Volume 3 – Arco 2
Capítulo 211: A Última Visão
Mentira. Tudo o que Rodolfo falou naquele confuso quarto de hospital não passou de uma grande e covarde mentira que buscava o bem-estar momentâneo da sua esposa.
Nada estava bem. Minerva havia perdido a sua filha naquele infeliz acidente. Sua gestação nunca seria concluída. Sua criança nunca veria a luz do mundo.
— Você tá bem mesmo, Minerva? — perguntou uma amiga do trabalho, vendo a Chefe do Laboratório com um rosto pálido e caído enquanto carregava os Registros de Ocorrências Técnicas. — Você mal assumiu o cargo e já tá esgotada.
— Avaliar as condições dos equipamentos, definir novas metas e propostas, corrigir tudo o que a chefe anterior complicou. — Minerva seguia caminho com a amiga, distraída a ponto de não reparar em dois funcionários que as cumprimentaram. — É muito trabalho para pôr na ordem devida.
— É por isso que você deveria ir com mais calma — insistiu a amiga. — Além de que você acabou de passar por um… — A mulher travou as palavras assim que o semblante de Minerva caiu mais.
— Está tudo bem — mentiu, usando as mesmas palavras do marido. — O trabalho ajuda a me distrair da perca, um pouco.
— Nós estamos aqui pra te dar apoio. — As duas pararam em frente à porta da sala da Chefe do Laboratório. — Eu, o Rodolfo… todos nós.
Minerva se virou para a porta, com a pasta dos documentos em mãos. Respirou fundo. De fato, Rodolfo fazia o que podia para a consolar, mas o que confortaria o coração de uma mãe que perdeu a filha?
— Eu agradeço muito por cada um de vocês. — Pôs uma mão na maçaneta, segurando a pasta com o outro braço, em seu peito. — Nem sei o que seria de mim, se eu estivesse sozinha nesses dias.
Despedindo-se, Minerva trocou a voz da amiga pelo som solitário da porta branca se fechando logo atrás dela.
Ir para a mesa seria o próximo passo, que parou assim que a mulher viu uma menininha com o rosto enfiado nos braços cruzados; na mesa dela, de tantos lugares.
A menina se remexeu, sonolenta, após ter se perdido pelo Setor de Laboratórios da Academia de Batalha Leviatã.
Naquele dia, Trívia deveria ajudar em um experimento com venenos que, por sinal, estava atrasado, por motivos óbvios.
— Er, olá? — A mulher se aproximou da menina, que levantou o rosto com os olhos cansados e um “huum!” baixo. — Como você veio parar aqui, pequena? Está perdida?
— Preguiiça — bocejou a menina. — Eu soou… a Preguiiça — apresentou-se, ignorando a pergunta feita a ela.
Minerva parou diante do nome do pecado capital. Seria possível? Aquela menina era pequena demais, jovem demais pra fazer parte dos planos sombrios do diretor. Ela passou pelas mãos dos experimentos desumanos do Louco, o Arklev?
— Entendo. — Colocou uma mão no cabelo levemente bagunçado da Patrona. — Você pode descansar aqui. — Ela teria que contactar o diretor sobre o ocorrido, mas até lá… — Você quer uns biscoitos e um pouco de leite?
— Hã? — Com o chão desfazendo-se em rachaduras brilhantes, Trívia se soltou da píton e se jogou sobre os braços da mulher que amaldiçoava até a alma do Kaiser. — Mineerva… a geente… morreer.
A mulher abraçou a pequena e, naquele instante, a ira deu lugar à tristeza. Era fato que a Preguiça, enquanto Patrona, era mais velha do que aparentava, ainda assim, fosse por dentro ou por fora, não deixava de ser e agir como uma criancinha; vê-la morrer era de partir o coração.
— Sinto muito — lamentou a sua infeliz sorte, apertando a menina, de joelhos. — Eu queria que ao menos você saísse.
— Hum! Hum! — Trívia negou, o rosto enfiado no peito da Minerva, confortável. Em seu abraço, só havia paz. — Nunca deixar você… pra trás… Mineerva.
A mulher abriu bem os olhos e encarou o cabelo da menina agarrada a ela, menos bagunçado que o habitual, porque ela fez o trabalho de penteá-lo para a Trívia.
Minerva nunca teve a oportunidade de cuidar da sua própria filha, de escolher suas roupas, de perfumá-la; levá-la para passear, acompanhá-la na escola, tirar as suas dúvidas; vê-la crescer, se apaixonar; seguir sua vida, lhe conceder netos.
Poderia dizer que Rodolfo era um parceiro melhor do que mil filhos, mas nada substituiria um espaço em branco como aquele; ainda assim, apesar de todas as complicações, ela gostaria de adotar a Trívia legalmente algum dia, se possível.
Envolvidas nas tramas de Percatuum, o pouco da relação de mãe e filha que as duas podiam ter era quando a pequena Patrona dava umas escapadinhas da Perpetuum.
— Amoo, Mineerva. — A pequena moveu o rosto para o lado e convidou sua fiel serpente, que obteve como resultado dos experimentos do Arklev. — Samaeel…
A píton se enrolou ao redor das duas, as quais começavam a sangrar em decorrência da degradação espacial que as castigava sem qualquer empatia.
