Volume 2
Capítulo 106: Ritual de Cura
Atenção: Quando chegarem no separador, recomendo fortemente que escutem isso enquanto leem: https://youtu.be/hNu6FmaUIB0?t=293
Logo depois de colocarem suas bagagens da viagem em seus quartos, cada um do grupo se dedicou a um passatempo próprio.
Feng Ping caminhou com Leif ao redor da cidade acompanhado de Raymond, enquanto Aegreon e Sariel não foram vistos em lugar nenhum.
Quanto a Shiina, foi direto ao local de banho.
Para sua sorte, se deparou com uma lagoa natural com água aquecida, com espaço para várias pessoas se banharem ao mesmo tempo.
Havia uma divisão para cada gênero, e a parte das mulheres estava vazio... exceto por uma pessoa.
A princesa estava com o corpo inteiro submerso na água, portanto apenas era possível ver seu rosto e os belos cabelos prateados.
— Shiina, veio se banhar também? — perguntou Luna naturalmente.
— Claro, não aguento mais passar por frio — disse a assassina enquanto entrava na água, despia-se completamente da toalha que vestia e se aproximava da princesa. — Por que quanto mais tento fugir de lugares gelados, mais eu pareço ir até eles?
Shiina se aproximou mais de Luna até ficar lado a lado com ela, esperando uma reação tímida dela.
Contudo, como se estivesse acostumada com aquela situação, a princesa, com a mesma naturalidade de sempre, perguntou: — Por que odeia tanto o frio?
— Você não deve entender já que é imune ao frio, mas é horrível! — disse a assassina. — Além disso, me faz lembrar de coisas que preferia esquecer...
— Ah... quer dizer sobre seus amigos? — perguntou Luna com cuidado.
— Sim... — respondeu Shiina com a voz levemente melancólica.
— Mas vocês cresceram juntos em Shiroi Tate, certo? Sempre estiveram em contato com o frio, então porque ao invés de se lembrar de um único momento ruim, não pensa em todos os momentos bons que passaram mesmo no frio?
Ao ouvir aquilo, a assassina encaro a princesa com um olhar surpreso, percebendo no rosto dela uma expressão séria e pensativa.
De fato, foram inúmeras as vezes que forma enviados juntos no meio da nevasca de Shiroi Tate para alguma missão, mas aquilo apenas os tornou mais próximos.
Shiina se surpreendeu com a maneira matura de pensar de Luna, justo a pessoa mais nova no grupo.
— Sabe, você me assusta às vezes — disse. — Não imaginei que aquela princesinha de meses atrás se tornaria a pessoa que é hoje...
— Eu posso dizer o mesmo — disse Luna com um sorriso. — Não esperava fosse tão facilmente provocada.
— Eu não sou facilmente provocada! — disse Shiina. — Aliás, como não se sente envergonhada por estarmos tão perto?
De fato, ambas estavam tão próximas que seus ombros quase se tocavam, mesmo assim a princesa não demonstrava o menor indício de timidez.
— Qual o problema? Você é minha amiga, então é natural que esteja perto — respondeu Luna naturalmente.
— Mas estamos tomando um banho juntas — insistiu Shiina.
— Sim, e esse é o local para mulheres se banharem juntas — respondeu Luna com um olhar confuso. — Por que haveria um problema nisso?
A assassina encarou a princesa surpresa, esquecendo-se por alguns momentos dois detalhes importantes: Luna vivia reclusa e era um anjo.
Talvez o segundo fator fosse mais importante para o comportamento dela, afinal, sua personalidade e algumas de suas ações eram algo estranho para Shiina.
— Mas não é o mesmo com outros humanos...? — perguntou-se em voz alta ao mesmo tempo que se lembrava de Sariel e Aegreon, dois indivíduos bem diferentes comparadas com as outras pessoas “normais”.
— Como?
— Ah, desculpe, estava apenas pensando alto — disse a assassina. — É porque muitas mulheres se sentiriam envergonhadas de estarem nuas em um ambiente com outras, mas parece não ser o caso para você.
— Não entendo o motivo... — disse Luna pensativa. — Já me explicaram antes, especialmente quando se trata de um homem e uma mulher, e eu entendo o motivo, também ficaria um pouco desconcertada, mas ainda acho estranho nessa situação...
