Volume 3 – Arco 3
Capítulo 225: Passado e Futuro
Com as panturrilhas desfeitas na forma de um brilho roxo, os sapatos caíram na ausência dos pés que os sustentavam, enquanto as partículas de luz subiam e as pernas da calça ficavam vazias no chão.
“Foi o que eu imaginei.” Sentado, Raizel observou as consequências de ter manifestado a Espada do Fim dos Tempos, naquele estado já miserável, para a Alícia.
Sem braços, sem pernas; até mesmo o corcel que fazia companhia ao nefilim ficou em silêncio e deu um passo para frente, cauteloso, quando foi parado pelo rapaz.
— Você já conseguiu o que queria — enfatizou o nefilim com as costas e a cabeça inclinada apoiadas na parede. — Eu fiz o que eu podia. Agora, é com ela. — O corcel produziu algum som com a boca; interrompido de novo. — Retire-se.
O animal parou e encarou a figura que se afogava na inexistência iminente. Raizel nunca foi de ter diálogos com as suas invocações, no máximo as usava como instrumentos de batalha.
O corcel morto-vivo retornou para a poça de Nether e se ausentou do lugar, ciente de que provavelmente nunca mais teria uma segunda conversa com aquele nefilim, fosse pela resistência do rapaz ou por aqueles olhos roxos não chegarem a ver o raiar do sol do próximo dia.
Aquela arma exalava mesmo poder e encanto, além de um calor que ameaçava o inimigo e acalentava o seu portador. As mãos da moça de joelhos no chão se moveram devagar e seguraram o cabo.
Alícia sorriu. De todas as pessoas que poderiam ajudá-la, ela nunca imaginou que aquele Raizel, mesmo todo quebrado, iria emprestar a sua arma mais poderosa.
— Obrigada — agradeceu baixinho enquanto se levantava com a espada em mãos.
Ao contrário da moça, o Abbadon bufava de ódio. A garota que estava a um triz de sucumbir ao desespero agora exalava confiança e determinação para vencê-lo.
— Chega dessa merda. — Inclinou-se para a frente, enquanto a foice soltava algumas caveiras lamuriantes, e avançou como um raio contra a adversária. — Você é uma criança com uma faca. Só isso!
Já de frente para a garota, que parecia lenta aos seus olhos, o Abbadon sentiu falta da Espada do Fim dos Tempos na mão dela, até que ele percebeu que a arma se encontrava bem no lado dele.
Uma explosão de chamas, e as caveiras do Anjo do Abismo sem Fim foram extintas, um destino que passou perto de ser compartilhado pelo portador da foice.
— Tsc! — Com leves assaduras, que se negavam a sarar, o Abbadon amaldiçoou o calor daquelas chamas; no entanto, havia pouco tempo para isso, uma vez que a Alícia tomou o próximo turno para ela.
Vindo do alto, girando com a espada empunhada nas duas mãos, a garota fez uma acrobacia circular que deixou o rastro do fogo roxo para trás, até que ela alcançou o inimigo, com um impacto que lançou mais chamas para todo canto.
Não fosse o bastante ter que se preocupar em sair dali sem torrado vivo, o anjo ainda teve que se atentar a um novo giro que a garota fez, agora com os pés no chão. E foi com a foice que o Abbadon bloqueou o movimento da espada.
O impacto metálico anunciou um vencedor, e o Anjo do Abismo sem Fim foi empurrado para longe. Os pés do Abbadon atritaram com o solo de terra, marcando o rastro da derrota da sua foice contra a arma de um Arcanjo, sempre um Arcanjo.
— Maldição. — O anjo parou à beira do rio de magma; um dos seus joelhos no chão. “É mais pesada do que parece à primeira vista”.
Um pouco distante, a Alícia suspirou. Ela já havia visto o Raizel usar aquela espada, até nas suas lembranças, mas nunca imaginou que se sentiria tão imbatível ao segurá-la.
Ciente de que o adversário poderia ouvi-la daquela distância, falou: — Eu tenho que agradecer a ele direito, depois que isso acabar. — Aumentou o poder do fogo e olhou para a frente. — É mais um motivo pra eu vencer, Abbadon.
O Nether da Espada do Fim dos Tempos se prolongou para além do alcance da visão e, com um primeiro giro, a Alícia cortou tudo o que havia entre ela e o Abbadon, até mesmo mais que isso.
