Volume 3 – Arco 3
Capítulo 222: "Tiro" no Pé
Sentado em um trono de prata imponente — imponente, um adjetivo caberia ao São Rafael Arcanjo, caso as mãos unidas e o rosto próximo a elas não entregassem a apreensão de assistir o desenrolar da vingança do Abbadon sobre ele.
O longo cabelo loiro platinado cobria as laterais dos olhos verde-claros, onde uma segunda figura masculina surgiu de uma fenda roxa ao seu lado.
— Peço que tire da sua mente qualquer intenção de manifestar o seu avatar para salvar aquela nefilim — pediu, ou melhor, ordenou o ser que ostentava dois pares de asas roxas. — Já basta a vergonha que o Miguel nos fez passar, entregando a sua antiga espada ao maior dos pecadores.
Ao menos o passar de vários e vários anos acabaram por inocentar o Príncipe dos Anjos, quando a luta do nefilim contra os avatares do Belzebu revelaram a real intenção do aparente “ato de bondade”.
— Incomoda tanto o fato do mais poderoso dos nefilins ter vindo da sua linhagem, Azrael? — Questionou a Cura à Morte, embora sem o mesmo ar de provocação. — A Alícia e o Raizel também possuem uma arma criada pelas suas mãos. Estou certo?
— Por mais desagradável que seja, os dois ainda são da minha linhagem e são habilidosos. — Azrael cruzou os braços; os seus cabelos tão longos quanto os do companheiro de posição divina. — Como o meu ser poderia modificar as regras no decorrer do jogo?
Permitir que aqueles dois tivessem posse de um Necronomicon nunca foi algo sobre a raça dos nefilins, sempre foi sobre o caráter do próprio São Azrael Arcanjo.
— Admiro como você honra a sua posição — confessou o Rafael enquanto repousava mais à vontade as suas costas no trono e encarava o teto prateado do salão divino.
— Você se difere de mim?
Quanto à pergunta, tudo o que o Rafael pôde fazer foi fechar suas pálpebras e calar a sua boca. Sempre se propôs a ser um exemplo e honrar a sua posição, mas era inegável que, naquele momento, a única coisa que ele não desejava era ser um dos sete santos Arcanjos.
— Me sinto preso pelas correntes do Abbadon.
— Como pode proferir essas palavras? — Azrael virou o rosto para o lado e, então, o restante do corpo. — É como assumir que realmente nutre algo pela garota?
O Arcanjo da Morte caminhou para uma fenda que se abriu para o domínio do seu Reino Celestial. Desde que o companheiro permanecesse ali, o trabalho estaria feito.
— É lamentável que a garota perca a vida, mas isso é inevitável — assumiu antes de pôr os pés na fenda. — Já o “irmão”, de nada lamento. Ele encontrou o fim a que a sua arrogância o levou: definhando sem esperança alguma.
— Eu concordo que o Raizel e a Alícia estão em posições difíceis para eles, até mesmo sem esperança. Porém, Azrael… — Enquanto a Morte sumia dali, a Cura contemplava a Alícia abrir as asas que ela escondeu por tanto tempo, para que ele não precisasse usar as suas. — Eu assumo que invejo esses dois irmãos.
Sombrio em aura e em iluminação, o Reino da Vida Esgotada era vasto em sua área de território, indo de uma cidade arruinada, onde Alícia e Abbadon se encontravam, até rios de magma fervente e florestas sem qualquer traço de cor verde.
De um lado para outro, criaturas espectrais vagavam sem rumo; murmuravam e balbuciavam palavras sem sentido: humanoides armadas com ferramentas rústicas; animalescas, desde cachorros até aves, que sobrevoavam o espaço aéreo ou ficavam em árvores, atentas a tudo.
— Até que é um bom lugar para se viver — observou o anjo caído, enquanto a garota abria o Necronomicon na página 70. — Embora a minha alma formigue um pouco.
“Pouco” era um privilégio que só alguém que possuía uma quantidade de tempo de vida ilimitada como um anjo poderia dizer. Desde que colocou os pés ali, a vitalidade do Abbadon estava sendo drenada a uma velocidade que um ser mortal sequer duraria alguns segundos até virar ossos e pele.
— Invocação Número 70: — proclamou a nefilim enquanto um longo cabo saía de uma fumaça arroxeada nas suas costas, que logo deu lugar para uma lâmina imbuída em Nether. — Foice Sagrada do Túmulo.
— Olha. Nada mal. — Ao contrário da foice medonha do Abbadon, a criada pelo Azrael era um exemplo de refino e encanto; um cabo reto e uma lâmina brilhante, apesar do tom profundo do roxo da morte. — Uma lâmina viva matadora de imortais. Me mostre do que ela é capaz, nas suas mãos!
Um instante imperceptível de tempo, e o Abbadon cruzou o espaço que o separava da Alícia, já com um ataque pronto da parte cega da sua lâmina, um movimento de impacto que, prestes a alcançar a garota, foi acompanhado por uma breve mexida dos olhos dela e, então, interceptado.
O tinido dos metais demoníaco e celestial foi intenso, assim como a potência que jogou a nefilim para trás e o sorriso que brotou nas feições do anjo caído.
— Acompanhou, hein?! — O efeito daquelas runas faciais não era brincadeira, potencializado pelas asas, muito menos. — Mas foi por muito pouco, menina! — Com um impulso, Abbadon deixou poeira para trás e iniciou a perseguição.
