Volume 2
Capítulo 94: Voltando à Normalidade
Em uma pequena casa no reino de Fordurn, dezenas crianças se reuniam em uma mesa com comida limitada.
As idades variavam desde os 4 anos de idade e iam até a adolescência, com apenas alguns adultos para cuidar de todas elas.
A cozinha — o local onde faziam suas refeições — possuía vários buracos na madeira, móveis remendados e iluminação fraca.
Este era apenas um dos vários orfanatos em Fordurn que passavam por uma situação parecida — senão pior.
Os responsáveis pelo lugar faziam de tudo para dar uma chance àquelas crianças abandonadas e sem famílias, trabalhando extra e levando-se à exaustão para que eles pudessem descansar e ter um lugar para dormir.
Porém, poucos conseguiam encontrar uma família ou trabalho para saírem de lá, portanto o número de bocas a alimentar não reduzia.
Na verdade, alguns meses atrás — durante a madrugada — uma cuidadora chamada Susanne se deparou com um recém-nascido abandonado na porta do orfanato, sem nenhuma pista dos pais.
No momento atual, alimentava a criança com leite de vaca — sabendo que não era o recomendado, mas não havia ninguém capaz de fornecer leite materno.
O bebê, um menino de cabelos escuros, bebia da mamadeira com voracidade, quase como se tentasse terminar antes que seus irmãos mais velhos.
— Devagar — disse Susanne carinhosamente enquanto o segurava com cuidado. — Vai se engasgar desse jeito...
— Ainda bem que Thomas está tão faminto — disse outra cuidadora se aproximando dos dois. — Quando o encontramos estava tão pequeno e abaixo do peso que temíamos o pior... Mas desse jeito logo vai ficar maior do que os outros.
— Sim... Me pergunto quem são os pais... — disse Susanne de maneira pensativa. — Será que o abandonaram aqui e fugiram de Fordurn temendo a Vigília?
— É a única explicação para alguém fazer algo tão desumano! — respondeu a outra mulher em tom de repreensão. — Como alguém poderia abandonar o próprio filho nessas condições?!
— As pessoas fazem o impensável quando estão desesperadas... — respondeu Susanne. — Lembra que no dia que levaram o anjo tentaram invadir o palácio com escadas?
— Isso ainda não justifica... — respondeu a mulher. — Falando nisso, ainda não encontraram o anjo... O que será que aconteceu? Geoffrey está procurando em todo lugar, e ouvi que a Vigília fez várias perguntas quando estiveram aqui...
— Não me importo, basta que aquela aberração esteja longe de nosso lar — respondeu Susanne com irritação. — Espero que tenha morrido!
Como se sentisse a irritação dela, Thomas começou a chorar subitamente.
— Ah, me desculpe! — disse Susanne enquanto o balançava levemente e tentava acalmá-lo.
— É melhor ir para outro lugar, estão muito barulhentos hoje — disse a mulher referindo-se às outras crianças.
— Tem razão.
Susanne se afastou com Thomas ainda chorando em seus braços, enquanto os outros comiam a escassa comida que tinham.
***
Durante a tarde, a cuidadora caminhava por uma pequena feira de rua em Fordurn, buscando ingredientes e atenta a qualquer desconto.
Esse trabalho era revezado toda semana com as outras empregadas, assim como toda tarefa do orfanato.
Sua cesta ainda nem estava na metade, mostrando o quão difícil era comprar comida em um preço acessível.
Apesar disso, se comparada com as outras vezes que teve de fazer compras, estava mais cheia agora.
Muito provavelmente era devido ao anjo ter sumido e Fordurn estar voltando a se tornar reino confiável para se negociar.
Conforme caminhava, percebeu em uma barraca uma de suas amigas e se aproximou para conversar.
— Susanne! Como tem ido? — cumprimentou a vendedora alegremente. — E as crianças?
— Melhor agora, mas as coisas ainda estão difíceis — respondeu a cuidadora. — E quanto a você?
