O Nefilim Primordial Brasileira

Autor(a): Ghoustter


Volume 3 – Arco 4

Capítulo 229: O Nascer da Morte

As Sentinelas sagradas, os seres angelicais que deveriam trazer ordem e prosperidade ao mundo, guiando as civilizações criadas no amanhecer da vida por um caminho afortunado acabaram por se tornar aquelas que afundaram o mesmo mundo em caos e desgraça.

Desviados do seu caminho santo, os trezentos anjos rebeldes foram exilados na escuridão das profundezas do Abismo sem Fim do Dragão Abissal Absalon, mas não sem antes deixarem a sua marca para trás na vida das mulheres que possuíram.

Tendo se relacionado intimamente com um parceiro fora do casamento naquela época, uma nova união matrimonial seria nada mais do que uma miragem turva no deserto. Quem se uniria a família daquelas que se mancharam no pecado dos anjos?

Entre essas mulheres estava Berenice filha de Aminabe, antes uma joia aos olhos do pai, agora motivo de vergonha e encarada como a escória da família. Num período tão antigo, qualquer infortúnio que caísse sobre os seus parentes poderia ser visto como “punição do Divino”, e a raiz de tudo estaria atrelada à moça Berenice.

A ideia comum era compartilhada por todas as criaturas viventes: amaldiçoados fossem os anjos e os seus filhos, e os filhos dos seus filhos para todo o sempre.

Foi nesse cenário, nessas circunstâncias, que a moça Berenice se viu grávida com uma barriga que aumentava dia após dia, assim como o caso das demais envolvidas com as Sentinelas. Uma gestação acelerada, uma evidência de que aquilo fugia do natural. Um presságio ruim.

Ao caminhar no meio do acampamento da sua tribo, a moça cobria o rosto com um lenço enquanto carregava água dentro de um balde feito de madeira. O rosto belo era escondido com a certeza de que jamais geraria descendentes para a linhagem da sua família, além do que quer que estivesse crescendo dentro do seu ventre.

— Essas pessoas. Esses olhares. Sempre a mesma coisa — falou com a voz baixa e o cuidado para que ninguém que por acaso passasse perto a ouvisse. Já era muita sorte que ainda estivesse viva e pudesse caminhar em público. — Isso poderia acabar algum dia. Só por um dia 

— Veja se não é uma das putas que se aventuraram com as nossas antigas Sentinelas — comentou um rapaz sentado na frente da sua tenda para um amigo que o acompanhava. Apesar da voz do indivíduo estar numa altura comum, foi forte o suficiente para que a moça o escutasse.

— Ah! Que pena dá do Senhor Aminabe. — O segundo rapaz suspirou enquanto aproveitava a sombra da frente da tenda e via Berenice se afastar. — Ele perdeu um excelente dote pela filha mais velha.

— Agora não vale nem cocô de bode! — exclamou o primeiro, com intensidade o bastante para que a moça o ouvisse daquela distância. — Que pobre Aminabe! Hahaha!

O amigo acompanhou o outro na gargalhada agourenta que a Berenice furaria os próprios ouvidos para deixar de escutar. Já os lábios foram mordidos à beira do sangramento. Como poderia ser o seu pai o coitado, quando era a vida dela que estava arruinada por causa da criaturinha que a consumia por dentro?

— Huh?! — Uma pontada intensa atingiu a barriga da moça, e o balde caiu no chão, molhando-o com a água perdida. Berenice pegou, enquanto sentia que algo viscoso começava a escorrer pela sua perna. — Isso… de novo.

Sem tempo para desperdiçar com as falas maldosas da dupla, que caçoava do erro dela, a moça agarrou o balde vazio e caminhou como pôde para a tenda da sua família, com uma pontada para cada passo que ela dava.

Suando frio, deitada em seu leito, Berenice era auxiliada pela irmã mais nova, que preparava algumas ervas para aliviar a dor. Casos parecidos chegaram aos ouvidos das irmãs; porém, segundo o boca a boca, as moças perderam os filhos dos anjos logo após passar pelo mesmo que a jovem.

