O Primeiro Serafim Brasileira

Autor(a): Anosk


Volume 2

Capítulo 100: Passado Doloroso

Em meio a uma forte nevasca e uma neblina cada vez intensa, o grupo seguia pela estrada nas montanhas, acompanhados de Feng Ping.

No momento, estavam bem a fronteira entre Yggdrasil e as Montanhas Prateadas, ainda no mesmo dia que partiram.

Mesmo se deslocando um pouco para o sul, o frio não reduzia, na verdade parecia estar aumentando aos poucos.

Sariel ainda não havia descansado, contudo sua postura e sua atenção não reduziram.

Quando a noite caiu, o viajante criou com o elemento Natureza um pequeno abrigo, permitindo-os que comessem e dormissem com certo conforto.

No momento que se deitou, Sariel dormiu instantaneamente.

O resto do grupo também dormiu rapidamente, com exceção de Luna que possuía muito em sua mente mantendo-a acordada.

A imagem do viajante atravessando seu peito com uma espada estava marcada profundamente em sua mente, além da preocupação com o estado mental dele.

“O que era aquela visão...? Por que Sariel faria aquilo...?”, pensava consigo mesma.

Apesar de sua mente não descansar, estava tão imóvel e com os olhos fechados tentando se concentrar em dormir que enganaria qualquer um.

“E o que era aquele livro? Por que estava no meu subconsciente?”

A princesa permaneceu por vários minutos nesse estado, quando ouviu alguém se levantando e caminhando para fora.

Preocupada, se levantou e percebeu que Aegreon havia sumido.

andando com cuidado para não acordar os outros, Luna deixou o abrigo temporário.

Ao sair, como era de se esperar, não conseguiu ver nada, portanto precisou usar magia de Alteração para localizar o Pilar da Conjuração.

Não foi difícil encontrar sua aura roxa com um brilho escuro não muito distante dali.

Aproximando-se calmamente, a princesa chegou perto o suficiente para vê-lo sentado na beira de um precipício, encarando o nada e com as pernas cruzadas.

— Te acordei? — perguntou Aegreon sem se virar.

— Não, estava com dificuldades de dormir... — disse Luna. — Por que está aqui fora nessa nevasca? O frio pode te fazer mal...

— Na verdade o frio alivia um pouco minha pele — respondeu o Pilar, fazendo a princesa perceber que a carne dele já estava irritada e até havia descarnado em alguns pontos.

Percebendo isso, Luna se sentou imediatamente ao lado dele e estendeu as mãos em sua direção.

— Não é necessário — disse Aegreon percebendo as intenções dela. — Vai começar a descarnar depois de uma semana.

— Mas isso doí, certo? — perguntou a princesa. — Se toda semana piora, então basta que eu o trate toda semana.

— Não importa quanto tempo faça isso, nunca vai curar totalmente — disse o Pilar da Conjuração. — Já tentaram antes.

— Não estou falando sobre cura, estou falando sobre tratamento — respondeu Luna. — Se ignorar isso, sua condição vai piorar cada vez mais. É melhor se controlarmos isso.

Aegreon a encarou com um olhar estranho por algum tempo, quando por fim decidiu ceder.

— Está bem...

Sem demorar, a princesa começou a curar as feridas do Pilar, um processo demorado já que ferimentos causados por Conjuração eram mais complicados de tratar.

— Por que isso acontece com você? — perguntou Luna preocupada. — Os outros devotos só se feriam quando usavam poder demais... porém você nem mesmo está usando magia...

Aegreon permaneceu em silêncio conforme uma luz dourada surgindo das mãos da princesa o curava.

Sua expressão havia se tornado distante e, de certa forma, dolorosa.

Percebendo aquilo, Luna notara que poderia ter perguntado sobre algo sensível ao Pilar.

— Ah, me desculpe! — disse sentindo-se culpada. — Eu não...

— Está tudo bem... — respondeu Aegreon. — Se for só para você, eu não me importo em dizer...

Aquilo pegou a princesa totalmente de surpresa, que arregalou seus olhos e esqueceu de falar por vários segundos.

Quando finalmente se recuperou, disse: — Se for algo difícil, não precisa me dizer...

O Pilar da Conjuração a encarou nos olhos, com um brilho diferente que nunca tinha visto antes.

Não era um olhar frio ou raivoso, mas estava longe de ser felicidade.

Seria pena? Nostalgia? Dor? Saudade?

Era impossível dizer ao certo.

— Aconteceu no momento que a guerra começou — disse Aegreon. — Minha família era bem próxima dos anjos, portanto era bem comum que nos visitassem. Além disso, nem todos acreditavam que os anjos tentariam matar todos nós, portanto muitos ainda permaneceram próximos a eles, como minha família...

“Desde que nasci tinha problemas de irritação na pele. Coçava tanto que chegava ao ponto de sangrar.”

“Contudo, isso apenas acontecia por minha falta de alto-controle. Os ferimentos eram causados por mim mesmo e não se formavam naturalmente como é agora.”

“Conforme fui crescendo aprendi a lidar com isso, portanto, apesar da irritação continuar, não me feria mais.”

“Os anjos eram muito interessados naquilo, pois magia de Proteção apenas aliviava a irritação, mas nunca curava.”