— Bem, estou conseguindo não perder mais dinheiro quando volto para casa, então já é um bom começo — respondeu. — Ouvi dizer que chegou um pequenino no orfanato, é verdade?
— Sim... Resolvemos chamar ele de Thomas — disse Susanne com um leve sorriso. — Ele é uma graça e está saudável... Mas infelizmente não temos como amamentar ele...
— Ah... Se eu conhecesse alguém poderia tentar ajudar... — disse a vendedora. — A única pessoa que eu conhecia era a Mia... Mas assassinaram ela...
— Mia... O que aconteceu com ela foi tão terrível... e misterioso... — disse a cuidadora com tristeza. — Como está o marido dela?
— Devastado... — respondeu a vendedora com pesar. — Gastou tudo o que tinha com bebida, perdeu a casa e está morando com um dos amigos...
Ao ouvir aquilo, Susanne permaneceu em silêncio por um momento sem saber como responder.
Um clima estranho e pesado tomou conta das duas, deixando a situação um tanto quanto constrangedora.
— Me desculpe por falar sobre essas coisas... — desculpou-se a vendedora. — Como compensação, lhe darei um desconto!
— Ah, não se preocupe, eu também tenho culpa por perguntar sobre o assunto... — respondeu a cuidadora. — Mas gostaria de algumas frutas suas.
— Claro, pode olhar com atenção!
***
Após suas compras, Susanne caminhava de volta até o orfanato e estava bem perto.
A noite começara a cair, sendo as ruas iluminadas pela luz laranja do sol.
Com a cesta surpreendentemente cheia, passava em frente a uma taverna quando escutou um alvoroço dentro e um homem foi jogado para fora pelo dono.
— NÃO VOLTE AQUI ATÉ PAGAR O QUE DEVE, SEU VAGABUNDO! — gritou o taverneiro para o homem caído na lama e batendo a porta da taverna com força.
O homem continuou caído no chão sem mover um músculo.
Preocupada, Susanne se aproximou para verificar a condição dele.
— Ei, tudo bem? Precisa de ajuda? — perguntou gentilmente enquanto se abaixava ao lado dele.
— Ah... Mi dá uma cervesha... — murmurou virando o rosto.
— Por Kura! Rolf?! — surpreendeu-se a criadora ao perceber que aquele homem todo sujo, bagunçado e fedendo a bebida era o marido de Mia. — Consegue se levantar?
Contudo, ele logo desmaiou devido ao álcool.
Sem saber exatamente como agir, procurou ao redor por ajuda.
Por sorte, um conhecido passou por perto e a ajudou a levá-lo até o orfanato, já que não sabia onde ele estava morando.
O dia passou e a cuidadora ajudou Rolf, certificando-se de que nada de ruim acontecesse, como talvez vomitar enquanto inconsciente e acabar se afogando no próprio vómito.
Na manhã seguinte, Rolf acordou bem tarde — bem próximo da hora do almoço — com a pior dor de cabeça de sua vida.
Sem reconhecer o teto que via, disse: — Onde diabos estou...?
Sua vista tentou se ajustar com a claridade, mas doía terrivelmente, como se fosse a primeira vez em sua vida que abria os olhos.
Após um breve tempo, a porta se abriu e reconheceu uma conhecida de sua esposa entrando.
— Ah, que bom que acordou! — disse aliviada. — Como está se sentindo?
— Quero morrer... — disse ele depressivamente. — Tem cerveja aí?
— Nada disso, vai beber água e se alimentar bem! — ralhou Susanne. — Vamos, eu te ajudo a comer.
— Me deixa em paz... Não quero sua ajuda... — reclamou Rolf.
Entretanto, a cuidadora se sentou ao seu lado e insistiu tanto que ele cedeu eventualmente e se alimentou.
Rolf ainda tentou se levantar e ir embora, mas Susanne tomou todas as medidas possíveis para evitar que partisse antes que estivesse totalmente recuperado.
Um dia inteiro se passou, dando trabalho extremo para a cuidadora.