Na época, era impossível para alguém saber que aquilo se dava ao excesso de poder divino que os fetos não suportavam e os levava à morte prematura. No entanto, a Berenice havia se relacionado com o Anjo da Morte Azriel; e como a morte faria para levar logo o filho dele?

— Por que comigo? Por que só comigo? — Lamentava, levando um braço até o rosto e esperando a dor diminuir. — Por que eu tenho que continuar pagando tanto pelo erro daquele maldito dia?

As Sentinelas, desde a sua primeira aparição, irradiaram um ar cativante de liderança inabalável. Fosse desde orientações básicas de convívio em sociedade até a domação de bestas selvagens e sobrevivência, aqueles anjos estavam presentes em tudo.

O mundo ia bem, então as Sentinelas começaram a ensinar mais do que deveriam: conhecimentos celestiais, consulta aos mortos, avanço de fabricação de armas e metais. Os anjos se desviaram do seu caminho e se afeiçoaram a moças como a Berenice.

A jovem podia se lembrar do primeiro encontro que teve com o Azriel. Aqueles cabelos e olhos roxos, ao mesmo tempo que eram profundos e misteriosos, também transmitiam muito cuidado e zelo, como o trabalho que ele tinha como Sentinela.

Memórias de tempos felizes até a noite em que os dois uniram laços, até que o castigo para anjos rebeldes caiu sobre eles, e tudo o que era belo se tornou horror. Agora, tudo o que Berenice mais odiava era o dia em que se encontrou com o anjo Azriel.

— Aqui irmã. — A mais nova, Ayala, chamou por Berenice, que retirou o braço do rosto e se deparou com um pequeno copo de barro nas mãos da irmã. — Beba.

A moça fez o que a mais nova pediu, quando seus ouvidos captaram a voz potente do seu pai, que havia chegado mais cedo do trabalho de cuidar do rebanho de vacas e ovelhas.

Ayala havia se proposto a buscar o balde de água que a irmã deixou derramar, a fim de evitar problemas com o pai já furioso há dias por causa dos comentários do povo.

Bufando pelas narinas, Aminabe entrou no leito da filha e esbravejou com Deus e o mundo, acompanhado pela sua esposa que pouco se importava com o estado da Berenice; já nem a tratava como filha.

— Por que eu tenho que te manter nesta tenda, se você não serve nem para trazer um maldito balde de água?!

— Pai… — Ayala pausou suas palavras ao encarar as pupilas dilatadas do Aminabe, e então abaixou o rosto.

— Você pelo menos está com um bom casamento planejado. Já essa outra, essa outra… — Aminabe bateu em sua própria coxa o punho que gritava para ir contra a moça deitada. — Maldição!

— Tudo bem. Eu já vou buscar o balde… — Ao tentar se levantar de forma forçada, mais uma pontada alcançou a barriga da Berenice; no entanto, daquela vez, as suas pernas se molharam com algo mais fluido.

Ayala foi a primeira a acompanhar a expressão de surpresa e preocupação que se formou no rosto da irmã. O leito ficou molhado. Talvez pela gravidez incomum ou pelo estresse do momento, a bolsa gestacional da Berenice havia estourado cedo demais.

— A criança… vai nascer. — Ayala se virou para a senhora atrás do seu pai. — Mãe, chame a parteira, rápido.

A mulher encarou as filhas sem pressa e só depois se virou para sair, sem se importar com o quanto a Berenice suava e se pegava com o coração batendo a milhas por hora.

— Vamos, querido. Eu vou trazer a parteira.

Do lado de fora da sua tenda, onde o resplendor solar começava a se pôr, o pé do Aminabe que batia repetidas vezes no chão de terra mal podia negar a ansiedade que afligia o seu peito.

Apesar de tudo, a criança seria o seu neto, a sua descendência, a sua linhagem. E que bom seria se fosse um menino vigoroso e forte para o acompanhar no rebanho.

Diferente do velho Aminabe, um pequeno grupo de pessoas se aproximava com o que quer que pudessem usar como arma, desde objetos afiados até ferramentas de trabalho, o que levou o pai da Berenice a se armar verbalmente.