— Talvez anjos não encontrem vergonha nas mesmas coisas que humanos... — disse Shiina. — Me diga uma coisa, como você reagiria se Sariel o visse nua?
— Tenho certeza de que ele teria um bom motivo, então não veria um problema — respondeu a princesa.
— Hmm... Será que não é porque você gosta dele? — perguntou a assassina tentando importunar Luna.
— Não sei por que isso teria relação...
Percebendo a maneira indiferente que a princesa respondeu, Shiina se lembrou de que ela provavelmente nem entendia o conceito de romance.
— Não digo como amigos, mas como... amantes. Uma maneira romântica, entende? — insistiu.
— Eu não entendo isso... — disse Luna em um tom levemente frustrado. — Já li muitas histórias sobre pessoas se apaixonando e dizendo que é incrível, mas como exatamente é gostar romanticamente de alguém?
Aquela pergunta confirmou as suspeitas da assassina.
— Bem... Como posso dizer...? Você quer ficar o tempo todo com ela; deseja que ela dê atenção e foque apenas em você... Quer que a outra pessoa a faça feliz e te elogie, da mesma maneira que você própria quer fazer isso... — disse Shiina sem saber muito bem como explicar aquilo.
Quem diria que o simples fato de se apaixonar fosse algo tão difícil de explicar?
— Hmm... — Luna permaneceu em silêncio por um breve momento. — Assim como você faz com Raymond?
Ao ouvir aquilo, as mãos da assassina se moveram antes mesmo que sua mente processasse e acabou jogando água no rosto da princesa.
— Do-Do que está falando?! Como chegou nessa conclusão? — perguntou envergonhada.
— Bem, você descreveu exatamente o que faz com Raymond — disse Luna. — Você realmente gosta dele dessa maneira?
— Cla-Claro que não! Você entendeu errado! — Shiina gaguejou conforme tentava esconder o que era óbvio.
— Não é o que suas intenções dizem... — disse Luna de maneira observadora.
— Ah... — Foi então que a assassina percebeu que estava tão relaxada que deixou suas intenções escaparem. — Isso é um engano, sério!
— Hmm...? — A princesa inclinou a cabeça levemente, murmurando em um tom de desconfiança.
Shiina desviou o olhar e não disse nada.
— Ei, se lembra que perdeu a aposta? — perguntou Luna.
— E daí?
— Ainda não decidimos sua punição. E como eu ganhei, acho justo eu escolher, certo? — perguntou a princesa.
— Fo-Foi o que todos concordaram...
— Então sua punição é me dizer a verdade — disse Luna em um tom levemente travesso.
— Quê? — Shiina se surpreendeu com a malandragem da princesa.
— Não vai voltar atrás da sua palavra, certo? — insistiu Luna.
A assassina permaneceu em silêncio por um breve momento, quando suspirou derrotada e disse: — Só digo se prometer não contar a ninguém.
A princesa assentiu com a cabeça.
— Eu go-gosto sim... — disse Shiina em um tom tão baixo que mal podia ser ouvida.
— Então diga a ele — disse Luna de maneira neutra.
— De jeito nenhum! Pelo menos não até eu ter certeza de algo! — recusou a assassina imediatamente.
— Não me parece uma boa ideia ficar esperando...
— Você não entende... — disse Shiina se levantando, pois sentia que já ficou tempo demais na água quente. — Não é tão simples assim...
Luna encarou a assassina partindo e ficou um pouco mais antes de sair também.
***
A tarde passou, dando lugar à noite.
Um homem reuniu todos do grupo que haviam se espalhado e explorado a cidade, levando-os de volta para onde a grande fogueira estava.
Contudo, dessa vez havia apenas uma pequena chama queimando e várias centenas de pessoas rodeando-a.
Ao redor dessa fogueira, queimava constantemente símbolos estranhos semelhantes a letras que ninguém no grupo reconhecia.
No centro, havia algumas pessoas com longas roupas de um tecido mais suave, revelando melhor a estrutura corporal delas.
Porém, um detalhe muito importante fazia com que se destacassem: Todos cobriam o pescoço com pelo de algum animal como lobo; usavam coroas com longos chifres de cervo na cabeça, e alguns seguravam objetos feitos de ossos — tanto de animais quanto humanos.