“A princípio eu os via como amigos... A maneira como eram atenciosos comigo, tentavam me alegrar e me fazer me sentir melhor parecia genuíno.”

“Porém, um dia eles simplesmente atacaram toda a minha família, mataram todos eles bem diante de meus olhos, e estavam prestes a me matar também.”

“Quando vi aquilo, senti tanta raiva que não pensei duas vezes. Agarrei a arma mais próxima de mim e ataquei.”

“Não me lembro de nada durante a luta, apenas de minha visão avermelhada, sentir minha pele ardendo e de meu corpo movendo-se sozinho.”

“Quando me dei por mim, minha pele estava descarnada, queimada, e os anjos todos mortos.”

— Desde então, minha pele nunca voltou ao normal, tudo graças a eles... — finalizou Aegreon com uma voz carregada de ódio e cerrando firmemente os punhos.

Luna ouviu a história toda com uma expressão de culpa no rosto.

No momento, mantinha seu olhar baixo, envergonhada pelos atos de seus ancestrais, e não tinha coragem para dizer nada.

Percebendo aquilo, Aegreon a encarou por um longo momento, quando estendeu uma de suas mãos e tocou o topo da cabeça dela devagar.

Ao sentir aquilo, a princesa imediatamente levantou a cabeça, percebendo um olhar quase imperceptivelmente carinhoso.

Apesar do tamanho de sua grande mão quase cobrir sua cabeça inteira, sentiu conforto pelo carinho.

— Não se sinta culpada, existem anjos bons também — disse Aegreon com um levemente gentil. — Você e Ardos são os maiores exemplos disso.

Aquelas palavras atingiram Luna com um golpe, deixando-a emocionada — à beira das lágrimas — e feliz.

Não apenas pelo gesto do Pilar, mas pelo fato dele ter exposto seu passado a ela.

— Obrigada... — agradeceu com a voz emocionada. — Prometo que não contarei a ninguém!

Ao ouvir aquilo, Aegreon esboçou um leve sorriso.

Depois disso, ambos ficaram mais um tempo enquanto a princesa curava os ferimentos do Pilar da Conjuração, quando por fim finalizou o tratamento e decidiram voltar.

Permaneceram em silêncio durante todo o caminho, quando Luna se lembrou de um detalhe.

— Espera, você disse que isso aconteceu no começo da guerra, certo? — perguntou.

O Pilar respondeu balançando a cabeça.

— Então... Quantos anos você tem?! — perguntou Luna impressionada conforme tentava fazer os cálculos em sua mente.

— Já parei de contar faz um bom tempo... — disse Aegreon. — Deixou de fazer sentido... Mas creio que sou uma ou duas décadas mais novo que Koeus.

— Então você tem mais de um século de idade?! Convive com essa dor por mais de um século?! — surpreendeu-se a princesa.

— Uma hora você se acostuma... — disse Aegreon em um tom distante.

Luna percebeu a maneira estranha que ele respondeu e decidiu não insistir mais sobre a doença dele.

— Mesmo assim, apesar de seus ferimentos, tem um rosto jovem de alguém com 30 anos... — disse.

— Quanto mais magia alguém tem maior sua longevidade — disse o Pilar. — Pessoas como os Pilares vivem entre 300 a 500 anos... E ainda teriam uma aparência bem mais jovem. Com os anjos é ainda maior, parece que é normal que passem dos 1000 anos.

— 1000 anos... — disse Luna com o fôlego fraquejando pela ideia. — Mas ouvi dizer que Koeus tem uma aparência bem idosa... Por que a diferença?

— Lembra quando explicamos sobre ele ter tentado ler a mente de um devoto enlouquecido de Nergal e ficado em coma por meses, além de ter perdido a visão? — perguntou Aegreon.

Luna concordou com a cabeça.

— Bem, ele tinha quase 40 anos naquela época, mas sua aparência não era tão distante de um jovem adulto — explicou o Pilar. — Porém, enquanto estava desacordado, seu corpo começou a envelhecer rapidamente. Quando acordou parecia ter envelhecido várias décadas.

— Por que algo assim aconteceu?

— Não sabemos, mas, apesar de sua aparência, recuperou-se totalmente e luta tão bem quanto qualquer Pilar — disse Aegreon. — Não se deixe enganar pela imagem dele.

— Certo.

Após essa conversa, ambos retornaram ao abrigo e finalmente dormiram.

Na manhã seguinte, todos acordaram mais ou menos ao mesmo tempo, e a primeira coisa que Luna fez foi verificar o viajante, o último a acordar.

— Sariel, está tudo bem? — perguntou aproximando-se dele com um chá quente. — Tome, Feng Ping que fez.

— Estou bem sim, obrigado — agradeceu o viajante conforme pegava o copo e sorria.

Sua aparência havia voltado ao normal, demonstrando que de fato havia dormido bem, contudo, Luna pôde perceber que seu sorriso e olhar estavam um pouco... diferentes.

Antes, quando conversava com ela, eram sempre ou gentis e calorosos, porém, agora estavam mais neutros.

Não era possível saber o que estava sentindo, já que estava escondendo suas intenções.

Aquilo a deixou um pouco desconfortável e sem saber como se dirigir a ele.

— Ah, se precisar de algo, me avise — disse Luna se afastando.

— Tudo bem.

Depois disso, todos tomaram o café da manhã e partiram.


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