— Eu vou… sonhaar… — mussitou, a pequena Patrona, as últimas palavras do seu coração antes de cair no sono eterno. — Com… vocêês.
— De todas as formas que eu tinha pra poder morrer. — Com um suspiro, Vínia se sentou no chão rachado de terra, sem se importar de sujar suas roupas; não teria que lavar depois de qualquer modo. — Ah, como eu queria morrer fazendo algo mais radical.
— Não fala esse tipo de coisa, Vínia. — Seguindo o exemplo da parceira, Grete se sentou e, com os braços ao redor dos joelhos, fitou as chamas negras que barravam sua saída. — O pessoal deve tá bem preocupado lá do lado de fora.
Era difícil saber o que aconteceu com exatidão, mas dava pra entender que Kaiser foi um mau perdedor, então os seus amigos da Academia deviam estar bem.
— Ah, que desgraça. — O nariz da Vínia já começava a sangrar, e logo os olhos também iriam. — Ao menos, ninguém aqui tem mais vontade de lutar. — Virou o rosto para a despedida de Trívia e Minerva, abraçadas com a píton.
— Uhum! — assentiu Grete, sendo pega de surpresa pela moça que se jogou nas costas dela e a abraçou por cima dos ombros. — Tá com medo da morte?
A semi-humana fitou a terra com certa dúvida, como quando encarava um horizonte distante. Seria mentira se dissesse que estava tranquila; como adoraria viver e passar mais tempo ao lado da sua Grete; era mesmo uma grande pena.
— E você tá?
— Sim, eu tô. — Grete se virou com um “hum?” para a parceira, que sempre fazia alguma cena positiva, mesmo naquela hora.
— Eu gosto de ver o seu rosto bem vermelhinho — assumiu a travessa. — Eu não quero que a sua última visão de mim seja algo triste ou ruim.
A tímida riu baixinho. Era óbvio que Vínia também não queria que a última visão que ela tivesse da sua preciosa Grete fosse algo cheio de medo ou desespero.
— Cê quer me beijar agora, né?
— Oh! Foi difícil perceber? — Os olhos das duas já começavam a arder, vermelhos, com o sangue escorrendo. — Infelizmente, só vai dar tempo de ficar no beijo mesmo.
Uma risadinha foi tudo o que Grete esboçou para a sua parceira, antes que se voltasse para ela e entregasse os seus lábios; um beijo com um certo teor de sangue, assim como foi no dia do Pacto de Ressonância das duas.
Literalmente sem chão, Eslly se mantinha flutuando no espaço aéreo de Thornfield, estático com a visão fixada na entrada do portal que reduzia de tamanho; só quando não havia mais esperança, as chamas negras do majin infame enfim se foram.
— O que foi que a gente fez? — lamentou o semi-humano, com uma bola de chumbo pesando em seu peito. — O que foi que eu fiz?
Era evidente que o verdadeiro culpado de tudo aquilo era o Kaiser, foi ele quem os induziu a decretarem a morte das suas amigas, ocultos à realidade; ainda assim, apesar de tudo, o sangue estava nas mãos deles. Se tivessem pensado melhor…
Tília o observou ser consumido por dentro, sem conseguir formular algo que fosse capaz de confortar o parceiro. Eslly chegou ali com o medo de perdê-la, e acabou por matar as suas próprias amigas.
— Ahhhh!!! — Rasgando suas cordas vocais, o draconiano soltou um rugido de dor e ódio que, mesmo debilitado, pôs medo nas pessoas e monstros, em terra. — Esses majins…! Sempre a porra desses majins!!
Primeiro aquele engomadinho arrogante do Dreison no Sojourner, agora o filho da puta do Kaiser em Thornfield; como seres imundos como eles tinham permissão de existir no mundo?
Baltazar fechou os punhos com força e mordeu os próprios dentes, enquanto Carelli segurou o machado Fúria de Ego, igualmente triste e furiosa; entretanto, diferente do parceiro, ela sabia que ainda haviam monstros menores para serem finalizados, além dos pedaços de Terraemnia; não podiam perder mais gente.
— Vamos concluir a limpeza, por agora. — A guerreira voltou-se para as ruínas da cidade. O luto teria que ficar para depois, assim era a frieza do campo de batalha. — Mas depois — proferiu com a voz alterada enquanto descia — pode ter certeza de que não vai restar nenhum deles.
Durante a noite daquele mesmo dia, quando retornou do trabalho, tudo o que Rodolfo Starborn encontrou em sua casa foi uma carta deixada pela sua esposa que, ciente da oposição dele, optou por aquele método para informá-lo que ela iria para Thornfield.
— Minerva… — Com o papel em mãos e dada a ausência da esposa àquele horário, Rodolfo olhou para o céu noturno, pela janela, temendo pelo pior. — Ah, Minerva…
Saudações, primordiais!
Chegamos ao final de mais um arco, então teremos a pausa de um capítulo, certo? Bem, de certo modo a palavra-chave é "um capítulo".
Em decorrência de algumas eventualidades, o arco 3 será lançado apenas nas segundas-feiras, ainda assim pretendo retornar tudo à normalidade no arco 4.
Torçam por mim, tamo junto e até mais.