Volume 3
Capítulo 147: Cerco
Klara correu atrás de Erandi, que caminhava apressada e irritadamente.
— Espera! — Klara agarrou o pulso da companheira para que parasse.
— Me solta! — Erandi se virou e, com força, se soltou. — O que você quer?!
Klara hesitou por um momento. Queria dizer algo, porém como o faria? Diferente da maioria das pessoas presentes ali, ela não vivenciou a guerra, não conhecia a dor causada por aquela raça e, por isso, muitas vezes sentia que ela era errada por não nutrir o mesmo ódio pelos Anjos como todos.
— Não posso dizer que entendo o que sente... mas saiba que não nego o que os Anjos fizeram. — Klara lançou um breve olhar para seu broche. — Esse broche, ele pode ser um objeto que lembre sobre eles, mas eu escolhi que ele é um símbolo de minha família!
— Família é... — Erandi cerrou os punhos com força. — Sabe o que eles fizeram com a minha? Sabe o que fizeram com a minha casa?
Klara permaneceu em silêncio. Tinha suspeitas de qual lugar seria Erandi baseado em seu nome, portanto entendia o ódio que ela sentia.
— Vou te falar então... — A voz de Erandi soou trêmula pela raiva. — O reino da floresta, vizinho de K’ak’, conhece ele? Era um reino tão grande quanto Jawia... agora, é mais um dos outros cujos nomes foram apagados, esquecidos, tudo graças à essa maldita raça!
“O reino vizinho... Se não me engano o nome era... alguma coisa como Kotan...” Klara se lembrou das histórias de seu pai sobre aquele reino. Foi cerca de cinco anos antes do fim da guerra quando os Anjos atacaram tanto aquele lugar, quanto K’ak’. O reino sob a montanha prevaleceu, ao contrário daqueles que viviam na floresta.
— Eu era só uma criança... Vi os Anjos matando minha mãe, meus amigos... — Erandi olhou para as próprias mãos em um misto de pavor, tristeza e raiva. — Me lembro até hoje de como tentei salvar minha mãe inutilmente...
— Como... você sobreviveu? — Klara desejava poder dizer algo para confortá-la, mas nada que pensava parecia correto.
— Saí correndo para a floresta... Não sei quanto corri, mas acabei trombando com alguém. — Erandi fechou os olhos enquanto sua mente reproduzia o pior dia de sua vida. — Achei que ia morrer naquela hora... Tapei os olhos com medo, mas apenas senti um toque gentil em minha cabeça. Quando encarei aquela figura, me deparei com Aegreon...
— Foi Aegreon que salvou K’ak’?
— Sim... Ele sozinho queimou aqueles malditos como mereciam... E foi por causa dele que decidi me juntar ao Conselho! — O tom de Erandi se tornou determinado. — Para matar os Anjos e salvar aquelas vítimas de sua maldade. Infelizmente, quando comecei a me tornar forte o suficiente para lutar, a guerra chegou ao seu fim.
Klara engoliu em seco enquanto sentia seu estomago embrulhar ao ouvir aquela história. Não era a primeira vez que ouvia um relato do tipo, seu pai já a contou sua história e a dor em sua voz era a mesma, apesar de ele já ter, de certa forma, superado e aceitado aquilo.
— Quando a batalha acabou, voltei para a vila onde eu morava na esperança de encontrar alguém da minha família, mas só havia morte lá... — Erandi encarou Klara fixamente. — Eu tenho um broche como esse... O único item do meu pai, que nem mesmo pude encontrar seu corpo para me despedir, mas não consigo olhar para isso da mesma maneira que vocês.
— Se era de seu pai, por que não pode vê-lo como uma memória dele?
— Ele era um descendente dos Anjos, e mesmo assim eles o mataram. Pra mim, isso apenas me lembra do quão tiranos são eles.
Klara encarou Erandi com uma expressão conflitada. Estava mais que evidente o quão diferente pensava uma pessoa que viveu a guerra, contra uma que nasceu na era da paz.
— Me desculpe, se isso te faz lembrar dessas coisas, vou evitar andar com ele à mostra.
Erandi pôde perceber uma certa tristeza na voz dela, fazendo-a se acalmar um pouco.
“Droga... acho que exagerei um pouco.” Era verdade que Klara não passou pelo mesmo, mas a culpa era dela por não ter nascido antes? “Pensando bem, é bom que ela não tenha vivenciado a guerra.”
Erandi deu uma respirada bem funda.
— Não, tá tudo bem... Pode usar como quiser. Me desculpe por isso.
