Volume 1
Capítulo 4: Retribuição
Sob a penumbra da noite, Noana e eu caminhávamos em direção a casa de Paul Golmar. Apesar de pequena e de aparência fofa e inocente, Noana naquele momento, transmitia uma aura diferente do que havia me mostrado anteriormente. Ou pelo menos é o que parecia pra mim naquela noite.
Apenas quando fixei meus olhos nela percebi que ela tinha mudado de roupa. Sua saia verde era a mesma, mas ela usava uma camisa ainda mais simples. Por sinal, essa camisa parecia um tanto grande pra Noana, a mesma, usava um tipo de elástico para segurar sua camisa. Seu broche também havia sido retirado de seu cabelo.
Perante a luz do luar, Noana saltitava com uma expressão relaxada. Seu sorriso era grande, visto que podia ser percebido mesmo com a pouca iluminação — somente de algumas poucas tochas. Entre o intervalo de seus saltos, cantarolava uma curta canção de origem desconhecida para mim. A sua alegria entrou no ápice quando ela notou um pequeno gatinho perto da entrada de uma residência.
— Miau! Miau! Gatinho, gatinho! — disse, enquanto abria e fechava suas mãos, imitando a pata de um gato.
O pequeno felino não pareceu muito feliz em ser acordado de sua soneca, mas ainda sim deixou ser acariciado por Noana, que agachou-se para esfregar o animal. Ela ainda sim, movia seu corpo de um lado para o outro em contentamento.
— Uhuhum! Gatinho lindo!
— [...]
Por mais que aquela situação aparentasse ser alegre e relaxada, por alguma razão, eu ainda me mantinha tenso. Talvez fosse a escuridão da noite ou o curto silêncio que se mantinha quando Noana ficava calada.
— Hum... podemos ir andando?
— Ah... sim. Podemos sim. Tchau gatinho!
A cidade de Yve era assustadora a noite, por algum motivo. Não havia muitas pessoas nas ruas, apenas um ou outro idoso se balançando em uma cadeira de balanço em frente a sua respectiva casa. Quando passávamos por uma dessas pessoas, a mesma, saudava a mim e a Noana.
— Você é bem popular hein? — perguntei a Noana.
— Não tanto quanto você, Herói. Todos aparentam estar muito felizes com a sua chegada.
— Bem, talvez. É que eu não gosto de muita atenção sabe?
— Você deve começar a se acostumar por agora então. Lembre-se que a partir de hoje, essa pressão será rotineira — exclamou Noana — esse será apenas um, dos inúmeros deveres que você terá como herói.
O que me assustava naquela garota era sua madureza repentina. Sua — transformação — nesse sentido era ainda pior que a do seu avô. Em um momento, ela era como uma delicada flor de campo, que perece com o mais fraco toque. Já no outro; ela era como uma roseira cheia de espinhos. Eu tinha que ter cuidado para ser perfurado.
— Deveres... essa palavra é muito curiosa...
— Como assim? — disse Noana, curiosa.
— Desde que eu cheguei aqui fui inundado de deveres. Mas, ninguém perguntou se eu quero qualquer um deles. Tipo, eu não tenho escolha? Eu tenho que ser um herói?
— [...]
— O próprio Golmar disse, não?! Que existem pessoas nesse mundo que decidem viver uma vida normal e tranquila. E se que decidir ser como essas pessoas? E se eu não quiser ser um herói? Eu não quero arriscar minha vida! Prefiro ser livre, viver como eu quero!
Noana, me observava com um olhar frio. Era perfurante — como o de um assassino; ela se virou,então, para frente mais uma vez. Como se desejasse esconder o seu rosto, ou seus sentimentos.
—...Tsc... nghhh...
— [...]
Pelo jeito, eu tinha dito algo que não devia; ou fui mal compreendido, não sei. Mas parecia que eu tinha acertado o ego de Noana, que aparentava estar muito irritada.
— Deixe de ser egoísta uma só vez, Iori — gritou Noana.