O anjo escapou com um salto, apenas para notar que, enquanto os seus pés retornavam para o chão, a nefilim emendou um segundo movimento giratório, e as chamas roxas cantavam uma ópera mórbida no seu ouvido.
— Mas que… — Teletransporte efetuado, o Abbadon retornou para dentro das ruínas da cidade espectral do Reino da Vida Esgotada, quando viu o céu ser iluminado e o terceiro movimento da garota ser efetuado: um corte descendente matador.
Uma cratera imensa e profunda foi criada na área em que o anjo caído se encontrava, da qual um intenso brilho pronunciou o estrondo de uma poderosa explosão que engoliu todas as ruínas.
O terreno sob os sapatos da nefilim, que assistia o espetáculo do fogo consumindo tudo, menos o dono de uma voz atrás dela.
— Você está com uma arma mais forte do que a minha — assumiu o inimigo, que preparava um corte rumo ao pescoço da nefilim — mas eu sou mais rápido do que você, menininha.
— Eu sei. Mas… — Um tinido estridente, e a foice do Abbadon foi interceptada pela lâmina curva de outra foice, que vinha do lado. — Você é mais rápido do que você mesmo?
— Esse merda de novo? — Antes que o anjo caído pudesse xingar ainda mais o seu sósia antagônico, o Doppelganger puxou a arma, criando, para a sua senhora, uma oportunidade de ação. — Huh?!
Passando a lâmina da Espada do Fim dos Tempos pelo lado do seu corpo, a nefilim disparou um ataque, ainda de costas para o adversário, que teve parte da lateral da barriga pulverizada junto às árvores decadentes ao fundo do cenário.
Obrigado a recuar com um teletransporte, o Abbadon pairou sobre o rio de magma. Com o buraco que já havia na sua barriga, a única parte que mantinha o seu corpo conectado era a lateral esquerda dele.
— Que desgraça… — amaldiçoou cada possibilidade que se abria no futuro. As linhas em que a nefilim vencia só aumentavam e as dele diminuiam. — Que completa… desgraça!!!
— Você enxerga, assim como eu — pronunciou-se o Doppelganger, ao lado da Alícia — a sua derrota inevitável.
—Ha! Ha! Haha! Haha!! — Pôs a mão em seu rosto. — Derrota?! — De um instante para outro, as pupilas do Abbadon dilataram de modo a roubar todo o espaço das íris cinza. — De quem é a derrota?!
Todo o espaço ao redor do Anjo do Abismo sem Fim começou a se desconectar em cubos rachados, ao passo que as possibilidades de futuro vistas pelo Doppelganger sumiam uma após a outra.
— A regalia do Absalon. — O sósia entrou em postura ofensiva o mais rápido que pôde. — Ele está apagando os futuros em que a senhora vence.
— Hã? — Um pouco mais lenta que a invocação, a nefilim avançou contra o inimigo, no entanto, ela se viu obrigada a parar quando o espaço adiante se desmembrava em cubos. “O que eu faço contra isso?”
Para a Alícia restou apenas observar o Doppelganger entrar em um embate direto. As possibilidades se tornavam limitadas. Ela poderia executar o Primeiro Ato da espada, mas o Abbadon poderia esquivar do ataque sem muita dificuldade.
A nefilim mordeu os lábios. Ser capaz de empunhar a Espada do Fim dos Tempos e ser capaz de executar os Atos com liberdade eram duas coisas bem diferentes.
Até que ponto seria possível usar a espada com segurança? Talvez abandonar a segurança fosse o melhor? Qual ideia ela deveria seguir? Ideia? Qual foi a última ideia que ela teve? Ela teve alguma?
— Eu… O quê? — Uma a uma, todas as possibilidades de ação da nefilim se foram da sua mente, nem mesmo uma nova ousava surgir. — Isso é mau. Muito mau.
— Acabou! — Em meio ao atrito e faíscas incessantes das foices, o Abbadon cantou vitória sobre a falsificação de si mesmo. — Pelo que você luta agora?!
Um ataque mais potente do anjo, e o Doppelganger foi empurrado. O Abbadon chutou um dos cubos espaciais em direção ao rosto do sósia, que cortou com a Foice Sagrada do Túmulo.
