Volume 3 – Arco 3
Capítulo 219: Coração do Arcanjo
Densa e obscura, a massa de nuvens se movia em espiral, proporcionando a visão semelhante a de um furacão, para quem conseguisse um ponto de observação do lado de fora do planeta Calisto.
Sobrevoando a fenda abissal, que o portal de Shadowfen se tornou, o grupo de Alícia avançava a uma altura segura para ficar livre dos novos monstros que saíam, fincando suas garras como feras sedentas e salivantes em busca de sangue.
Os dous abaixo tremeram em suas bases ao ter que lidar com a bestialidade daquelas criaturas peludas e com as bocas cheias de dentes, quadrúpedes como lobos negros e cheias de sujeira.
“Aqui, parece que nem eu estou segura”, refletiu a Patrona que encarava aqueles projetos imundos de lobisomens. “E quem criou esse portal foi a gente”.
Yuna desviou o seu foco para a Alícia que, apesar de se preocupar com a dor sem fim que poderia ser causada por aqueles monstros, se preocupava ainda mais com o estado de Lucius e Luminas.
O ar parecia estranhamente pesado, entretanto apenas os pulmões da nefilim sentiam isso. Mesmo que o medo fosse algo natural naquele lugar, algo dizia para o peito apertado de Alícia que o melhor para ela, em especial, era fugir dali.
Aquele aviso, a garota ignorou.
— O momento se aproxima e o tempo se esgota. — Fazendo duas estruturas de madeira com seis pontas surgirem aos seus lados, uma à esquerda e outra à direita, Abaddon fez um movimento de aproximação com dois dedos da mão direita. — Venham.
Lucius e Luminas, que ainda estavam presos pelas correntes, foram puxados por uma força invisível, chocando cada um, com um impacto firme, na sua própria estrutura de madeira.
As correntes abandonaram a maior parte dos corpos dos tenjins; apenas um pedaço apertou os seus pescoços, uma vez que o que cuidou de mantê-los fixados na madeira foram grandes pregos enferrujados, que atingiram seus pulsos e canelas.
Os dois gritaram com a dor lancinante, e com a certeza de que, as Cadeias de Abbadon jamais deixariam eles se curarem daqueles ferimentos e da agonia que aumentava a cada segundo que passava.
— Chega a ser cômico, vocês não acham? — indagou o anjo caído enquanto dava uma olhadinha de canto para o Lucius e depois para a Luminas. — Vocês são o topo do poder nessas tais Academias de Batalha, e vejam só o estado de vocês.
Abbadon caiu na risada. De fato seria cômico, se não fosse triste. Mesmo tendo servido como o braço direito de um Arcanjo, o caído sabia o penhasco de poder que havia entre ele e o Rafael.
No fim, pouco importava qual era a sua perspectiva de mundo. Um Arcanjo, como a forma suprema de poder de um Reino Celestial, sempre teria a última palavra.
Abbadon parou de rir.
Ainda que tenha abandonado os Céus e sido acolhido pela Besta Sagrada Absalon, que possuía uma visão mais compatível com a sua, o anjo caído jamais conseguiu se desfazer das amarguras daquele tempo.
— Sabem, no Abismo sem Fim, nós temos muitas formas de tortura para passarmos o tempo com as pobres almas que vão parar lá — Os tenjins gelaram da cabeça aos pés, perdendo as feições de dor para uma de puro pavor. — É uma pena que eu não tenha tempo para usá-las em vocês.
Parando repentinamente no ar à frente, o trio Alícia, Esteban e Yuna ficaram inertes no primeiro momento, diante da cena de Lucius e Luminas, dois tenjins pregados como pecadores hediondos e sem correção.
O sangue escorria pelos ferimentos causados pelos pregões enferrujados. Esteban foi o primeiro a cerrar os dentes, o único na verdade. Yuna reconhecia a desumanidade, mas não era capaz de sentir algo frente a algo que era comum para ela.
Alícia se pegou encarando fixamente as mãos e os pés retorcidos da companheira e, antes que Esteban, que abriu a boca, falasse algo, a nefilim já havia puxado o Necronomicon e se preparado.
— Que menina atrevida você é. — Mais veloz do que Alícia, Abbadon abriu as suas asas e colocou as pontas nos pescoços dos tenjins, como lâminas afiadas que arrancaram tiras de sangue da carne deles. — O Rafael tem um gosto bem peculiar, eu diria.
— Hã? — Alícia, que na verdade abriu o grimório na página do Sacerdote, a fim de usar um poder de cura, cessou a invocação. — Rafael…?
Ok! Um anjo de asas negras. Os amigos humilhados e desumanizados. O nome do Arcanjo que a salvou. “Gosto bem peculiar” ? Poucos segundos, e a mente da jovem nefilim já havia se perdido no que pensar.
— Ah! Que modo de nos conhecermos. — O anjo caído fez uma breve reverência para a garota, ignorando os outros dois, e se apresentou: — Eu me chamo Abbadon, o Anjo do Abismo sem Fim. É um prazer conhecê-la… — Fitou a moça com um sorriso duvidoso. — Coração de São Rafael Arcanjo.
“Coração?” Uma pergunta que todos se fizeram, principalmente a garota em questão. — Eu… não sei o que quer dizer.