Sua voz ecoou por meus ouvidos. Não sei por qual milagre ninguém foi ver o que estava acontecendo. O que sabia era que Noana estava passando dos limites, não?! Eu já era muito mais velho que ela na época e vivi muito mais problemas na vida que ela! Noana era apenas uma garotinha mimada por seu vovô numa vila, onde a mesma era com certeza, bajulada por seus moradores. Não a toa, ela era a única junto de seu avô que morava numa casa bem organizada e bonita, enquanto os moradores viviam na pindaíba.
— Egoísta? Eu?! Por não querer arriscar minha vida por pessoas que não conheço? Que não tenho apego emocional algum? Hahaha!
—...Hahahaha! É até cômico escutar isso de você Noana! Uma mimadinha criada com o bom e o melhor pelo seu vovozinho, querendo dar lição de moral em mim?! Hahahaha...
— [...]
Estava zombando de Noana. Agindo de maneira imatura, como sempre fiz. Praticamente um homem adulto rindo de uma garotinha... com certeza era uma cena patética.
Entretanto, Noana apenas me observava. Seu olhar não havia traço de julgamento, muito menos de desprezo ou ódio. Ela apenas me observava.
— Por que você não conta aos moradores o que seu avô faze com o dinheiro dos impostos deles ? Por que não fala pra eles sobre os móveis e todo conforto que tem naquela casa só pra vocês dois? Hein?! Fala Noana!!
Sendo bem sincero, não havia nada demais naquela casa. Claro, era evidente que eles viviam em condições melhores que os outros moradores. Eles tinham alguns móveis, livros e até luminárias — um luxo — perto da situação dos outros que viviam em Yve.
Claro, não tinha evidência alguma que os outros moravam tão mal. Até porquê, não tinha entrado na casa de ninguém a não ser a deles. Mas era evidente pra mim na época, devido as tochas que eles usavam nas casas ( alguns nem tinham ), ou até mesmo, as humildes fogueiras que tinham no terreno de suas casas para cozinhar seu alimento. Eu até conseguia enxergar algumas fontes de luz em algumas casas, mas não tinha como ter certeza de sua procedência.
Vi que alguns tinham pequenas lavouras em seus terrenos. Esses provavelmente sobreviviam desse pouco alimento. Os que não tinham, deviam ir até a floresta ou caçar algum animal para sobreviver. Golmar e Noana, com certeza, tinham uma vida muito mais estável que esses.
Apesar disso, nunca fui um justiceiro. Não era como se eu me importasse com essas pessoas. Não... naquele momento, eu só queria zombar de Noana, como um fracassado que sempre fui.
Noana poderia ter ficado alterada. Ela podia muito bem ter ficado nervosa; com medo de que eu revelasse seu segredo, na verdade, isso era justamente o que eu queria. Porém, Noana não parecia se abalar. Ao contrário, ela muito paciente, só esperou que eu acabasse de liberar minha raiva nela. Quando percebi como estava agindo, eu mesmo me calei.
—... Arf...Arfff...
—...Já acabou, Iori?
Estava com muita vergonha de responder Noana, na verdade, a partir daquele momento, eu mal conseguia olhar pra ela. Apenas comecei a olhar para baixo, em direção ao chão.
—...Ah... vamos lá..
— Primeiro, gostaria de transmitir meu descontentamento... ou melhor dizendo, minha decepção; com relação a você. Isso de maneira alguma, é a forma que um herói deve agir. Talvez você esteja correto, você pode não ter a capacidade pra ser um herói. E nem digo, com relação a força física ou nill, mas sim mental.
Em nenhum momento, Noana aumentou o tom de sua voz. Suas palavras eram fortes, mas ela não berrava — suas palavras eram transmitidas com seriedade e confiança. Talvez nem antes ela tenha gritado comigo, apenas eu não aceitei suas palavras.
— Segundo, creio que houve algum mal entendido, ou melhor, você entendeu algo errado — expressou Noana — a casa em que estávamos alguns minutos atrás, não é minha ou de meu avô.
— Hã?!
Meus olhos tremiam, minha garganta gelava com as palavras de Noana. Minha boca estava seca, e vez após vez, tentava molhar minha garganta engolindo minha própria saliva. Não podia olhar para Noana... ou melhor, não conseguia...
