Volume 3 – Arco 4
Capítulo 227: Mentirosos
Havia se passado bastante tempo desde a última vez que tinha visto o grandioso e imponente Nefilim Primordial, o dia em que se despediu da sua irmã e confiou que o Raizel Stiger seria capaz de protegê-la enquanto a garota conhecia o mundo, uma vez privado ao conhecimento dela.
Agora, de frente para o indivíduo que passou a exibir um cabelo roxo com ondas, Caspian só pôde lamentar pelo seu erro: assim como Raizel era forte, os problemas que ele lidava estavam sempre além da conta de pessoas normais e anormais.
— Diga, o que veio fazer aqui? — Vendo que o irmão da sua parceira continuava calado, o nefilim prosseguiu na provocação. — Fale tudo o que quer, enquanto ainda tenho tempo de te ouvir.
— Nenhum pedido de desculpas, hein? — comentou com a voz baixa, e fitou o que sobrava do indivíduo rachado no chão. — Eu soube que você ainda não foi visitar a minha irmã no hospital.
— Sim, é verdade.
— Por quê?
Mesmo naquela situação, o nefilim ainda falava de um jeito que parecia inabalável, apesar de miserável, mas frente àquela pergunta o híbrido divino deixou a sua cabeça se inclinar para o lado e estreitou a visão, encarando a desolação do instante antes do Caspian entrar na sala de música.
— Diga o que você veio fazer aqui.
— Nã… Não fuja da minha pergunta. — Com um tom mais firme, o rapaz Lavour deu um passo para frente e encarou os olhos daquele que um dia seria o seu cunhado. — Você sabe o estado em que ela está por sua causa?!
Raizel se absteve da resposta.
— E o pior é que se tem alguém que a Petra iria querer que estivesse lá, é você!
— E eu estava lá. — “Moveu-se” como se conseguisse enxergar os braços que haviam sumido. — Quando ela foi perfurada pela Amálgama do Belzebu. Quando essas mãos foram incapazes de alcançá-la. Eu estava lá, Caspian.
— Se estava lá, o que foi que você fez então? Por que… — A voz entalou na sua garganta, assim como a angústia que estava presa ali. — Por que tudo acabou desse jeito então?
— Porque eu falhei. — O nefilim ainda podia se lembrar de ter a Espada do Fim dos Tempos fincada no corpo do segundo avatar. Podia se lembrar de quando os seus braços trincaram pela primeira vez. — Porque eu hesitei por um ínfimo segundo.
Talvez a sua existência tivesse se desintegrado na mesma hora que ele executasse o Ato do Juízo Final de novo, mas teria levado o avatar Zebub junto para o poço da inexistente, e a Petra teria ficado de fora daquela luta.
Tudo teria sido encerrado com uma única decisão. Tudo. O desejo de voltar para o conforto, que era a presença da sua parceira. Repousar a cabeça no colo dela. Alcançar o futuro em que tinham a sua filha. Raizel hesitou na hora de perder tudo, e acabou perdendo.
Ainda assim, os ouvidos do Caspian só podiam estar funcionando com algum problema, e o Lavour agarrou a camisa do nefilim com as suas duas mãos, sem se importar de manchar os joelhos da calça na poeira do chão.
— Você disse que a protegeria com a sua vida. Quando vocês saíram da Academia, você disse! — Mais forte o aperto ficou, e o tecido da camisa do Raizel podia rasgar, enquanto os dois rapazes se encaravam de muito perto. — Mas agora você me diz que você hesitou?!
— Talvez eu seja um grande mentiroso. — O nefilim respondeu sem qualquer emoção, mesmo que o indivíduo à sua frente rangesse os dentes. — E você foi um tolo de ter acreditado em mim.
— Seu… maldito. — O fervor do ódio ardeu no seu peito, e o Caspian pressionou o corpo do nefilim na parede. — Raizel…!
— Você quer me bater?
— E como eu quero.
— Então bata logo. — Foi quando o Lavour parou por um instante, como se algo tivesse estalado na sua cabeça. — Eu nem tenho braços para revidar de qualquer forma, e o meu tempo é curto.
— Mentiroso. — Largando o seu cunhado, o Caspian se levantou e deu alguns passos para trás, com uma mão no rosto. — Você pode criar próteses com a sua Habilidade Inata. Pode se levantar quando bem quiser.
— Mesmo?
— Você não quer, da mesma forma que quer que eu te bata. — O Lavour tirou a mão do rosto e se sentiu com cara de tolo, como o nefilim havia falado. — Você é miserável e triste, no sentido mais profundo dessas palavras.