O rosto da maioria era coberto por um capuz e, do que era possível ver do rosto, pinturas ritualísticas e com letras semelhantes àquelas marcadas no chão.
Algumas dessas pessoas seguravam instrumentos — em sua grande maioria de percussão — feitos de animais. Os tambores usavam pele esticada, enquanto as baquetas eram ossos com algo macio na ponta.
Alguns carregavam grandes e pesados chifres de animais como cornetas, alguns tão grandes quanto um humano adulto.
E, no meio dessas pessoas — próximo à fogueira — estavam Leif e Jurgen, vestidos e com pinturas no corpo ainda mais chamativos.
Assim que o grupo chegou, ambos os Jarls deram um passo adiante e Leif disse: — Na madrugada de hoje para amanhã será sexta-feira. Ou, como chamamos em nosso idioma, Frjádagr, o dia da cura.
— Todos com poderes de cura tratarão de seus ferimentos e exaustão física, enquanto eles — disse Jurgen apontando para as pessoas responsáveis pelos instrumentos. — Tocarão, cantarão e, por meio da música, curarão sua mente.
— Portanto, formem fila e aproximem-se! — disse uma mulher com uma voz encantadora e mística, mas que, naquele ambiente, soou quase assustadora. — Cantem conosco e esqueçam suas preocupações!
Todos ao redor gritaram animadamente. Suas vozes mistas apenas adicionavam na sensação mística que o lugar possuía, com alguns gritando como se estivessem prestes a ir para a batalha, outros imitavam o uivar de um lobo e algumas mulheres pareciam imitar o riso de uma feiticeira.
A mulher deu um passo adiante — ficando bem em frente a um símbolo “ᛚ” — e, imediatamente, todos se calaram.
No momento seguinte, uma corneta fora soprada, com seu som estrondoso perdurando por vários segundos e atingindo os espectadores com uma sensação relaxante e poderosa.
Logo outras cornetas com suas notas formando um acorde se uniram.
Em seguida, os tambores começaram a soar. Sua batucada era poderosa, mas não o suficiente para se sobressair completamente e roubar a atenção das cornetas.
Cada tambor tinha um símbolo diferente pintado, e a função primária de seu batuque era marcar o tempo.
Então Leif e Jurgen começaram a cantar.
Suas vozes graves, poderosas dignas de um guerreiro instigaram os ânimos do povo, que gritou e seguiu seu canto.
O grupo não fazia a menor ideia do que estavam cantando, contudo, mesmo sem saber, eram capazes de ter alguma ideia, já que todos estavam totalmente imersos e sentindo-se mais leves.
Por mais que o canto dos homens fosse rústico e até agressivo, a sensação que transmitiam era de paz e tranquilidade espiritual.
Essa música bem semelhante a uma convocação para uma batalha perdurou por vários minutos sem muita mudança tanto na melodia quanto na harmonia, quando a mulher se aproximou de um dos símbolos e, com um movimento hipnótico semelhante a uma fada, mexeu sua mão, chamando o primeiro da fila.
O homem se aproximou e ajoelhou diante dela, com o símbolo ardendo em chamas entre ele e a curandeira.
A mulher aproximou suas mãos brilhando em dourado — revelando várias pinturas e símbolos ritualísticos —, segurou gentilmente a cabeça do homem e, com sua voz encantadora e mística, começou a cantar.
“Sôse benrenkî, sôse bluotrenkî, sôse lidirenkî
Ben zi bena, bluot zi bluoda
Lid zi gelidin, sôse gelîmida sîn”
Seguindo a curandeira, todos uniram suas vozes para fortalecer aquele encantamento.
Apesar da simplicidade e da maneira que cantavam, as vozes se harmonizaram perfeitamente, fazendo seu canto ecoar para além das muralhas.
Depois de algum tempo, o homem se levantou e partiu, dando lugar ao próximo.
Esse processo perdurou por vários minutos, até que finalmente chegou a vez do grupo.
O primeiro foi Feng Ping, ajoelhando-se e sentindo o poder da curandeira refrescar sua estamina e o canto limpar sua mente.