— Tem... certeza? — Klara se surpreendeu com a mudança de Erandi, tanto que precisou de algum tempo para conseguir responder àquilo.
— Vocês não estão tentando justificar o massacre nem nada, reconhecem o que aconteceu... O problema é meu por não ter superado isso até agora.
Klara sentiu como se sua percepção inicial sobre Erandi havia mudado um pouco. Ela parecia ser uma pessoa difícil, ignorante e orgulhosa, mas, pensando agora, entendia o comportamento dela.
Ela estava sendo, nesse exato momento, testada para se tornar um Pilar. Koeus esteve o tempo todo repreendendo-a, e já disse que ela provavelmente seria reprovada, então faria sentido seu humor não estar bom.
“Até eu estou me sentindo pressionada... E eu sou a única candidata ao título de Pilar da Reanimação...”
— Bem, está tarde, devo descansar. — Erandi começou a se afastar.
— Espera! — Klara tocou levemente o ombro dela. — Sei que nos conhecemos agora, mas saiba que pode contar comigo se quiser falar sobre algo.
Erandi deixou um pequeno sorriso escapar.
— Obrigada, vou pensar ni...
— Inimigos se aproximando! Reagrupem-se! — O grito de um Vigilante ecoou por todo o santuário, interrompendo a conversa.
— Tsc, fala sério, não vão deixar a gente em paz? — Erandi se irritou novamente.
— Mas essa não é sua chance para conseguir vencer a Lily?
Após ouvir aquilo, um sorriso determinado surgiu no rosto de Erandi.
— Tem razão, vou esmagá-los!
Klara se alegrou ao vê-la animada novamente.
— Vamos juntas.
— Com certeza!
***
O Conselho e as candidatas estavam reunidos perto do precipício, bem diante de uma ponta destruída.
Os devotos, assim como algumas criaturas, estavam do outro lado.
No momento não houve nenhum ataque, a Seita apenas estava se reunindo e encarando-os de longe.
— O que será que planejam? — perguntou Jeanne. — Pretendem atravessar?
— Seria demasiado arriscado, visto que esse abismo é largo — apontou Koeus. — Contudo, também não conseguirão muito atacando à distância, não com Clementius aqui.
— Deveríamos atacar primeiro? — perguntou Jeanne.
— Negativo, pode ser alguma armadilha — negou Clementius. — Por hora, vamos ficar atentos e esperar.
— Senhor Clementius. — Um Vigilante se aproximou. — Há inúmeros devotos na ponte do templo e do jardim.
— Dividindo nossas atenções, huh? Melhor nos separamos — sugeriu Koeus.
— Koeus e Jeanne ficarão na ponte do templo. Feng Ping e Lily, para a ponte do jardim. — Clementius imediatamente dividiu os times. — Eu, Erandi e Klara permaneceremos aqui.
— Entendido. — O Pilar da Alteração não perdeu tempo e começou a se dirigir para sua posição.
Feng Ping e Lily trocaram olhares brevemente e se afastaram juntos.
Erandi e Klara permaneceram em silêncio, tensas por estarem ao lado do sub-líder do Conselho, ao mesmo tempo que sabiam que estavam sendo testadas.
— Ansiosas? — perguntou o Pilar da Proteção.
— Um pouco... — respondeu Klara.
— Não é necessário que se preocupem, vocês são todas habilidosas e inteligentes. — Clementius se virou para as duas candidatas. — Além disso, estou aqui para guiá-las e ajudá-las com seus erros.
Imediatamente, Klara se sentiu à vontade graças àquelas palavras.
“Aquilo que sempre ouvi é verdade... Clementius realmente é bondoso.” O sorriso daquele homem era mais que puro, e sua voz sempre trazia palavras de paz.
O Pilar da Proteção lançou um olhar à Erandi, que permanecia calada.
— Minha criança, sei que está chateada com as palavras de Koeus. Ele é um professor afinal de contas, mas ele não disse nada daquilo por mal, na verdade, ele é duro, pois desejava vê-la amadurecendo e aprendendo.
— Ele é assim comigo desde que comecei a treinar para fazer parte do Conselho. — Pela primeira vez, Clementius presenciou Erandi com uma postura cabisbaixa. — Além disso, vai ser difícil eu ser escolhida, né?
— De fato, devo concordar que Lily provavelmente será escolhida.
Erandi contorceu o rosto em frustração.
— Contudo, ainda tem chances de conseguir. — Clementius colocou a mão gentilmente no ombro dela. — Se tentar, pode ainda conseguir, mas nunca ganhará sem lutar.