— Eu vou repetir mais uma vez, Iori. Aquela casa em que estávamos há alguns minutos atrás não é nossa.
Noana se virou pra frente e estendeu sua mão, apontando seu indicador para o fim da vila.
— Não sei se você conseguirá enxergar nesse breu, mas aquela é a nossa casa. A última a esquerda.
—...Hã...aquela...?!!
Com dificuldade, estendi minha cabeça para frente. Não conseguia enxergar com clareza, mas se não me falhava a memória, aquilo mal se podia se chamar de — casa — mas aparecia uma pequena cabana de madeira. Lembro que era de longe a moradia mais deteriorada de toda vila — cheia de aberturas, tábuas podres e visivelmente acabada. Mas parecia um velho armazém, do que uma moradia.
— Ela foi construída por meu avô em seus últimos dias como herói. Nesse lugar de difícil acesso, cercado por florestas e montanhas. Paul construiu junto de sua já falecida esposa, uma cabana que mais tarde se tornaria uma vila — exclamou Noana — essa mesma cabana é onde esse mesmo velho herói descansa seus velhos ossos todos os dias até hoje.
Noana havia permanecido calma até aquele momento. Mas, aos poucos, ela foi cedendo as suas emoções ainda reprimidas.
— Meus pais nunca tiveram muito... mas foram felizes! Mais felizes que qualquer um! Mesmo comendo o pouco do que plantavam, mesmo dormindo praticamente ao relento, isso era suficiente pra eles. Ver a vila que meus avós tinham se esforçado tanto crescer era o suficiente pra eles!!
Eu não podia olhar pra ela. Eu não queria olhar pra ela. Mas eu deveria olhar pra ela, eu sabia disso. Por isso, mesmo que doesse meu peito, mesmo que não pudesse esconder meu rosto patético, forcei meus olhos ao rosto de Noana. Seu rosto... dava pena. Em seus olhos... pequenas lágrimas...
— Q-Quando minha v-vovó acabou...falecendo... meu v-vovô se afundou em tristeza — suspirou Noana — E-Ela era tudo pra ele... mas mesmo assim, ele se levantou e continuou trabalhando! Porque ele sabia o quão importante era essa vila pra ela! Se-Sempre foi o sonho deles...
— [...]
— Aos poucos, com muitos anos de suor e trabalho, mais e mais pessoas começaram a se mudar pra cá. Quanto mais pessoas chegavam, mais e mais, a vila se desenvolveu. Construíram pontes, casas, lavouras... e até mesmo a sua casa — completou Noana.
Por um segundo, eu não entendi o que ela falou. Mas então, tudo se conectou, como um grande quebra-cabeça.
—...Não é possí...
Noana ainda tentando estabilizar seus sentimentos, completou seu raciocínio.
— S-Sim... Aquela é a sua casa. Ela foi construída logo após descobrirmos que havia um portal de teletransporte no bosque.
Eu estava em choque. Não tinha palavras. Não tinha como se quer me defender, nem tinha direito de me desculpar. Só podia escutar.
— Não foi meu vovô que deu a ideia de construir aquela casa. Mas sim, dos próprios moradores de Yve, como uma forma de receber o futuro herói — disse Noana — eles construíram aquela casa em baixo de sol e chuva, e tiraram do seu próprio bolso para mobiliar aquela casa para dar conforto a um herói imaginário que talvez nunca chegasse...
— Hoje Yve é uma vila estável. Não vivemos em um grande conforto, mas somos um povo feliz e unido! A vila que meus avós lutaram pra construir, hoje forma futuros heróis pra capital!
Tudo que ela estava dizendo era verdade. Mesmo com algumas lágrimas escorrendo de seu rosto, sua voz se mantinha como a de um líder.
— Paul Golmar foi um herói considerado de classe baixa por toda sua vida. Mas, mesmo não tendo talento, salvou a vida de muitas pessoas e fez o bem a todos que podiam! Hoje sua vila forma heróis que salvarão mais vidas ainda e que trarão paz para muitas pessoas...
—...Mesmo assim, ele nunca foi homenageado. Jamais gritaram seu nome e muito menos fizeram festa por sua chegada...
—...Nghhnnn...