— Em nada me surpreende ele ter te deixado no escuro, mesmo que nunca tenha tirado os olhos de cima de você. — Recolhendo as suas asas, Abbadon deu um passo à frente. — De qualquer modo, você pode amaldiçoá-lo. — E em um bater de pálpebras, apenas a voz do anjo caído ficou para trás. — Enquanto agoniza.
— Quê?! — Vasculhando os arredores, cada centímetro que estava no seu campo de visão, Esteban falhou na tarefa de encontrar os rastros de Alícia e de Abbadon. — Atrás!
Pela conexão da Ressonância, o jovem tenjin se virou para onde a sua parceira estaria, ainda assim, sem conseguir vê-la. Saber a localização era algo bom, já o alerta de perigo era bem ruim.
— A gente veio até aqui à toa pelo que parece — mencionou a Patrona. — Ele só queria a Alícia. — O que podia ser bom, para quem quisesse ficar vivo. — O que você quer fazer?
Esteban engoliu a saliva em seco. Além da Alícia, Lucius e Luminas também precisavam de ajuda urgente, e os dois eram os mais fortes que eles tinham ali.
— Espere só um pouco pela gente, Alícia. — O rapaz logo criou um campo de flores curativas ao redor dos amigos e se aproximou para soltá-los, o que se mostrou uma tarefa bem difícil quando o primeiro prego se negou a sair.
— Tinha que ser coisa de um anjo caído. — Yuna segurou uma das pernas da Luminas e encarou as feições confusas dela por um momento. — Sinto muito, mas isso pode ser bem doloroso pra você.
— O que você vai… fazer? — questionou o Lucius.
— Eu queria só desintegrar essa matéria, mas ela rejeita a minha técnica, então… — A Patrona criou uma faca afiada e deixou clara a sua intenção: — Se os pregos não saem, vamos ter que arrancar vocês de um jeito um pouco mais… doloroso.
Agarrada pelo pescoço, Alícia teve o seu corpo rodopiado em pleno ar e jogado do alto, caindo em alta velocidade apenas com o ruído do vento forte em seus ouvidos, até que enfim colidisse no chão.
O impacto abalou as paredes das casas próximas, ao passo que encheu os arredores de poeira. Alícia engasgou, ainda caída, não pela poeira, mas pela agonia inquietante na sua garganta.
Pousando com um carniceiro sobre um poste, Abbadon assistiu a garota se levantar com uma mão no pescoço, onde jazia uma grande marca roxa, porém sem a beleza da cor do seu cabelo empoeirado.
— Agora sim, um pouco de privacidade — comentou o anjo da forma mais casual possível, como se não tivesse colocado a garota naquela situação. — É natural que você esteja confusa, então vou te dizer uma coisinha.
— Que coisa? — Braço para o lado, e a espada surgiu em sua mão.
— Eu tenho os meus desentendimentos com o seu Arcanjo favorito. — A moça soltou mais um “hã”? — Vamos lá. Você deve saber que pegou bem mal pro Rafael sair por aí salvando a vida de uma nefilim.
— Mas eu era só uma criança!
— Sim. Uma menininha que se tornou uma grande e bela mulher. — Só aí as peças começaram a se encaixar na mente da Alícia, e o Abbadon visualizou os seus pensamentos. — Eu te disse que ele não parou de prestar atenção em você, não disse?
Naquele momento, se o coração de Alícia pudesse falar, ele gritaria de felicidade, então taparia a sua boca com extensões dos átrios e ventrículos.
Era inegável que aquele Arcanjo foi a primeira pessoa que a pequena pensou quando saiu da sua hibernação na fenda dimensional, mas nunca voltou a encontrá-lo, e o motivo só ficou claro quando ela amadureceu mais.
Até mesmo o Miguel deve ter recebido críticas por ter ajudado o Raizel e, embora o Rafael dissesse que a Alícia era apenas uma criança e, a princípio, uma tenjin, ela não só se reconheceu como nefilim como também viu naquele Raizel a figura de um irmão.
— Se for você chamando por ele, acho que o Rafael vem — explicou o Abbadon, com um sorriso aberto e sádico. — Então, cuide de abrir bem essa sua boquinha, tá bom?
Claro, nem mesmo o Anjo dos Abismo sem Fim se via derrotando um dos poderosos Arcanjos em um embate de força, mas o que Abbadon buscava era uma vitória moral.
— Não sei direito o que aconteceu entre você e o Rafael, mas não vou te ajudar nisso. — Uma resposta que o anjo já esperava e que o levou a rir. — E o Rafael nunca mais veio me ajudar quando eu estive em perigo.
— Haha! Falando assim você magoa ele. — Foi então que Abbadon deixou o topo do poste para ficar cara a cara com a garota. — Entenda uma coisa: há uma diferença bem grande de quando você se machuca dentro de um portal e…
As nuvens escuras trovejaram no instante em que tudo o que Alícia ouviu foi a palma da mão do anjo agredindo a sua bochecha e fazendo ela virar o seu rosto, dolorido, para o lado. A garota ficou inerte com os olhos assustados e uma bochecha ardendo.
— … Quando você leva um tapa por causa dele. — Sorriu, apreciando o breve trovejar furioso. — Ninguém gosta quando machucam o seu coração.
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