Ao ouvir aquelas palavras, Erandi balançou a cabeça, deu um pequeno tapa nas próprias bochechas, e mostrou-se determinada.
— Tem razão, obrigada, senhor Clementius!
O Pilar da Proteção sorriu e se virou, focando nos inimigos.
***
Feng Ping e Lily encontravam-se perto de um jardim tão grande, que poderia ser considerado um parque.
Como o lugar estava abandonado, muitas das plantas cresceram demais e avançaram as ruas, e até algumas casas ao redor.
“O lugar onde Clementius está... aquela ponte foi a que Sariel atravessou enquanto fugiam das criaturas de Elgor...” Feng Ping se lembrou das memórias que o viajante lhe mostrou de quando exploraram aquele lugar.
O Pilar do Vento se aproximou do abismo e lançou um olhar para baixo. Claro, não podia ver muito além de alguns metros, já que, além de estarem no subsolo, era uma fenda profunda.
“Não nos deparamos com nenhuma das criaturas de Elgor... Talvez a Seita de Artemis tenha os subjugado...”
Outro mistério que provavelmente ficaria sem explicação era como aquelas criaturas chegaram ali em primeiro lugar. Será que nadaram por rios de magma subterrâneos até ali? E quanto a Seita de Artemis?
Havia muitas coisas que o incomodava, uma delas sendo sobre Koeus. Era muito suspeito que todos os membros daquela Seita nova compartilhavam características importantíssimas com ele: Eram cegos e usavam Alteração para “ver”.
Claro, o Pilar da Alteração foi vítima de um acidente quando ele tentou ler a mente de um devoto de Nergal, o Deus da Loucura, que era um Deus diferente.
Mas, e se aquele acidente mudou algo em Koeus? A busca pelo conhecimento pode ser perigosa, e saber demais pode lhe causar mais tormento que satisfação.
O fato que ele permitiu uma sombra atacá-lo poderia significar que ele sabia que nada aconteceria com ele — por fazer parte daquela Seita em segredo — ou por simplesmente querer descobrir mais sobre aquela coisa.
Feng Ping então lançou um breve olhar para Lily, que o acompanhava.
Outra coisa que o incomodava era como aquela garota podia fazer a mesma coisa que ele, e ambos nunca se encontraram antes.
O primeiro pensamento que cruzou sua mente, era que ela poderia fazer parte de uma Seita, mas logo descartou essa ideia, já que o Conselho deve ter investigado de cabo a rabo sua vida.
Então, como aquilo era possível?
— Lily, certo? — Feng Ping iniciou uma conversa. — Como aprendeu a esconder suas intenções?
— Aprendi sozinha, mestre Ping.
O Pilar do Vento franziu a sobrancelha ao notar que não era capaz de identificar se ela mentia.
— Sozinha... Sabe que é preciso passar por um treinamento específico para aprender isso, certo? Não conheço ninguém que tenha conseguido isso.
— Clementius não lhe disse? Indra parece ter aprendido após ter perdido o braço.
— Indra? — Agora, aquilo era uma grande surpresa para Feng Ping, aquele maluco cujo combustível era a batalha havia aprendido a frear suas emoções? — Bem, ele é um Pilar também, e lutou comigo e ao meu lado antes.
— De fato, mas sou uma candidata à posição de Pilar da Natureza, minhas habilidades não são tão inferiores quanto do senhor Indra.
Feng Ping a encarou por um longo período. Podia entender como Indra, que considerava ele como um rival, pudesse ter entendido sua técnica, mas Lily, alguém que nunca teve contato...
É claro, mentira quando disse que não conheceu ninguém que foi capaz de aprender aquilo sozinho.
Mas essa pessoa era Sariel, e Eribur, comparado do lugar que Lily veio, estão basicamente em dois lados opostos do globo.
Seria possível...
— Por acaso já visitou Eribur? — perguntou Feng Ping com um olhar afiado.
— Como... — Foi por um breve momento, mas Lily se entregou ao deixar sua surpresa transparecer.
— Então você conheceu...
Antes que pudesse terminar, Feng Ping interrompeu a si mesmo ao notar pequenos tremores.
— Estão atacando! — gritou um Vigilante.
Os devotos finalmente começaram a lançar magias à distância, ao mesmo tempo que alguns tentavam criar pontes de madeira negra para cruzar.
— Finalmente decidiram agir, huh? — Ventos começaram a soprar com força ao redor de Feng Ping.
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