Raymond, Aegreon e Shiina sentiram algo bem parecido, com as preocupações, arrependimentos e medos de cada um desaparecendo completamente de suas mentes.
Por fim, Sariel se aproximou, se ajoelhou e fechou os olhos.
As mãos da mulher se aproximaram lentamente e tocaram sua cabeça.
O brilho dourado percorreu todo seu corpo, reforçando sua vitalidade.
Além disso, as vozes atravessaram direto sua mente conforme repetiam o encantamento.
“Sôse benrenkî, sôse bluotrenkî, sôse lidirenkî
Ben zi bena, bluot zi bluoda
Lid zi gelidin, sôse gelîmida sîn”
Subitamente, todas as vozes e sons se silenciaram.
Quando abri os olhos, percebi que estava em um lugar totalmente diferente.
“O que é isso?”, perguntei-me confuso. “É o meu... subconsciente?”
Como se para confirmar minhas suspeitas, uma pessoa bem familiar surgiu bem diante de mim, com grandes asas cujas penas possuíam uma cor tão branca que pareciam pedacinhos de uma nuvem.
Com seu rosto gentil e belo de sempre, Luna se aproximou e, com uma voz preocupada, perguntou: — Está nervoso?
— Não tem como não estar... Se falharmos, tudo irá ruir...
“Essa... é minha voz... Por acaso esse ponto de vista é o meu?”
Assim como na outra visão, não podia olhar ao redor e me mover.
— Nós nunca falhamos antes — disse Luna segurando minhas mãos com carinho. — Além disso, temos muitos companheiros conosco...
Minha visão se desviou para o lado contra minha vontade, mas não fui capaz de ver nada além de uma escuridão absoluta.
— Eu preferia que você ficasse de fora... Nunca me perdoaria se quem eu mais amasse morresse por minha culpa...
— Faço das suas palavras minhas — disse Luna puxando levemente meu rosto para que nossos olhares se encontrassem. — Nunca te permitiria ir sozinho, querido...
Aquelas palavras fizeram meu coração disparar por um breve momento, e provavelmente teria reagido de alguma maneira se não estivesse preso naquele momento.
“Por que Luna está tão intima comigo?”, perguntei-me nervosamente.
Ela nunca chamou ninguém daquela maneira, portanto, ouvir aquilo dito em um tom tão caloroso me deixou... atônito...
— Eu sei... É melhor descansarmos um pouco, ainda podemos passar um tempo sozinhos antes do momento marcado... — Ouvi minha voz dizer em um tom semelhante ao de Luna.
Ela apenas sorriu ao ouvir aquilo e aproximou seu rosto lentamente do meu, e meu coração começou a bater cada vez mais rápido, quando tudo começou a escurecer e apagar completamente.
“Espera! Me deixa ver mais!”, gritei internamente.
Contudo, logo o som de cornetas, tambores e um cântico místico me despertou.
“Sôse benrenkî, sôse bluotrenkî, sôse lidirenkî
Ben zi bena, bluot zi bluoda
Lid zi gelidin, sôse gelîmida sîn”
O viajante levantou o olhar e percebeu a curandeira sorrindo gentilmente para ele, sinalizando que já estava pronto e poderia retornar.
Sariel se levantou ainda atônito e, quando se virou, viu Luna aproximando-se para receber a cura.
Seus olhares se encontraram por um breve momento, e o viajante se viu desviando a visão inconscientemente da princesa.
Luna não percebeu aquilo, pois estava completamente imersa na experiencia e na música.
A princesa se ajoelhou, e as mãos da curandeira tocaram sua cabeça.
“Sôse benrenkî, sôse bluotrenkî, sôse lidirenkî
Ben zi bena, bluot zi bluoda
Lid zi gelidin, sôse gelîmida sîn”
Subitamente, todas as vozes e sons se silenciaram.
Quando abri os olhos, percebi que estava em um lugar totalmente diferente.
Diante de mim surgiu uma pessoa bem familiar e com uma expressão nervosa.
— Está nervoso?
— Não tem como não estar... Se falharmos, tudo irá ruir...
Tradução do canto: Como torção de osso,
como torção de sangue,
Como torção dos membros:
Osso a osso;
sangue a sangue;
Membro a membro
que eles sejam colados.
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