— Qual a razão para isso? — questionou ao indivíduo que estava à frente dos demais. — Por ventura cometi algum mal que mereça tal tipo de recepção violenta?

— Não viemos contra ti, Aminabe. Tão pouco desejamos o teu mal ou dos teus. — O homem na liderança pôs o braço direito na horizontal para os que estavam atrás e se achegou sozinho. — Há pouco, recebemos o relato de que as crianças dos anjos estão nascendo e que estão se tornando gigantes destruidores do dia para a noite.

— E então?

— Entregue a sua filha e a criança para que os matemos e coloquemos um fim a esse mal que paira sobre nós — sugeriu o sacrifício, o indivíduo que mantinha uma postura relativamente pacífica para o dono do lar. — Quem sabe até aplaquemos a ira do Divino.

Aminabe já esperava que isso acabasse por acontecer algum dia, exceto pela notícia terrível dos Gigantes Nefilins. Em sua posição, contra tantos, seria difícil, quase impossível, sair sem ceder ao pedido. No pior dos casos, toda a sua família iria parecer naquele dia.

— Nada tenho quanto a entregar a moça. — O pai, logo avô, deu uma breve olhada para a tenda atrás de si, onde o nascimento do neto ocorria. — Quanto a criança, esperemos o que a parteira tem a dizer. Se nascer com algo de errado, então também entregaria a vocês.

— Aminabe...

— Peço como avô.

O líder dos algozes ponderou por um instante. Poderia compreender o pedido do companheiro, mas jamais arriscaria a vida e a sobrevivência de toda uma tribo ou ainda mais que isso. No entanto, levava um pouco de tempo até as crianças se tornarem Gigantes.

— Faremos como deseja. Porém o mais rápido possível.

E assim o tempo se passou, com a apreensão e ansiedade reinando do lado de fora da tenda, ao passo que a preocupação e a dor do parto imperavam do lado de dentro, com a Berenice estando alheia ao futuro que a aguardava.

Quando tudo enfim se encerrou, a parteira foi chamada pelo dono da tenda. Ver tanta gente armada foi um susto inevitável, mas ninguém queria saber do seu medo, apenas o veredito da mulher era importante para a situação.

— A criança... Ela... — Hesitou a parteira.

— Vamos. Diga logo — ordenou Aminabe.

— O menino nasceu já com os olhos abertos e o cabelo bem crescido. — Olhou para o pai da moça e então para os algozes. — Tem aparência humana, mas o cabelo e os olhos são roxos como ametistas.

Sem mais nada a escutar, o líder chamou outros quatro para entrar na tenda e carregar a moça e a criança para fora do acampamento, onde a execução seria aplicada.

Pouco importava a "aparência humana", qualquer mínimo traço anormal era uma ameaça para a segurança de todos; e Aminabe, amarrado pela sua palavra, permitiu que a ação dos algozes prosseguisse sem impedimentos.

A invasão do quinteto fez a Berenice, já exausta do estresse e do esforço do parto repentino, suar frio. Aquelas pessoas, como podiam invadir o leito de uma moça que acabara de dar à luz? Não. Ela já havia perdido esse privilégio como “moça". Ninguém mais a respeitava ou a valorizava.

Apesar de todo o espanto, o que fez a Berenice tremer no leito foi contemplar o menino ser arrancado dos braços da sua irmã Ayala, que ainda se preparava para entregá-lo a ela.

— Meu menino... — Berenice tentou se levantar, impedida pela dor recente do parto. — Solte o meu menino!

Para a surpresa de todos, o indivíduo realmente soltou a criança, no sentido literal da palavra. Na verdade, os dois caíram. O homem, de algum modo, morto. Já o menino foi direto pro chão.

O corpo frágil, em especial os ossos da cabeça, foram gravemente feridos, e a criança começou a chorar, o que deveria ter feito desde cedo, mas ficou quietinha como se nem respirasse, já que os pulmões nunca precisariam de ar.

