Volume 3 – Arco 3
Capítulo 218: Torre de Babel
Como uma infestação que insistia em retornar mesmo após a sua aparente eliminação, a queda das Sentinelas não findou apenas com a origem dos profanos Nefilins Primordiais.
Nos domínios do Quarto Reino Celestial, regido por São Rafael Arcanjo — a Cura Divina — anjos e mais anjos se agitavam pela extensão do espaço 8D; 4 dimensões do Plano Físico mais um eixo dimensional para cada nível do Reino Celestial.
Onde passado, presente e futuro convergiam, se distanciavam e se invertiam como a coisa mais simples do mundo; onde o simples vislumbrar levaria à insanidade a mais sábia das mentes humanas, a agitação enlouquecia os anjos.
— Babel… — Diante do poderoso Arcanjo da Cura, que estava sentado em seu trono de prata, Abbadon fechou as pálpebras com certo pesar. — Uma ousadia sem precedentes.
Em posse de resquícios do conhecimento compartilhado pelas Sentinelas caídas, nos primórdios da criação daquele mundo, a ambição dos humanos mostrou não conhecer limites, almejando até mesmo o Céu.
— A estrutura é uma torre — explicou o Arcanjo da Cura. — A intenção dos humanos daquele mundo é aproximar a Terra dos Céus…
— É conquistar os Céus — corriu-o Abbadon, o até então Anjo dos Selos. — Usurpar um plano de oito eixos dimensionais como quem invade um reino qualquer, armados com lanças e escudos.
— Abbadon. — Vendo a expressão de descontentamento do companheiro que lhe servia diretamente como braço direito, Rafael amenizou seu tom de voz. — Meu precioso Anjo dos Selos, não permita que algo como a ira tome o seu coração.
O anjo abaixo inspirou fundo e soltou o ar, liberando o sentimento ruim. Abbadon estava ciente do pecado que obscurecia a mente e prejudicava a tomada de decisões, ainda assim, para um anjo, era ultrajante ser afrontado por um enxame de formigas.
— Em nosso papel como guia de civilizações, iremos corrigir o rumo do mundo. — Levantando-se do trono, Rafael foi até o companheiro encarregado de executar a missão e pôs uma mão no ombro direito dele. — Eu confio em você, para selar o legado das Sentinelas.
Abbadon virou o rosto para a direita e fitou o toque leve, porém firme, típico da existência que a Cura Divina era. Eliminar o mal pela raiz seria mais efetivo e direto, mas Rafael nunca levaria esse tipo de possibilidade como primeira opção.
— Ah… — O Anjo dos Selos suspirou e encarou o seu superior, com a cabeça maneada para a esquerda. — Como desejar. Eu executarei o que me pediu.
Formando um leve sorriso em seu rosto, Rafael tirou a mão do ombro do Abbadon e se despediu do companheiro enquanto ele saía com a tarefa de barrar a construção da Torre de Babel, selar o legado das Sentinelas e prevenir que algo do tipo ocorresse novamente.
Imponente e absoluta, com uma altura que estava muito além dos parâmetros da arquitetura da época, a Torre de Babel, ainda em plena fase de construção, arriscava tocar as nuvens brancas, feito que não seria alcançado por gerações futuras e mais desenvolvidas.
Na base da torre, escravos e trabalhadores de diversas regiões persistiam na tarefa de criar uma singularidade que unisse Céu e Terra em um só ponto. Para tal, um círculo sobrescrito no chão da base impedia a queda da estrutura, enquanto um novo seria desenhado no topo, quando alcançasse a altura das nuvens baixas.
— A Terra me pertence. — De uma das janelas da sala do trono, o Rei Ninrode, em seus trajes reais e com sua coroa dourada, contemplava o fascínio da sua construção. — E logo o Céu também será meu.
Louvadas fossem as antigas Sentinelas, que desafiando as ordenanças divinas, levaram a luz verdadeira para os homens; assim Ninrode pensava, embora a glória final ficasse para ele, o Maior que o Sol.
Foi então que um ruído rouco, como quando os ponteiros de um relógio falhavam até travarem de vez, que as cores do mundo foram cobertas por um fundo acinzentado e nada mais se movia.
— O quê?! — Sendo o único capaz de se mover naquele mundo congelado no tempo, Ninrode olhou de um canto para outro da torre. Do alto do castelo, era possível visualizar cada trabalhador ou escravo estático. — Isso… pode ser…?
— Uma demonstração do poder daqueles que você pretende usurpar o território, Rei Ninrode — explicou um indivíduo, pelas costas do monarca. — Assim, você já deve imaginar quem eu sou e o que faço aqui.
— Ah! Entendo. — Recuperando-se do susto inicial, o Rei se virou com calma e sem perder a postura diante da situação, como qualquer monarca deveria ser. — Vejo que me preocupei à toa.