Na manhã seguinte, após tomar um café da manhã — contra sua vontade — recebeu permissão para se levantar e andar pelo orfanato, tendo a oportunidade de conhecer as outras crianças.
Inicialmente sua reação foi de indiferença e, até mesmo, irritação, o que fez as crianças o evitarem.
Após algumas horas, as crianças almoçavam e Rolf permanecia em um canto afastado de todos e com uma expressão fechada e distante.
— Como está hoje? — perguntou Susanne se aproximando.
— Quero ir embora logo e beber... — reclamou. — É a única coisa capaz de diminuir minha dor...
— Por que não trabalha conosco? — perguntou a cuidadora. — Talvez se ocupar sua mente com as crianças, se sentirá melhor...
— Como posso me sentir melhor vendo crianças que poderiam ser meu filho assassinado? — perguntou depressivamente.
Susanne não soube como responder e permaneceu em silêncio.
Estava fazendo o possível para ajudar o marido de sua falecida amiga, entretanto não era uma tarefa fácil.
Rolf havia perdido tudo logo quando as coisas em Fordurn começaram a melhorar, e até mesmo tinha ganho uma moeda de ouro, que seria o suficiente para sustentar sua família por um bom tempo.
Porém, aquela moeda já havia desaparecido a muito tempo devido à bebida.
Enquanto ambos permaneciam quietos, uma cuidadora se aproximou com Thomas nos braços — que chorava no momento.
— Susanne, ele não para de chorar, e não é fome, arroto ou as fraldas... — disse aflita. — Pode olhá-lo e me dizer se está bem?
— Certo. — Ao dizer isso, ela pegou Thomas nos braços e começou a niná-lo, acalmando-se aos poucos e logo começando a rir com as brincadeiras dela.
— Ufa, era só manha... — suspirou a outra mulher em alívio. — Posso deixá-lo com você até ele dormir?
— Claro, conte comigo.
— Obrigado — agradeceu a mulher conforme se afastava.
Susanne permaneceu um bom tempo brincando com Thomas que, por algum motivo, olhava e esticava o braço na direção de Rolf.
Percebendo aquilo, o homem se sentiu levemente desconfortável, mas, por algum motivo, sentia-se curioso com aquela criança.
— Ele parece bem novo... — disse. — Quantos meses têm?
— Cerca 2 meses — respondeu Susanne. — Ele parece gostar de você, gostaria de segurá-lo um pouco?
— Não — respondeu Rolf imediatamente.
— Não precisa ter medo, é só fazer igual a mim — disse a cuidadora se aproximando mais. — Tente pegá-lo.
Rolf encarou a criança com hesitação, entretanto eventualmente estendeu os braços e o carregou com extremo cuidado, fazendo o possível para que não o derrubasse.
Thomas começou a tentar tocá-lo no rosto com suas mãos pequeninas, porém seus braços eram muito curtos.
Rolf começou a brincar um pouco com a criança, que logo começou a rir adoravelmente.
Vendo ambos se dando tão bem fez Susanne sorrir como boba sem perceber.
Naquele breve momento, Rolf se esqueceu de todos os seus problemas e experienciou uma pequena felicidade desde a morte de sua esposa.
— Vocês se dão bem... — comentou a cuidadora. — Até parecem pai e filho...
— Hm... — murmurou o homem com uma expressão pensativa. — Realmente está tudo bem se eu trabalhar e ficar aqui?
— Você costumava fazer trabalhos pesados, certo? — perguntou Susanne. — Precisamos de alguém como você.
Rolf permaneceu em silêncio por um bom tempo encarando Thomas.
A morte de Mia havia destruído completamente sua vida, e agora não lhe restava mais nada, nem mesmo uma casa.
O único lugar que podia ficar era a casa de seus amigos, mas sentia-se terrível por ser um fardo a eles.
Com muita dificuldade, encarou a criadora nos olhos.
— Se eu puder cuidar dele, então aceito — disse com determinação e um sorriso melancólico.
— Neste caso, seja muito bem-vindo! — disse Susanne. — Contaremos com você!
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