— A minha senhora — respondeu o Doppelganger. — É por ela que eu luto.
Contrariando o que acabara de dizer, o sósia abaixou a sua arma e sorriu enquanto o inimigo passava em alta velocidade e cortava a sua cabeça.
O Abbadon sorriu. Aquele era um ataque com 100% de chance de acerto. No entanto, o Doppelganger também sorriu. Prezar pela sua proteção nunca foi prioridade. Tudo bem se ele caísse de novo, desde que honrasse o seu propósito.
— Eu sou você. — Virando fumaça, a invocação proferiu suas últimas palavras. — E você pode mais do que só destruir futuros. Você também pode…
— Seu mer… — Voltando-se para a nefilim, tudo o que o anjo viu foi o fim do movimento final da arma dela.
Quando se tratava de traçar um caminho para a vitória, a mente da jovem nefilim era uma completa tela em branco, ainda assim, de algum modo, um pincel foi mergulhado em tinta e deslizou pela superfície dessa tela limpa.
“É isso!” Sem perder um microssegundo sequer, a Alícia brandiu a Espada do Fim dos Tempos no ar. — Segundo Ato.
Era um pouco arriscado, uma vez que a garota não tinha nenhuma memória do Raizel executando aquela técnica quando mais jovem; entretanto, se aquele foi o futuro que o Doppel criou antes de morrer, então ela conseguiria. Aquela invocação jamais colocaria a sua senhora em risco.
— Princípio de Dores.
Quando a Alícia se deu conta, o Abbadon se virou para ela, no entanto, já havia acabado. O Segundo Ato da Espada do Fim dos Tempos aniquilava eventos, sem restrição de ponto espacial ou temporal.
Naquele pequeno intervalo em que a mente do anjo ainda funcionava, a ação dele foi um ato falho de resistência.
A nefilim cortou o evento em que ele usava a Paralisia Temporal no seu tempo de vida, para escapar do efeito do Espaço Dimensional dela; mas era óbvio que o indivíduo iria resistir, foi por isso que ela cortou o passado e, também, o futuro.
“Essa menina…” De um instante para outro, o corpo do anjo caído virou poeira, até os ossos. “Ela destruiu a minha reação, um evento que… nem tinha acontecido ainda”.
Caindo de joelhos, e ofegante, a nefilim fincou a Espada do Fim dos Tempos e soltou ela. As suas mãos tremiam e ardiam como se fossem queimar junto aos eventos aniquilados. Podia sentir bem porque o Raizel estava tão ferrado após usar o Quarto Ato duas vezes no mesmo dia.
Sem a técnica que mantinha o avatar do adversário vivo, o Abbadon esteve sujeito ao roubo de vitalidade do Reino da Vida Esgotada desde aquele instante, um efeito tão intenso que o anjo já havia “morrido” há muito, muito tempo.
— Eu venci… — A moça sorriu. Com um rosto suado e pálpebras quase fechadas pela exaustão, ela sorriu. A promessa feita à Yuna; manter o Rafael fora de confusão; agradecer ao seu irmão; ela poderia cumprir tudo. — Eu realmente… venci.
“Sim, você venceu”, assumiu a voz do anjo caído, vinda de fora do lugar do conflito, o que fez a nefilim tremer e procurar a sua origem, com um semblante pálido. “Humph! Eu disse que você venceu. Pra que essa preocupação toda?”
A garota foi do céu ao inferno e do inferno ao céu em um intervalo de tempo insano de pequeno. Tudo o que ela destruiu foi o avatar do Abbadon, mas sem o avatar dele, a luta realmente tinha acabado.
“Eu assumo a derrota, Alícia Necron.” A moça olhou para baixo, de onde a voz vinha. “Eu só nunca pensei que sentiria pena de você, em vez de ódio”.
A moça ficou calada, visto que mal possuía fôlego direito para falar de forma adequada mas também porque entendia, de certo modo, o que o adversário queria dizer.
“Assim como eu, você vai sofrer bastante por causa da honra do Arcanjo”. Então, a voz esmaeceu aos poucos, cada vez mais distante. “Abandone esses sentimentos que nunca serão atendidos, nefilim”.
— Espere, Abba… don. — Sem mais respostas. Ainda havia algo que a jovem garota queria fazer, alguém que ela queria muito salvar. — Liberte ela, por favor.
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