— Mas, Paul Golmar é um herói! Um herói de verdade! Muito mais herói que qualquer um! Muito mais herói que você...Iori...
— O que eu quero dizer é... se você não quer ser um herói, não seja! Se quer ir embora, vá embora! Seja — livre — onde você bem entender. Não dependemos de você, Iori. Mas, não se preocupe, independente de sua decisão, com certeza os moradores farão uma festa em sua homenagem.
Normalmente eu ficaria irritado, não, talvez furioso com aquelas palavras. Mas, por algum motivo, não estava. Era semelhante a uma bronca... uma bronca do tipo que você recebe de sua mãe, e que você não tem como revidar.
Ela, então, se virou para a frente e continuou caminhando. Eu fiz o mesmo. Já estávamos praticamente chegando naquela casa. Quando de repente, Noana parou mais uma vez.
— Hum...ah... bem, eu nem devia estar falando sobre isso. Era pra gente ter conversado sobre Nill...
— [...]
— Bom, já está tarde. Amanhã conversamos, Iori — disse Noana, antes de ir embora.
Havia percebido uma coisa. Noana não me chamava mais de — herói — para ela agora eu era apenas Satoru Iori.
— Ei! Iori! — disse Noana.
— Sim...?
— Eu quero me tornar a futura líder de Yve um dia. Quero herdar o sonho de meus avós!
— Que bom. Você com certeza, se tornará uma grande líder, Noana.
— Huhum! — sorriu Noana — Então como a futura grande líder de Yve, eu vou te dar um conselho Iori...
Eu não estava exatamente, no melhor humor, pra um conselho. Mas, apesar disso, senti que devia escutar com atenção as palavras daquela garota.
— Se você quiser se tornar um herói um dia... apenas se você quiser...
—...Ajude as pessoas, por menor que seja. Não precisa ser grandes ações ou salvar milhares de vidas. Apenas ajude as pessoas.
Eu conheço esse lema — suas boas ações sempre voltarão a você — mas eu não sou uma criança. Eu sei que não é bem assim. Nem sempre você será recompensado por ser bom.
—...Mas,nem sempre você será recompensado por isso... muitas pessoas ruins vão retribuir sua bondade com maldade....
Que hipócrita... a pessoa que tinha retribuído a bondade daqueles moradores com desprezo, falando sobre retribuição... eu sabia o quão idiota estava agindo. Mas de uma certa maneira, não sentia que estava errado.
Mas Noana, diferente do que eu pensava, me deu um sorriso. Ela então se curvou um pouco e disse:
— Eu sei Iori. Isso é verdade. Mas... eu não consigo concordar com isso... — disse Noana — A bondade constrói o futuro. Essa vila existir é o maior exemplo disso. Meu avô foi um herói fraco, sem dinheiro ou grandes feitos. Mesmo salvando a vida de muitas pessoas, ele não tinha fama alguma e nem um lugar para deitar sua cabeça...
—...Mas ele é o meu herói... e o herói desse vilarejo...
Naquele momento, meus olhos se voltaram a Noana. A lua brilhava iluminando os seus tenros cabelos e a destacando naquela escura noite.
— Heróis assim como Paul Golmar, muitas vezes não são recompensados... apesar disso, um herói deve continuar ajudando e fazendo o bom ao máximo de pessoas possíveis! Assim, mais e mais heróis surgem e uma geração inteira é moldada!
Quando ela disse isso, me lembrei de todas as crianças dessa vila. Que sonham em se tornar um herói e salvar vidas. Quantas dessas são moldadas a partir de um exemplo como Paul Golmar...
— Então, Iori...
— Sim...?
— Ajude o máximo de pessoas que puder. Não para reconhecimento, fama ou dinheiro...
— Mas para moldar um futuro bom, de heróis como você.
Com essas palavras, Noana saiu de cena. Provavelmente, foi pra sua casa.
A porta estava aberta e assim que entrei na mesma, em minha mente já havia tomado a minha decisão...
Naquela noite, iria fugir de Yve.
Notas do Autor: Todas as Ilustrações dessa novel são feitas por IA. Comentem e façam teorias, leio e respondo todos os comentários