“Eu sei.” Passando através de algumas criaturas espectrais, Alícia fincou a haste da sua arma no chão e forçou uma desaceleração. — Mas eu tô começando a ver um futuro em que eu venço.
A foice fincada brilhou e liberou uma rajada de Nether bem quando o inimigo ficou em linha reta, com um corte horizontal em pleno processo de preparação.
O Nether arrasou o que encontrou no trajeto, exceto o anjo que já se encontrava nas costas da garota, que se virou ao ouvir as lamúrias da lâmina do inimigo; no entanto, em vez de bloquear outra vez, Alícia jogou o seu tronco para trás e mandou um chute para o alto assim que a arma do Abbadon passou por cima dela.
— Urgh! — Com os dentes batendo um no outro, o anjo quase mordeu a língua e teve a cabeça levantada de modo a enxergar a arma da adversária retornando para parti-lo em dois, assim que ela abaixou a perna de volta.
Um forte bater de asas negras, e Alícia foi empurrada por uma densa massa de ar que arrasou as construções decrépitas e fez os espectros tremularem, ao passo que o anjo recuou para o alto e parou no ar.
— Nada mal, eu diria! — Passou a língua pelo lábio inferior, um leve gosto amargo, e, com uma mão, jogou a foice que girou na forma de um arco circular até a Alícia pular para o lado, e a arma do anjo ficar presa.
“Isso foi fácil de desviar.” E saber disso fez a moça dar uma breve olhada para a arma abandonada, um breve intervalo de tempo no qual os ouvidos dela alertaram do perigo real. — Huh?!
Como um ímã que era atraído até outro, a Abbadon foi puxado até a sua foice, provocando uma explosão de chamas negras e cinzentas acompanhadas por várias caveiras, que lamuriaram enquanto se espalhavam para todos os lados.
— Erro… meu. — A uma pequena distância das chamas, Alícia fitou a silhueta do inimigo caminhar em sua direção, enquanto queimaduras se faziam visíveis em seus braços, pernas e barriga.
— Essas runas que vocês, nefilins, ostentam, nenhum anjo possui elas — elucidou o ser do abismo. — Você sabe o porquê, não é?
Alícia sabia a resposta, o que a levou a contrair suas feições, enquanto as queimaduras levavam mais tempo para se curarem do que deveriam.
— Vocês são uma terrível mutação que não sente dor — continuou o Anjo do Abismo sem Fim. — Mesmo assim, ainda se dão tão mal quanto qualquer anjo contra o poder demoníaco do abismo.
— Eu não amaldiçoo o que me tornei, se é o que você deseja. — Alícia se curvou um pouco para frente. Doía, mas nunca deixaria que o inimigo a destruísse por dentro da mente dela. — A Academia, os meus amigos, eu jamais teria isso se o meu passado fosse outro.
— Ah, mesmo? — Abbadon fincou a foice e deixou o peso do seu corpo cair sobre ela como faria com qualquer árvore. — Ter sido tratada como o rato de laboratório de um doente maníaco não deve ter sido lá tão grande coisa, hein?
Considerando as suas experiências no Abismo sem Fim, o anjo poderia considerar as ações do Arklev como brincadeira de criança, já a Alícia… A garota estava em uma posição diferente, por mais que tentasse manter uma postura forte.
— Mas, quem diria que você ia se arrepender de nadinha? — Fitou a moça bem no fundo da sua pupila, tão escura quanto o ambiente. — Nem mesmo da morte daquela sua amiguinha ratinha de laboratório. — Suspirou. — Ah, como ela se importava com você.
Alícia contraiu os lábios e desviou os olhos para baixo por um instante, quando os levantou rápido, ciente da abertura que deu para uma investida inimiga; entretanto, lá estava o anjo, parado, fazendo pose.
— Como era o nome dela mesmo? Você lembra? Ah, sim! — O anjo chutou a haste da foice, arrancando pedaços do solo e entrando em posição ofensiva, com a arma na horizontal, quase chegando nas costas. — Era… Lucy!
O nome e as memórias que ele traziam. Alícia ainda podia sentir os dedos da menina que levava o seu cabelo naquela instalação abominável. Sentia falta da antiga amiga, era fato.
Fosse pelas lembranças, a mente da nefilim viajou por um tempo que, quando ela se deu conta, o adversário já estava quase na cara dela e, por reflexo, a garota puxou uma nova arma do grimório.
Alícia apontou tão rápido que o seu cotovelo estalou pouco antes do som alto do disparo, que fez o Abbadon esbugalhar as vistas: de tantas invocações, um revólver morto-vivo?! E um que tinha estética de crânio.
— Argh! — Sentindo todos os membros do seu corpo travarem por causa da bala que se desfez e se espalhou por dentro dele, o Anjo do Abismo sem Fim caiu de joelhos. — Que… merda…
A provocação foi um belo “tiro” no pé do anjo, que deu para a garota a chance de pegar a Foice Sagrada do Túmulo e devolver o ataque visceral da outra vez, com a lâmina enfiada bem fundo do estômago dele, onde a mini pirâmide estava.
— Ceifar — declarou rápido a nefilim antes que a oportunidade escorresse por entre os seus dedos — imortalidade.
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