Abbadon encarou o indivíduo orgulhoso, com profundidade. Visto o comportamento do Rei, irreverente, em vez de suplicar perdão pelo seu erro, ele não havia entendido nada do que o anjo quis dizer.
— Escute, Ninrode. — Mais incisivo, o ser celestial prosseguiu: — Eu sou Abbadon…
— Uma das nossas sagradas Sentinelas.
— O que… disse? — Franzindo a testa, segurou o passo que daria para esmagar aquela formiga. Não havia insulto maior do que ser comparado àqueles anjos pecadores.
— Ora. Pelo que mais um anjo viria até o meu reino, se não fosse para nos fornecer conhecimento como os servos mais leais?
— “Servos”? — Com um tom de voz mais colérico, Abbadon direcionou a palma de uma mão para o Rei, que foi lançado pela janela nas suas costas.
Ninrode gritou e esperneou enquanto a queda o levava à iminência de um belo e sangrento impacto com o chão de pedras que circundava o castelo real, ao menos até o instante em que de repente o Rei estava na altura da torre, agarrado pelo pescoço pela mão forte do anjo.
— Escute, Ninrode — repetiu Abbadon. — A sua torre não subirá um côvado a mais sequer. — O Rei arregalou os olhos, com dificuldade de respirar. — A sua arrogância e a influência divina neste mundo acabam por aqui, pelo meu nome… Abbadon.
Ainda que o Ninrode estivesse incapacitado de falar algo além de balbucias, o anjo entendia com clareza cada xingamento e insulto proferido dentro da mente do maldito rei que se julgava maior que o próprio Sol.
— Que o Legado das Sentinelas seja extinto e que uma nação não compreenda a voz de outra nação — decretou o Anjo dos Selos enquanto folgava o aperto no pescoço do Rei. — Assim seja.
Quando o aperto ficou fraco e o tempo voltou a fluir, Ninrode pensou que poderia falar de novo; foi então que o seu corpo despencou, agora sem um novo Abbadon para que o segurasse uma outra vez.
O monarca gritou, mas sua voz foi coberta pelo ruído da torre, que sem a presença do círculo celestial da base, começava a desmoronar sobre a cabeça dos seus construtores, que tentaram fugir sem sucesso.
Do alto, o Anjo dos Selos observava a cena de desespero e sangue sem qualquer remorso ou pena, indiferente à morte das formigas. Havia tantas ao redor do mundo.
Sentado em seu trono de prata, São Rafael Arcanjo refletia sobre o desfecho que a missão incumbida a Abbadon teve. De todos os modos, ele cumpriu o que foi ordenado, mas os meios divergiam da ordem do Quarto Reino Celestial.
— Quanto sangue derramado. — O Arcanjo fechou os olhos com pesar e abaixou a cabeça. — Quantos trabalhadores e escravos inocentes perderam suas vidas? — O que parecia uma pergunta ao vento logo foi direcionada ao anjo que surgiu no salão da Cura Divina. — Me responda, Abbadon.
— Não parei a fim de contar formigas. — O Anjo dos Selos deu as costas para o superior e fez menção de se retirar. — Se são mesmo tão “inocentes”, então que desfrutem do Descanso Eterno.
— Em momento algum lhe foi concedida permissão para se retirar, Abbadon. — Interveio o Arcanjo, levando o outro a travar os seus passos de imediato, de forma brusca. — Eu entendo como se sente, mas essa ainda será a sua ruína.
— Então que assim seja! — Virou-se com um dedo apontado para o Arcanjo. — Você, Rafael, vai julgar o que eu fiz hoje, mesmo após inundar aquele mundo inteiro de água e fazer um genocídio global?!
— Abbadon…
— Veja só, Rafael! Mesmo após essa “purificação através da água”, aqueles… insetos imundos não se corrigiram!
— As circunstâncias são outras, Abbadon. — Rafael ainda entendia o posicionamento do subordinado, porém… — Um dilúvio nunca é a primeira opção, sempre a última.
Mordendo os lábios a ponto de quase fazê-los verter sangue, o Anjo dos Selos apertou os punhos com força. No fim de tudo, aquele a ser marcado como o errado seria ele. Que poder as suas palavras tinham contra a posição de um Arcanjo?
— Posso… me retirar agora? — De cabeça baixa, o anjo engoliu a raiva e expirou o ar dos seus pulmões. — Estarei à espera da punição que me impuser, seja ela qual for.
Com um sinal de mão do Arcanjo, a permissão foi concedida, e Abbadon se virou para dar os seus passos para fora daquele salão divino, deixando para trás as feições tristes de um antigo companheiro.
A partir daquele dia, uma coisa era certa: independentemente de qualquer punição. Independente de qualquer circunstância, Abbadon jamais engoliria a arrogância de algum humano outra vez.
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