Atacar o Raizel naquele estado, por maior que fosse a vontade, era a mesma coisa que jogar pedra em um cachorro doente preso a uma árvore. Aquele nefilim já estava morto por dentro e por fora.
Por mais que quisesse jogar a culpa para o cunhado, o Raizel estava certo: o Caspian foi um tolo de ter confiado a segurança da sua irmã àquele cara. Tudo começou a dar errado a partir da decisão dele e do seu coração mole, que foi cegado pelo desejo de ver a irmã desfrutar da liberdade, da liberdade com o Raizel Stiger.
— Eu estou de saída. — Virou as costas para o nefilim e se pôs a caminhar para a porta, com uma mão na cabeça que ameaçava doer. — Afunde-se na sua miséria e suma das nossas vidas logo de uma vez.
O Raizel suspirou no momento em que a porta foi fechada para as costas do Caspian. Nem um soco sequer. Que forma sagaz o Lavour encontrou de deixá-lo apodrecer para ser consumido pelas aves carniceiras das suas próprias angústias.
Já passando pela sala da residência do nefilim, o Caspian deu uma última olhada no ambiente. A sua irmã viveu um tempo por ali; havia algo que carregasse a marca dela naquele lugar? Pouco provável. A Petra passou pouco tempo na Academia de Batalha Ziz, e, quando retornou, o Campeonato Sojourner batia à porta.
Um quarto? Ao menos um a garota tinha ganhado com certeza. Parando pra pensar, talvez devesse ter pedido ao Raizel para visitá-lo. Depois de tudo, não ousaria perguntar nada mais a ele.
— Pode ser ruim pensar dessa forma, mas eu ainda posso vir aqui depois que ele morrer?
O ruído da abertura da porta que dava acesso à sala findou a linha de raciocínio do jovem Lavour, que se virou para ver os cabelos roxos do Raizel passarem pela entrada. Só um pequeno susto. A pessoa na sua presença era bem mais amigável que a anterior.
A moça parou na entrada assim que bateu os olhos nele e, como que por uma ação semelhante, prestou atenção no cabelo prateado dele, que lembrava o da irmã. Como o silêncio começou a tocar uma melodia estranha entre os dois, o Lavour falou primeiro:
— Top 2 Rank S da Academia Behemoth, Alícia Necron. — Lá estava alguém que nunca passou pela mente dele estar na residência daquele cara. — Vi você na transmissão do Sojourner.
— Ah, sim! E você é irmão da Petra. — A moça voltou a levantar a visão em direção ao cabelo dele, então desceu para o contato. — Eu acho.
— Amiga da minha irmã?
— De certa forma. Eu só a conheci por pouco tempo. — A Alícia abaixou o rosto e juntou as mãos, ciente da delicadeza do tema. — Sinto muito. Imagino que esteja sendo um momento muito difícil pra você.
O rapaz olhou para cima, para aquele mesmo teto escuro como a noite que uma vez a sua irmã se deparou ao acordar da luta contra o nefilim nas Batalhas de Admissão da Academia.
— Um momento difícil para todos nós. — Por pior que fosse admitir, também era para o próprio Raizel. — Você veio acertar alguma pendência com o nefilim?
— Er… — Como Alícia poderia responder? Uma pendência? Sim. Mas era ela que estava em dívida, e a moça tinha muito o que retribuir. — Eu vim por algo diferente.
— Entendo. — Dessa forma, o Caspian se aproximou e se despediu de forma adequada. Ele já havia tomado tempo demais da menina, e o tempo para falar com o Raizel era curto, como o indivíduo mesmo disse. — Torço para que você consiga o que veio buscar.
A Alícia concordou com um aceno vertical de cabeça e seguiu caminho sem falar mais nada. Era fácil imaginar o que o irmão mais velho da Petra fazia ali, e o resultado era tão óbvio quanto.
— Ah! Um momento. — Quando já estava para segurar a maçaneta da saída, o Lavour se virou e devolveu o olhar analítico para o cabelo da moça. — Perdoe-me se for intromissão minha, mas você possui algum parentesco com aquele Raizel?
A garota soltou um sutil “hã?”, e então observou as mechas do cabelo que um dia foi branco. Adoraria responder “sim" para a pergunta do rapaz, mas, em vez disso, ela fez um movimento para os lados com a cabeça.
— Entendo. — Sem forçar o assunto, o Caspian se desculpou por qualquer indelicadeza e se ausentou daquele lugar desolado. Sozinho, ele pôde refletir sobre o encontro recente: “Ela mentiu”.
Estava claro como a água que a aparência física não era o único ponto semelhante que aqueles dois compartilhavam entre si: mentiram para a mesma pessoa e no mesmo dia.
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