os seus amigos cansados e transbordantes de suor, Thomas retirou-se dali.

— Amanhã nós continuamos! Vamos, pessoal.

— Maldito, entrou areia no meu olho! — bradou Miomura e esticou o braço ao limite, tentando alcançar Thomas e seus amigos. No entanto, eles ficavam cada vez mais distantes. — Venha cá, eu vou bater em todos vocês!

— Acho... que eles já foram, Miomura. — Gabriel respirava freneticamente, enquanto olhava para o céu azulado, preenchido por nuvens brancas, em formatos diferentes. — É sempre a mesma coisa.

Maria, a única que havia saído ilesa daquele confronto, recolheu suas lágrimas e sorriu ao observar que seus amigos estavam bem.

— Aí, eu tive tanto medo!

— Droga, agora minha mãe vai gritar comigo — lamentou Jeziel. Sua roupa estava em um estado deplorável, toda manchada de sujidade.

— Você se preocupa demais — disse Miomura.

— Não quero ouvir isso de você, sabe? Sua mãe é pior do que todas mães do vilarejo — riu Jeziel. Gabriel e Maria a acompanharam naquele risada.

— E... É mesmo! E hoje ela está em casa! — Miomura lembrou-se do terror que era a sua mãe. Sua personalidade para com os seus filhos era rígida, não tolerava abusos. No entanto, não deixava de ser uma mãe amável.

— Miomura que se vire.
— Jeziel levantou-se enquanto afagava a barriga, que não parava de roncar. — Eu vou para casa comer.

— Então vamos juntos! — Gabriel levantou-se do chão e sacudiu a poeira que havia se acumulado em sua roupa. — Maria e Miomura, vocês também vêm, certo?

— Eu vou ficar um pouco mais, não quero ir para casa agora — emitiu Miomura, permanecendo deitado.

— Eu vou logo em seguida, Gabriel — afirmou Maria. — Pode ir adiantando.

— Tudo bem — assentiu Gabriel. — Não demorem então.

Jeziel e Gabriel, a passos lentos, seguiram caminhando as suas casas. Com aqueles dois distantes, Miomura e Maria entreolharam-se como se tivessem algo a dizer um ao outro. E tinham.

— Maria, você não vai também?

— Só vou, se você ir — sorriu Maria. Miomura ficou pasmado com aquela declaração e arregalou olhos.

— O que? Mas por quê?

— Eu sei que você ainda não tirou aquela ideia da cabeça — declarou Maria, olhando-o severamente.

— Que ideia, Maria! Não sei do que você fala! — Miomura sorriu de leve.

— Entrar na cidade de Aclasia. Você quer ir para lá, certo?

Maria havia revelado as verdadeiras intenções de Miomura a luz do sol.

— Você me pegou — Miomura admitiu, sorrindo de leve enquanto levantava-se. — Eu estava esperando todo mundo ir embora, para eu ir explorar a cidade de Aclasia.

— Eu sabia — Maria confirmou. — Você não pode ir até a cidade de Aclasia, é muito arriscado. Vamos embora!

— Não, não quero — recusou-se, balançando a cabeça em negação. — Eu vou ver como é a cidade de Aclasia! Se quiser, vá você, eu sei me cuidar bem sozinho.

— Não, não sabe! — contestou Maria, em choros.

— Tente me impedir — Miomura sorriu maliciosamente. — Você é uma medrosa, com certeza não tem coragem! — Ele começou a correr enquanto acenava a mão. — Adeus, Maria! Depois eu te conto como é lá!

— Espera! — Maria esticou suas mãos numa tentativa desesperada de o alcançar. — Ah! — Ela mordeu suas unhas como de costume, sempre que se encontrava em uma situação desesperadora. — Ah! Será que eu devo ir atrás dele ou chamar um adulto!?

Maria ficou naquele impasse por um breve período. Vendo-se sem tempo, ela tomou a atitude de segui-lo a cidade de Aclasia numa tentativa de pará-lo.

                             (...)

Miomura atravessou a cerca que cercava a vila de Mioria e seguiu adiante. Passando por um extenso campo verde, já avistava uma muralha enorme e o portão gigantesco que dava acesso a enorme cidade de Aclasia. Para sua sorte, o portão estava semi-aberto e sem nenhum guarda por perto.

— Que sorte! Não tem ninguém controlando aqui.

Dito isso, adentrou cuidadosamente pelo portão semi-aberto. Caminhando a passos largos, mais adiante já avistava casas feitas tijolos e madeira.  Seus pés descalços tocavam o chão totalmente pavimentado.

— Que lindo...

Seus olhos brilhavam ao contemplar tais casas bem arquitetadas. Depois de tanto andar, não tardou até avistar pessoas circulando pela cidade de Aclasia. Então, para que não o percebessem, correu até uma das casas que era cercada por um muro de tijolos. Deu um pequeno pulo e adentrou.

— Essa foi por pouco... — suspirou.

Mas, de repente, tomou um susto quando alguém lhe tocou no ombro. Seu corpo entrou em transe e começou a tremelicar.

— E-Eu juro que não quis entrar aqui, então por favor não faz nada comigo!



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