— Raizel... — Ayala levou as mãos até a boca, enquanto a irmã chorava, desesperada para pegar a criança que se acalmou pouco depois, com os ferimentos do seu corpo sendo sarados.

— É mesmo um monstro — concluiu o líder dos algozes. — É um deles. Matem ele aqui mesmo!

Um dos subordinados pegou a ferramenta que ele usava para arar a terra e foi para matar o menino. Berenice quis se levantar de novo, mas dessa vez foi segurada pela irmã que temia o que podiam fazer a mais velha.

Mais uma ameaça, e mais um caiu morto para o espanto dos invasores que mal entendiam como o Nether do recém-nascido funcionava: uma autodefesa que ceifava a vida de qualquer um que o ameaçasse.

O pavor e o caos se espalharam pela tenda do Aminabe, e até mesmo os que estavam do lado de fora enxergaram uma fina e quase transparente aura roxa tomando conta do lugar e matando qualquer um que ela alcançasse.

O susto foi grande para o menino que tinha acabado de conhecer a vida, e nem mesmo Ayala, Aminabe e sua esposa foram poupados do efeito da aura roxa que consumia tudo, exceto uma pessoa: a mãe Berenice.

— Ayala! Ayala! — A moça chamou pela irmã, mas tudo o que restava ao seu redor era a criança e uma pilha de cadáveres. Foi então que Berenice se mexeu como pôde e pegou o menino nos braços pela primeira vez. — Raizel. Ah, Raizel.

Chorou com o filho nos braços. Até aquele momento, a moça imaginou que amaldiçoaria o fruto que teve com o Azriel, aquilo que marcava a sua desgraça. Mas, ao vê-lo de fato, ao tê-lo arrancado de si, a dor da perda foi maior do que qualquer ofensa que ela teve que engolir naqueles dias.

Continuaria ali se fosse possível, mas o mundo era impiedoso e cruel demais. Independente de para onde fosse ou do que fizesse, naquele mundo, o seu destino seria dali para pior. E nisso, ao acabar as suas lágrimas, a mulher vislumbrou a faca que a parteira usou para cortar o cordão umbilical que ligava ela ao Raizel.

Berenice pegou a faca que tremeu na sua mão. Se ela tivesse coragem de tirar a própria, já teria feito antes. Mas ainda tinha o menino. Como ele iria se virar sozinho? Ah! Ele conseguiria. Era o filho de um anjo. Jamais morreria. O evento recente havia deixado isso bem claro.

— Me perdoe por te deixar aqui sozinho. — Berenice acariciou a bochecha do filho antes de apontar a faca para ele e fazer o movimento de perfuração, que parou assim que o seu braço perdeu a força da vida.

Se a moça estivesse certa, a sua morte seria imediata e sem dor como a dos anteriores a ela; no entanto, de algum modo, o menino chorou de novo, e a vida da mãe foi sugada mais devagar do que deveria, jogando-a numa espécie de sonolência convidativa e irresistível.

— Adeus... — Berenice caiu de costas e ficou com a criança no seu peito. A sua visão se fechava aos poucos e o choro do Raizel ficava cada vez mais longe. — Meu pequeno e pobre... monstrinho amaldiçoado.

A visão da mulher se apagou por completo antes que conseguisse observar o corpo do filho começando a ganhar tamanho. O Raizel rolou para o lado com o corpo evoluído para dois anos de idade. Colocou a mão nos ouvidos, e o que era choro se transformou em gritos de agonia.

Mais do que apenas as vidas, o Nether drenou as memórias de cada uma daquelas pessoas para ele. A criança que acabava de ganhar consciência de si mesma, fazia isso com as lembranças das piores pessoas possíveis.

O sofrimento pelo qual Berenice passou. O ódio daqueles que queriam a sua vida. O desprezo do pai e da mãe da moça por causa da criança que ela gerava. Tudo se misturou num turbilhão caótico que marcou o dia em que um nasceu e muitos morreram. 

Foi o dia em que um menino se contorceu no chão; gritou e chorou até perder a voz.


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